quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Existe imunidade cruzada contra o SARS-CoV-2? Ou: ter tido contato com algum outro vírus protegeria a pessoa de alguma maneira contra a CoViD-19?


Vocês se lembram do meu post anterior sobre a importância da imunidade celular contra o SARS-CoV-2? Pois bem, pesquisadores do mundo todo começaram a fazer experimentos para estudar a resposta dos nossos linfócitos T contra o vírus. Pegaram linfócitos T de pessoas que já tinham tido CoViD-19 e de pessoas que nunca tiveram a doença para comparar como as células desses 2 grupos de pessoas se comportam na presença do SARS-CoV-2.
Como era de se esperar, os linfócitos T de quem tinha tido CoViD-19 antes reconheceram o vírus, do jeito que o estudo da semana passada previu e indicando uma imunidade celular forte. Só que quando foram avaliar os linfócitos T dos indivíduos que nunca tinham tido CoViD-19, perceberam que em algo em torno de 20 a 50% das pessoas os linfócitos T também respondiam ao vírus de forma vigorosa, como se já se lembrassem dele. Mas como, se nunca tinham se deparado com ele antes?
Uma hipótese: será que os linfócitos T dessas pessoas estavam respondendo ao SARS-CoV-2 porque ele se parecia com algum outro vírus com o qual elas já haviam entrado em contato?
Os coronavírus são uma família. 3 deles já causaram epidemias: SARS-CoV em 2002-2003, MERS-CoV em 2012 e agora SARS-CoV-2. Mas além deles, temos outros 4 que causam resfriado: OC43, 229E, NL63 e HKU1. Até 2002 esses 4 eram os únicos coronavírus conhecidos capazes de afetar humanos, e não passavam de curiosidade médica. Figuravam entre as mais de uma centena de possíveis agentes do resfriado comum, ao lado do vírus sincicial respiratório, parainfluenza, rinovírus, adenovírus, metapneumovírus e outros tantos. Eram tão insignificantes que ninguém jamais se preocupou em dar a eles um nome decente.
Devido ao seu parentesco, esses 4 vírus possuem algumas proteínas muito parecidas com as do SARS-CoV-2. E esse estudo indicou que quanto maior a semelhança entre essas proteínas, maior a chance de um linfócito T reconhecer e atacar. É como se o linfócito T que já entrou em contato com um desses 4 coronavírus olhasse para a proteína da superfície do SARS-CoV-2, pensasse “eu já vi isso antes e é um invasor” e montasse uma resposta celular mais forte e mais rápida. Aparentemente, esse tipo de reação cruzada ocorre com muito menos frequência com anticorpos (resposta humoral), porque eles são muito mais específicos.
Se o linfócito T ataca rápido ainda na primeira fase da CoViD-19 (a fase de replicação viral), vai ter menos vírus sobrando para induzir uma resposta inflamatória mais intensa na segunda fase da doença (a fase inflamatória). Isso pode explicar por que algumas pessoas têm uma doença mais leve do que outras: pode ser que algum resfriado que ela já teve antes na vida tenha sido causado por um desses 4 coronavírus. Infelizmente não temos como testar as pessoas para saber se já tiveram contato com algum deles, já que até ontem eles eram nota de rodapé de livro.
É uma hipótese plausível, mas precisa ser confirmada por outros experimentos. Se estiver correta, ela também tem implicações no desenvolvimento de vacinas, porque não parece ser difícil usar um vírus parecido com o SARS-CoV-2 para fazer nosso corpo montar uma resposta celular robusta e precoce contra ele. E é possível que pessoas que tiveram SARS e MERS também tenham alguma proteção contra formas graves de CoViD-19. Isso ajudaria a explicar por que países do leste da Ásia que foram duramente afetados pela SARS em 2002 e 2003 estão conseguindo controlar melhor a disseminação do vírus do que o resto do mundo. Obviamente esse não é o único fator. As medidas de controle como uso de máscaras e isolamento social estão sendo feitas (e obedecidas) de forma mais séria lá do que aqui.
E novamente, é uma hipótese.
De qualquer forma, é mais uma boa notícia. E mostra que aos poucos estamos começando a entender como a imunidade contra esse vírus misterioso funciona.

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