Em 5 de junho 1981, o Morbidity anda Mortality Week Report,
um veículo de informação sobre surtos e epidemias pertencente ao Center of Disease
Control, nos EUA, lançou um informe que provavelmente passou despercebido. O
que é perfeitamente compreensível, porque a maior parte desses informes
semanais consiste em pequenos surtos e eventos limitados a uma pequena região
geográfica, e só em alguns casos esses fenômenos locais ganham alguma projeção
maior. Em meio a outras notícias que falavam de um novo surto de sarampo e de
casos de dengue em americanos que voltavam do Caribe, o informe em questão
falava de cinco pacientes admitidos entre 1980 e 1981 em três diferentes
hospitais da Califórnia com um tipo muito raro de pneumonia, causada por um
protozoário então chamado de Pneumocystis
carinii, que costumava acometer pessoas com graves deficiências no sistema
imune. Todos os cinco pareciam estar fora de qualquer risco de contrair uma
pneumonia desse tipo. Eram todos homens jovens californianos e,
coincidentemente ou não, homossexuais. Quando o CDC recebeu cinco pedidos
diferentes para liberação de Pentamidina, uma medicação muito pouco usada mas
que tinha como uma de suas principais indicações o tratamento da pneumonia por Pneumocystis carinii, os pesquisadores
suspeitaram que talvez houvesse alguma coisa por trás do caso desses cinco
jovens.
Poucos meses depois, outro informe do MMWR falava de vinte e seis casos de sarcoma de Kaposi, novamente em homens jovens e homossexuais vivendo em Nova York e na Califórnia. O sarcoma de Kaposi, descrito no fim do século XIX, era um tipo de tumor de vasos sanguíneos muito raro. Algumas de suas variantes acometiam idosos da região do Mediterrâneo e crianças de certas localidades na África, mas ver essas lesões de cor vinhosa ou violeta espalhadas pela pele de homens jovens era algo bastante incomum. Alguns deles, além do sarcoma de Kaposi, também apresentavam pneumonia por Pneumocystis carinii, o que possivelmente fazia com que o caso desses vinte e seis jovens tivesse alguma relação com o daqueles cinco californianos.
Em 9 de julho de 1982, um novo informe do MMWR falava de
novos casos de sarcoma de Kaposi. Porém, dessa vez não eram jovens homossexuais
californianos ou nova-iorquinos, e sim trinta e quatro homens e mulheres do
Haiti e que haviam procurado atendimento em um hospital na Flórida. Alguns
deles tinham também pneumonia por Pneumocystis
carinii, lesões no esôfago por citomegalovírus, abscessos por toxoplasmose
no cérebro, meningite por um fungo chamado Cryptococcus
e candidíase na boca e no esôfago. Dessas trinta e quatro, dez haviam morrido.
Na semana seguinte, o MMWR lançara outro informe: três novos
casos de pneumonia por Pneumocystis
em homens jovens. Nenhum deles era homossexual, mas todos eram hemofílicos,
portadores de uma doença genética que dificulta a coagulação do sangue que os
obrigava a receber constantes transfusões de plasma com proteínas da coagulação
e, ocasionalmente, também de hemácias para combater a anemia que resultava da
perda de sangue. Dois haviam morrido, e um estava em estado grave.
A suspeita de que essa síndrome que destruía a imunidade do
hospedeiro poderia ser transmitida por meio de transfusões de sangue veio no
final daquele mesmo ano de 1982. Em 10 de dezembro, o MMWR reportara o caso de
um recém-nascido com 1 ano e 8 meses que havia recebido múltiplas transfusões
de sangue, inclusive plaquetas de um doador que depois se descobriu ser
portador dessas mesmas doenças associadas à baixa imunidade. O bebê apresentava
aumento do baço e do fígado, uma infecção grave no ouvido, candidíase oral e
uma forma de hepatite que ainda não se podia caracterizar.
Essa trágica sequência de informes do CDC é considerada por
muita gente a origem da maior epidemia da segunda metade do século XX. A
Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, ou AIDS na sigla em inglês, abalou a
crença de que a Humanidade estava prestes a vencer as doenças infecciosas – a varíola
havia acabado de ser erradicada! Houve quem acusasse alguma conspiração global
de criar e espalhar essa doença nova para controlar a população do Terceiro
Mundo que não parava de crescer, houve quem dissesse que a AIDS era um flagelo
de Deus para punir os hábitos depravados dos homossexuais, houve quem
inventasse as teorias mais absurdas (como sempre acontece em cada epidemia).
Uma quantidade absurda de recursos no mundo todo foi aplicada em pesquisa para
tentar entender e curar a doença. Hoje compreendemos muito melhor como ela age
e como podemos agir para combatê-la.
Sabemos que ela é causada pelo HIV, que é um lentivírus, um
tipo de retrovírus. Os retrovírus são um grupo especial de vírus que, em vez de
conservar seu material genético em uma cadeia dupla de DNA, utilizam uma fita
de RNA – uma cadeia similar, mas mais simples e propensa a erros de cópia, que
chamamos de mutações. Esse RNA é convertido em DNA e emendado no material
genético do núcleo da célula hospedeira quando o vírus a invade e usa a
estrutura dela para produzir novas cópias virais. Esse caminho, de transformar
RNA em DNA, é o contrário do que a célula faz quando sintetiza uma proteína, e
daí os vírus que fazem isso são batizados como retrovírus. Essa é uma das
forças e fraquezas que os retrovírus possuem: por ser feitas com base em RNA
propenso a mutações, muitas das suas cópias são defeituosas e pouco eficazes,
mas as que funcionam mudam suas características tão rapidamente que conseguem
escapar da memória do nosso sistema imune. É como se vários tipos diferentes de
vírus existissem ao mesmo tempo em um indivíduo: algumas podem ser resistentes
a um determinado medicamento, e não há como fazer uma vacina contra um vírus
que gera tantas variantes tão rápido.
Sabemos também que o HIV surgiu não nos EUA, mas na África.
Por meio de análises comparadas de material genético, sabemos que os vírus mais
parecidos com o HIV são os vírus de imunodeficiência símia, ou SIV. Assim como
o HIV, eles são lentivírus, ou seja, vírus “’lentos”, que geralmente se
manifestam muitos e muitos anos após infectar o hospedeiro. Isso sugere um
longo período de adaptação evolutiva entre parasita e hospedeiro, com o último
elaborando defesas específicas para conter o primeiro (caso contrário, o
hospedeiro já teria sido varrido do mapa pelo parasita). Diversas espécies de
mamíferos possuem seus próprios lentivírus, que as infectaram em algum momento
da sua jornada evolutiva e coevoluíram com eles. Há até mesmo “lentivírus
endógenos”, pedaços de DNA que um dia foram RNA de um lentivírus e que agora
fazem parte do material genético de seus hospedeiros, e são incapazes de
produzir vírus novos.
Fonte: Cold Spring Harb Perspect Med 2011;1:a006841
As análises do material genético que indicam similaridades
entre os diferentes tipos de lentivírus e entre os tipos de HIV são baseadas em
“relógios moleculares”. Apesar do nome estranho, o conceito é simples: os
vírus, assim como os animais, as plantas e todos os outros seres vivos, sofrem
mutações e se diferenciam em determinado ambiente. Avaliando as diferenças
entre o material genético de diversos espécimes de um vírus, por exemplo, é
possível saber quais cepas ou “ramos da árvore” são parentes mais próximos de
quais ramos e são mais distantes de quais outros ramos. Mais do que isso,
conhecendo-se a velocidade média das mutações dentro de uma determinada
espécie, é possível deduzir, dentro de uma margem de erro confiável e estreita,
como era o ancestral comum de todas as variantes que existem hoje e há quanto
tempo ele começou a se ramificar e dar origem a elas.
O esquema da esquerda mostra quatro variedades de um
determinado vírus, 1a (verde escuro), 1b (roxo), 2a (azul claro) e 2b
(azul-turquesa), que evoluíram de duas variedades, 1 (azul escuro) e 2 (azul
claro). Comparando-se a sequência genética deles, é possível saber que 1a e 1b
surgiram a partir de 1, e 2a e 2b surgiram a partir de 2, e deduzir pelo menos
parcialmente qual era a sequência genética dos vírus ancestrais com base no que
é mais comum entre os vírus de hoje. Se soubermos que em média as mutações que
levaram os tipos 1 e 2 a se transformar em 1a, 1b, 2a e 2b levaram N anos,
podemos prever em quanto tempo um vírus ancestral de todos eles deu origem aos
tipos 1 e 2, e como era sua estrutura genética.
O mesmo raciocínio feito para a distribuição no tempo serve
para a distribuição no espaço. Conforme os vírus sofrem mutações e se
multiplicam em determinado território, eles se distribuem de forma heterogênea
(esquema da direita). A não ser que haja uma influência externa muito forte, o
vírus ancestral surgiu mais ou menos no centro a partir de onde saíram todos os
outros – um para o norte, outro para o sul, outro para o leste...
Feita essa importante introdução sobre relógios moleculares,
o caminho do HIV fica muito mais fácil de ser traçado. Pesquisadores usando
biologia molecular conseguiram identificar quatro tipos principais de HIV-1: o
M, de main (principal), corresponde a mais de 99% dos vírus do planeta, e por
sua vez se subdivide em A, B, C, D, F, G, H, J e formas recombinantes entre
elas. O O, de outlier (externo), é raro, acometendo algumas poucas pessoas no
Camarões, na Guiné Equatorial e no Gabão. O N (não-M e não-O, que para mim
parece mais uma forçada de barra para manter a ordem alfabética) é mais raro
ainda, com apenas dois casos registrados no Camarões. E por fim existe o P, que
é uma incógnita e há inclusive quem duvide da sua existência. A árvore
genealógica dos diferentes vírus da imunodeficiência símia e dos diferentes HIV-1
é a seguinte:
Segundo ela, o HIV-1 do tipo P (em marrom) é parecido com
alguns tipos de SIV encontrados em gorilas (à direita lê-se SIVgor de Gorilla gorilla), mas que também são
aparentados com os SIV de chimpanzés, indicando que um chimpanzé talvez tenha
passado seu vírus para um gorila e o gorila para um humano, ou o mesmo grupo de
chimpanzés tenha passado o seu SIV para gorilas e para humanos. Os outros tipos
de HIV-1, tanto o M (vermelho) quanto o N (azul claro) e o O (azul escuro)
parecem ter vindo de chimpanzés. À direita, SIVcpz indica SIV de chimpanzés (Pan troglodytes troglodytes, Ptt, e Pan troglodytes schweinfurthi, Pts, são
duas espécies de chimpanzé).
Analisando espacialmente, dá para perceber que a região onde
gorilas e chimpanzés P. t. troglodytes e P. t. schweinfurthi coexistem, e
portanto devem ter dado origem aos vírus ancestrais do HIV, é essa circulada em
vermelho. Ela corresponde ao sudeste do que hoje é Camarões.
Olhando para essa “árvore genealógica” com mais cuidado, é
possível perceber um detalhe chocante. Os ramos que correspondem aos tipos de
HIV-1 (vermelho, azul claro, azul escuro e marrom) não estão ligados entre si.
O HIV-1 tipo M é parente mais próximo do SIV de um grupo de chimpanzés do que
do HIV-1 tipo O, que por sua vez é parente mais próximo de outro grupo de SIV,
o dos chimpanzés e gorilas. O mesmo vale para os outros dois. Ou seja, os tipos
de HIV-1 não têm um ancestral humano comum. O vírus foi passado para os seres
humanos não uma única vez, mas em quatro oportunidades diferentes! De fato, os
quatro círculos pretos nos ramos ancestrais da árvore indicam pontos onde mais
provavelmente houve a passagem do vírus de um símio para um humano. E mais:
analisando cronologicamente com relógios moleculares os tipos de HIV mais
antigos, o M e o N, chega-se a outra conclusão igualmente chocante: as
primeiras passagens do vírus muito provavelmente ocorreram entre 1900 e 1910!
Muito, muito antes da AIDS ser descrita em 1981!
E como um vírus circulando no sangue de um chimpanzé vai
parar no sangue de um humano? Muitas teorias surgiram, algumas extremamente
mirabolantes envolvendo transplantes de testículos de chimpanzés em humanos por
um cirurgião excêntrico para combater a infertilidade, outras envolvendo
relações sexuais entre humanos e chimpanzés (os chimpanzés são muito mais
fortes do que os humanos e podem ser muito agressivos, e imagino que um homem
que tentar estuprar uma fêmea de chimpanzé certamente acabará morto ou
gravemente ferido), mas a explicação mais plausível é mesmo a boa e velha caça.
A carne de chimpanzé e de outros primatas é vendida no mercado negro em
diversas regiões da África por suas supostas qualidades afrodisíacas e pelo seu
exotismo, embora a prática seja duramente combatida pelas autoridades
policiais.
Em menor escala, há também a caça de filhotes vivos para o
uso como animais de estimação, prática também ilegal. Além disso, algumas
tribos como o Bakwele, de Camarões, usam chimpanzés em seus rituais de
iniciação. O jovem a ser iniciado precisa matar um chimpanzé para ser
considerado homem, e no fim do ritual os membros mais proeminentes da tribo se
banham em sangue do chimpanzé morto e a carne é distribuída entre todos os
membros. Independentemente da discussão sobre isso ser um “ritual bárbaro” ou
“uma manifestação da cultura local”, é uma ótima forma de se adquirir uma
zoonose.
Uma breve explicação: nós humanos gostamos de colocar nomes
nas coisas e encaixá-las em categorias, mas a Natureza existe em um grande
continuum, sempre desafiando os limites arbitrários que tentamos impor. Um
chimpanzé tinha um SIV (vírus da imunodeficiência símia) e acabou passando para
um humano, que contraiu o primeiro HIV (vírus da imunodeficiência humana). O
nome é diferente, a categoria é diferente, mas o vírus é o mesmo! Uma cepa do
SIV do chimpanzé que era capaz de se reproduzir nas células humanas, graças à
similaridade genética entre as duas espécies, acabou “virando” HIV, mas
continuou sendo muito parecido com os outros tipos de SIV. Inclusive, tudo
indica que o SIV não é completamente inofensivo para os primatas como se
acreditava até poucos anos atrás. Embora não cause doença similar à AIDS nos
humanos a menos que seja transmitido de uma espécie de primata para outra, o
SIV diminui o tempo de vida de chimpanzés e gorilas. Observações realizadas em
reservas e santuários de primatas na África mostram que os primatas portadores
do SIV de fato vivem menos do que os outros.
Nos parágrafos anteriores eu me referi ao vírus da AIDS como
HIV-1. Isso significa que existe um HIV-2? Sim! Muito mais raro que o HIV-1 e
com mais dificuldade para infectar humanos, o HIV-2 está praticamente restrito
à África Ocidental (Libéria, Senegal, Costa do Marfim, Guiné-Bissau). Se o
HIV-1 tem origem no chimpanzé, o HIV-2 surgiu a partir do SIV presente em um
macaco que só existe nessa região, o mangabeu-fuligento (Cercocebus atys atys, sooty mangabey). Considerado por alguns uma
praga por atacar plantações, muitas vezes é adotado por famílias locais e usado
como animal de estimação.
Aqui está um no colo de uma jovem africana:
Não é difícil imaginar que um desses macacos tenha uma vez
ou outra arranhado a pele de uma pessoa e transmitido seu SIV para ela, dando
origem ao primeiro HIV-2. De fato, isso parece ter acontecido pelo menos oito
vezes, porque pela análise filogenética há oito tipos de HIV-2 não aparentados
entre si, todos originários de diferentes cepas de SIV oriundos de
mangabeus-fuligentos.
Ou seja, o HIV não infectou humanos uma única vez. Se
somarmos as quatro cepas de HIV-1 e as oito cepas de HIV-2, foram pelo menos
doze eventos diferentes que resultaram na transmissão do vírus para seres
humanos. Isso só levando em conta as cepas que existem hoje. Se considerarmos
que o SIV deve existir entre primatas não-humanos há séculos ou talvez
milênios, é possível que tenha havido muitos outros episódios de contágio entre
espécies, talvez resultando na morte de um único indivíduo, de uma família infectada
ou de uma pequena tribo. Na grande maioria das vezes a ligação entre infecção e
doença deve ter passado despercebida, fosse porque nos vilarejos da África
tropical era muito mais fácil morrer de outra causa (malária, tripanossomíase
africana, febre amarela ou o ataque de algum animal selvagem), fosse porque a
doença causada pelo HIV progride lentamente e em seus estágios finais pode ser
facilmente confundida com outras doenças. Ao infectar células do sistema imune,
em especial os linfócitos T CD4 que coordenam a resposta imunológica celular
(isto é, não produtora de anticorpos) contra diferentes tipos de
microorganismos, o HIV torna o hospedeiro suscetível a um grande número de
doenças causadas por vírus, fungos, protozoários e bactérias, incluindo as
micobactérias causadoras da tuberculose. No entanto, o efeito do vírus sobre os
linfócitos ocorre muito devagar. Eles perdem força, “envelhecem” e morrem aos
poucos. Se uma pessoa adulta com o sistema imunológico saudável tem em torno de
1000 linfócitos T CD4 por milímetro cúbico de sangue (um número que pode variar
bastante para mais ou para menos), a infecção pelo HIV vai reduzindo seu número
aos poucos, 50, 100, 200 por ano, e as manifestações típicas da baixa imunidade
que acompanham a AIDS geralmente surgem quando esse número de linfócitos cai
para menos de 200 por milímetro cúbico. Daí essas doenças serem conhecidas como
“oportunistas”: enquanto o sistema imunológico estiver em boas condições, os
microorganismos que as causam ficam contidos e quase nunca geram problemas, mas
quando as defesas do organismo não têm mais capacidade para contê-los eles se
espalham e se fazem sentir de diferentes formas.
Agora vem uma questão espinhosa e que nos leva à segunda
parte do texto: se o SIV foi transmitido várias vezes para os humanos e deu
origem ao HIV nos últimos séculos ou milênios, por que a AIDS deixou de ser uma
manifestação isolada de pequenos grupos na África e ganhou o mundo, dando
origem à maior epidemia do final do século XX em todo o planeta? E por que,
especificamente, na virada do século XIX para o século XX? Foram essas
perguntas que me fizeram escrever esse texto em primeiro lugar, e para
respondê-las precisamos sair da Biologia Evolutiva e entrar na História.
Essa é a região central da África hoje, dividida em diversos
países que não necessariamente possuem grande unidade cultural, por obra do
neocolonialismo europeu. Toda essa região é coberta por uma densa floresta
tropical, e muito bem servida de rios:
Qualquer pessoa que já visitou uma região tropical sabe como
os rios são importantes não só para obtenção de água e alimento, mas também
para o transporte de pessoas e carga. É muito mais fácil viajar em um barco do
que construir uma estrada ou mesmo uma trilha na floresta. No Congo não é
diferente hoje e nem era no começo do século XX. O maior rio da região, o Rio
Congo, recebe água de uma miríade de afluentes. Entre eles está o rio Sangha,
que nasce no sul de Camarões. Ele ajuda a explicar o porquê de, apesar de
provavelmente o primeiro humano a adquirir essa cepa atual de HIV a partir de
um primata com SIV ter sofrido o contágio no sul de Camarões, a circulação
inicial do vírus entre humanos não ocorreu ali. Do sudeste de Camarões, essa
primeira vítima muito provavelmente desceu o rio Sangha até o maior centro
urbano da região, segundo o esquema abaixo:
E qual era esse centro urbano por onde o HIV começou a
circular? Para entender de forma mais detalhada, precisamos voltar mais um
pouco no tempo e observar um mapa da África Central na segunda metade do século
XIX:
Em 1849, os franceses interceptaram um navio negreiro
repleto de escravos que partira de algum lugar da África rumo ao Brasil. Em uma
época de crescente força do movimento abolicionista em toda a Europa, os
franceses resolveram libertar toda aquela gente que certamente morreria cativa
em alguma fazenda brasileira de café ou cana-de-açúcar. Deram meia-volta e
aportaram no litoral africano, fundando uma colônia chamada Libreville,
destinada a abrigar esses escravos libertos. Ela faria parte da então África
Equatorial Francesa. No entanto, a partir da segunda metade do século XIX e
graças ao recém-isolado quinino, os europeus poderiam ir mais a fundo no
continente africano em busca de riquezas sem tanto medo de contrair malária.
Assim, uma expedição francesa liderada por um italiano chamado Pietro Savorgnan
de Brazza fundou a cidade de Brazzaville na margem noroeste do Rio Congo em
1883. Brazzaville cresceu e em pouco tempo se tornou maior que Libreville.
Na margem oposta do Rio Congo, em breve outra cidade foi
fundada, mas não por franceses. O rei Leopoldo II, da Bélgica, financiou uma
expedição liderada por um explorador britânico chamado Henry Morton Stanley e,
por ter gostado do que viu, resolveu tomar aquele pedaço da África para si. Não
para a Bélgica, para si próprio.
Leopoldo II no início de seu reinado
Usando influência política e convencendo os outros países da
Europa de que ele levaria a civilização, a decência, a moral, os bons costumes
e a caridade ao interior da África e eliminaria o tráfico de escravos para o
Oceano Índico realizado pelos árabes, Leopoldo II conseguiu transformar uma
porção enorme da África Central em seu domínio pessoal. Na verdade, o argumento
que convenceu o resto da Europa foi a ideia de um Estado-tampão no meio das
colônias das grandes potências europeias (Inglaterra, França e em menor
extensão Portugal), evitando que elas se engajassem indefinidamente em disputas
territoriais na região. Em 1885, ele criou o Estado Livre do Congo, e fundou
uma capital com seu nome na margem sudeste do Rio Congo: Leopoldville.
Como era de se esperar, o propósito humanitário do Estado
Livre do Congo ficou só no papel. Leopoldo II fez fortunas explorando a
extração de borracha nas selvas congolesas, e usava métodos cruéis para que os
povoados preenchessem as cotas de produção de borracha: intimidação por meio de
milícias armadas, execuções e, o que o deixou bastante conhecido, a amputação
de crianças e adultos dos vilarejos que não produziram borracha suficiente.
Estima-se que antes de Leopoldo II a região onde hoje é o
Congo tinha cerca de 30 milhões de pessoas. Após a independência, em 1959,
havia apenas 14 milhões. Suas atrocidades revolveram de tal forma a opinião
pública na Europa que o governo belga tirou das mãos de Leopoldo II o controle
sobre o Estado Livre do Congo e o assumiu diretamente em 1908. Leopoldo morreu no ano seguinte.
Charges denunciando a brutalidade do regime de Leopoldo II
no Congo circularam por toda a Europa, e Mark Twain escreveu uma obra
ridicularizando Leopoldo II, “O Solilóquio do Rei Leopoldo”.
Foi nesse contexto que o HIV começou a circular entre
humanos. Do sudeste de Camarões, ela chegou pelo rio até Leopoldville. Mas
definitivamente não ficou restrita à cidade. A história da circulação urbana do
HIV envolve o Congo Belga e o Congo Francês, porque Leopoldville e Brazzaville ficavam literalmente de frente uma para a outra, uma de cada lado do rio:
Essa é uma foto atual das duas cidades (Leopoldville
atualmente se chama Kinshasa, mas Brazzaville mantém o mesmo nome até hoje). No
centro da imagem, um alargamento do rio circundando um arquipélago fluvial
forma a Piscina de Stanley. Dos dois lados, imediatamente a jusante, marcadas
por estrelas, estão as duas cidades. Que na prática podem ser consideradas uma
só. O fluxo de pessoas de um lado para o outro era e é constante, e o controle
é precário. Se o nosso viajante do Camarões trouxe o HIV para Leopoldville, o
vírus não tardou a chegar na margem oposta logo depois.
Como muitas outras cidades no planeta, Leopoldville e Brazzaville
sofreram um aumento populacional explosivo ao longo do século XX. Em 1904,
Brazzaville tinha pouco mais de 5.000 habitantes, sendo cerca de 250 europeus e
o restante nativo. Em 1931 a população chegara a 18.000 pessoas, e em 1960
chegou aos 120.000. Leopoldville cresceu ainda mais rápido: se na virada do
século XIX para o século XX tinha cerca de 12.000 habitantes, na época da
independência do Congo Belga, em 1959, a população chegava aos 477.000.
Em ambas as cidades, mas de forma mais característica em
Leopoldville, havia um desequilíbrio importante. A relação numérica entre
homens e mulheres variava de 2 homens para cada mulher para até 10 homens para
cada mulher em alguns períodos. As cidades eram verdadeiros canteiros de obras
feitos para abrigar equipes de trabalhadores. Famílias, tanto de europeus
quanto de africanos, não eram bem-vindas. E mulheres solteiras, menos ainda. Em
nome da moralidade e da decência dos costumes, as autoridades coloniais queriam
evitar que as cidades se tornassem antros de “depravação e prostituição”. E
como costuma acontecer quando se tenta implementar medidas autoritárias em nome
da moralidade, da decência e da hipocrisia, não funcionou. Pelo contrário: isso
só aumentou a demanda reprimida por sexo e estimulou a prostituição. Entraram
em cena as femmes libres.
Tentando fugir de estruturas patriarcais rígidas e costumes
arcaicos como casamento infantil e mutilação genital, e em busca de
oportunidades, muitas mulheres saíram de vilarejos no interior e chegaram às
grandes cidades, e nas duas capitais irmãs dos dois lados do Rio Congo não foi
diferente. Por mais que as autoridades tentassem restringir a entrada de
mulheres solteiras, ocasionalmente se fazia vista grossa e elas acabavam
ganhando a oportunidade de entrar, embora com um rígido controle por parte dos
responsáveis pelo controle sanitário. Como a disparidade entre homens e
mulheres era muito grande, era comum que essas mulheres se envolvessem por
muitos anos com diferentes homens, com uma média de três, quatro ou cinco
homens por ano, prestando serviços como cozinhar, limpar a casa e,
ocasionalmente, serviços sexuais. Não se pode dizer que essas mulheres eram
prostitutas, ou pelo menos no sentido que nós ocidentais costumamos considerar.
Há quem diga que suas atividades constituíssem “prostituição de baixo risco”.
Três a cinco parceiros sexuais em um ano é um número muito pequeno para se
disseminar um vírus como o HIV. As femmes
libres no máximo podem ter contribuído para que o vírus continuasse a
circular, ainda que entre poucas pessoas. Os verdadeiros responsáveis pela disseminação do HIV eram outros.
Fosse para garantir que a população geral não adoecesse e
não transmitisse doenças para os europeus, fosse para mostrar aos povos
subjugados o quanto os colonizadores se preocupavam com a saúde e o bem-estar
deles, o “fardo do homem branco” envolvia não só mutilar nativos que não
preenchessem as cotas de produção ou fazê-los trabalhar dia e noite. Também
envolvia realizar campanhas de vacinação em massa contra doenças imunopreveníveis,
como a varíola. Além disso, o tratamento de doenças como a tripanossomíase
africana envolvia repetidas aplicações de medicamentos endovenosos ou
intramusculares (uma injeção por mês durante três anos). As femmes libres também recebiam tratamento
regular contra ISTs, inclusive “sífilis” (sintomas inespecíficos podiam ser
sífilis, uma reação de VDRL positiva em quem tinha uma doença também causada
por espiroquetas chamada bouba era tratada como sífilis, etc). O tratamento
geralmente era com sais de arsênico, embora haja registros de injeção
intramuscular de outras soluções, inclusive leite (!). Clínicas chegavam a
aplicar 300 doses em um único dia de trabalho. Também o tratamento da
tuberculose em meados do século XX era feito com injeções diárias de
estreptomicina associada a medicamentos orais durante um mês e doses mais
espaçadas nos meses seguintes.
Tudo isso com um detalhe: não havia agulhas descartáveis nem
esterilização adequada. Seringas de vidro eram as mais usadas, tratadas como
preciosidades no interior da selva africana por ser tão difíceis de obter, e
elas eram usadas centenas de vezes em um só dia. Fosse porque a estrutura era
precária e não havia autoclaves suficientes, fosse porque simplesmente não dava
tempo de esterilizar as agulhas e seringas, o fato é que elas eram reutilizadas
com bastante frequência. Um médico francês chamado Eugene Jamot que atuou no
interior do Congo Francês no combate à tripanossomíase africana tratou 5.347
pessoas entre 1917 e 1919 usando apenas seis seringas de vidro.
Agulhas podem ser grandes disseminadores de doenças,
principalmente quando não são bem esterilizadas. Militares dos EUA que
receberam vacina contra febre amarela na Segunda Guerra Mundial tinham na
década de 1980 uma prevalência de HBV, o vírus causador da hepatite B, de 97%;
militares que não foram vacinados tinham 13% de prevalência. No Egito, uma
campanha gigantesca para erradicar a variedade de esquistossomose causada pelo
verme Schistosoma haematobium usando
medicações injetáveis na década de 1930 resultou na contaminação de milhões de
pessoas com hepatite C, que sabidamente pode ser transmitido por agulhas. Mais
da metade da população do Egito teve contato com o vírus da hepatite C, sendo
que em alguns vilarejos a proporção chegava a 70%.
Fonte: PEPIN,
Jacques, LOBBÉ, Annie-Claude, Noble goals, unforeseen
consequences: control of tropical diseases in colonial Central Africa and the
iatrogenic transmission
of
blood-borne
viroses. Tropical Medicine and International
Health, volume
13 no 6 pp 744–753 june 2008
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18397182
Também na África Subsaariana (incluindo o Congo) a
prevalência de hepatites B e C era maior naquelas faixas etárias que receberam
vacinas e tratamentos endovenosos até meados do século XX. É bastante plausível
que, assim como as hepatites B e C, o HIV tenha se disseminado entre as pessoas
no Congo (francês e belga) por meio de agulhas sem esterilização, durante anos
ou décadas de domínio europeu.
Mas estamos falando de AIDS, uma doença que, apesar de
progredir devagar e permanecer silenciosa por muitos anos, em sua fase final é
bastante debilitante e causa uma constelação enorme de sintomas – febre, perda
de peso, infecções respiratórias, diarreia, ínguas pelo corpo, entre outras
muitas manifestações que em sua maioria são causadas pelas doenças oportunistas
que o HIV permite que ajam sem controle. Ninguém nessas décadas de disseminação
do HIV percebeu que uma nova doença parecia estar surgindo?
Para ser justo com os médicos e microbiologistas da época,
os fenômenos geralmente se tornam mais óbvios quando são vistos em
retrospectiva. É importante lembrar que a expectativa de vida da população do
Congo (e do restante da África subsaariana) era muito baixa, e a maior parte
das pessoas infectadas morria de alguma outra causa antes que o HIV debilitasse
o organismo ao ponto de causar a AIDS. Além disso, os recursos naquela região
eram muito precários para que se conduzisse uma investigação adequada, na
maioria das vezes. Pacientes que morriam com febre, perda de peso,
insuficiência respiratória, diarreia, ínguas e outras manifestações comuns na
AIDS tinham a causa da morte geralmente atribuída a outras doenças prevalentes
na região: malária, febre amarela, gastroenterites causadas por parasitas,
tuberculose (que por sua vez pode ou não estar ligada à AIDS), etc. Portanto,
havia motivos suficientes para que a epidemia inicial da AIDS na África central
passasse completamente despercebida. Mas não foi isso que aconteceu. Para ser
ainda mais justo, houve pelo menos uma pessoa que suspeitou que algo diferente
estivesse acontecendo no Congo.
Até a década de 1930, só havia uma ferrovia ligando o
interior do Congo ao oceano, e ela ficava do lado belga da fronteira – saía de
Leopoldville e chegava ao porto de Matadi, na desembocadura do Rio Congo. De
lá, as cargas de borracha, minério e outros produtos que saíam do Congo
poderiam chegar à Europa. Nessa época, os franceses decidiram não mais depender
dos belgas para transportar carga e pessoas do interior do Congo até o litoral,
e iniciaram a construção de uma ferrovia ligando Brazzaville a Pointe-Noire, a
Chemin de Fer Congo-Océan (CFCO). Os franceses recrutaram mão-de-obra de
nativos e de trabalhadores de outras colônias em regime de trabalho forçado
para construir a ferrovia, e o preço pago em vidas foi muito alto - chegando a
17 mil mortos em acidentes ou vitimados por doenças como malária e febre
amarela. Em especial, uma região de relevo acidentado e densas florestas
tropicais conhecida como Mayombe tornou-se o trecho mais problemático.
Nessa mesma época, um jovem médico chamado Léon Pales
chegava para atuar em Brazzaville. Um verdadeiro prodígio, havia se formado
recentemente na França e tinha um profundo interesse por Medicina Forense e
Antropologia. Pales realizou algumas necropsias de trabalhadores que morreram
de causas pouco esclarecidas na obra da CFCO. No total, ele descreveu 50
necropsias, sendo que 13 deles já tinham diagnóstico prévio de tuberculose e a
necropsia só confirmou o achado. 7 tinham tuberculose intestinal ou dos
linfonodos abdominais, e o diagnóstico só foi dado após a morte, e 4 tinham
outros diagnósticos. Mas 26 desses trabalhadores mortos tinham um conjunto
muito incomum de achados: peso entre 30 e 35 Kg, diarreia crônica, linfonodos
abdominais aumentados e uma atrofia cerebral incompatível com a idade. Nas
palavras de Pales, “um amontoado de ossos mantidos no lugar pela pele, e cujo
único sinal de vida está no olhar”. Ele chamou essa condição clínica de
“Caquexia do Mayombe”. Não havia recursos para que o agente daquela misteriosa
doença fosse identificado, nem no interior da África nem em lugar nenhum do
mundo: foi na mesma década de 1930 que a Humanidade tomou conhecimento dos
vírus pela primeira vez, com a invenção do microscópio eletrônico. E nenhuma
amostra de sangue ou tecido desses trabalhadores resistiu até os primeiros
testes capazes de identificar o HIV em 1985 (a amostra mais antiga data de
1959, do Congo Belga), mas qualquer médico familiarizado com a AIDS enxerga
nessa descrição de Pales um quadro muito sugestivo da doença. Léon Pales morreu
em 1988, sete anos depois do início do reconhecimento da epidemia de AIDS nos
EUA e no mundo. Teria ele alguma vez nos seus últimos anos de vida suspeitado
que a sua Caquexia do Mayombe dos anos 1930 poderia ser a AIDS?
Fonte: PEPIN, Jacques – The
Origins
of
AIDS,
Cambridge University
Press, 2011
Com o final da Segunda Guerra Mundial em 1945, as colônias
começaram a vislumbrar a possibilidade de independência. Embora tenham ficado
do lado vencedor, ingleses e franceses já não tinham a mesma força de antes da
guerra, e ficava cada vez mais difícil justificar a luta em defesa da
democracia contra os alemães e a manutenção de um império colonial ao mesmo
tempo. E com o início da Guerra Fria, americanos e russos tinham interesse em
promover a independência de colônias africanas e asiáticas para trazê-las para
seu bloco geopolítico. Os franceses tentaram resistir ao desmantelamento de seu
império e foram derrotados na Argélia e na Indochina, e Portugal sofreria
derrotas semelhantes em suas colônias africanas na década de 1970. Os
britânicos, após perder a Índia para o carisma e a não-violência de Gandhi,
perceberam que era impossível resistir e tentaram favorecer um processo mais
gradual de independência na maior parte de suas colônias, inclusive com a
preservação de algumas estruturas de poder intactas em alguns casos, como aconteceu
na África do Sul.
Assim, em 1960 o Congo Francês havia se tornado independente,
com o nome de República do Congo. E o Congo Belga? Percebendo a inutilidade de
gastar recursos com uma campanha militar para resistir ao processo de
independência de sua colônia, os belgas simplesmente entregaram o Congo e foram
embora em 1959. Com um sério problema: durante o período colonial, os belgas
nunca se preocuparam com o futuro que a colônia deles teria (o que era bastante
previsível se considerarmos a brutalidade com que os congoleses eram tratados).
No ano da independência, o Congo belga tinha 14 milhões de habitantes e 700
médicos, todos estrangeiros – a maioria belgas e franceses. 0,04% da população
havia completado o ensino secundário e, com exceção dos sacerdotes, havia 30
congoleses com curso superior em todo o país. A grande maioria dos
profissionais qualificados – médicos, professores, engenheiros, advogados,
agrônomos – eram belgas, e quando 87 mil belgas fugiram do país logo após a
independência temendo agressões e violência por parte dos congoleses, o país
entrou em colapso. Uma guerra civil teve início. Patrice Lumumba, que havia
liderado o processo de independência, foi deposto poucos meses após chegar ao
poder. Em seu lugar ficou Joseph Kasavubu, que permaneceu no poder até 1965,
quando foi deposto por Mobutu Sese Seko, que inaugurou um regime corrupto e
autoritário que durou até 1997. Durante um breve período após a independência,
o Congo belga se chamou República do Congo (mesmo nome que o antigo Congo
francês), e logo depois adotou o nome de República Democrática do Congo.
Posteriormente Mobutu mudaria o nome do país para Zaire, mudança que foi
revertida após sua morte.
O caos que se seguiu ao processo de independência da
República Democrática do Congo criou as condições perfeitas para que o HIV se
espalhasse com ainda mais força. Temendo a violência da guerra civil, muitos
congoleses fugiram do país, e outros muitos buscaram refúgio na capital, a
antiga Leopoldville agora recém-batizada como Kinshasa. A cidade cresceu
descontroladamente com a chegada de centenas de milhares de pessoas. Desemprego
e miséria chegaram a níveis estratosféricos com o colapso econômicos do país, e
o padrão de vida declinou sensivelmente. As femmes
libres perderam espaço para formas mais “convencionais” de prostituição,
com algumas mulheres recebendo mais de mil clientes por ano. Nesse contexto,
muito mais do que com as femmes libres,
a transmissão sexual do HIV ganhou força.
E foi aí também que o HIV deixou de ser um vírus que
circulava apenas na África central e ganhou o mundo. Com a República
Democrática do Congo em colapso, a ONU enviou uma força-tarefa para evitar uma
catástrofe. Além das forças de paz, centenas de profissionais especializados do
mundo todo foram convidados a trabalhar nos serviços antes ocupados pelos
belgas, pelo menos até que uma nova geração de congoleses com curso superior
estivesse pronta para substituí-los. Muitos profissionais qualificados de todo
o mundo foram trabalhar na RDC, inclusive europeus, mas a ONU deu preferência a
profissionais que também fossem negros como os congoleses, para evitar o
estigma colonial. E que falassem francês, facilitando a comunicação.
Profissionais negros francófonos que tivessem um bom nível educacional e que talvez
estivessem ansiosos para sair do seu país de origem devido ao autoritarismo e
aos problemas econômicos. E foi assim que metade dos professores listados para
atuar pela UNESCO na RDC, bem como grande parte dos profissionais de outras
áreas, vieram do Haiti.
Em algum lugar da RDC, provavelmente em Kinshasa, um desses
haitianos contraiu HIV. Possivelmente por via sexual, não se pode ter certeza.
O que se sabe é que esse único indivíduo, ao voltar para o Haiti de férias ou
com o fim de seu período de trabalho, levou o vírus para lá. Como se pode ter
tanta certeza? Pela árvore genealógica dos vírus e pelos relógios moleculares.
No início do texto mencionei que o HIV, por ter material genético composto por
RNA, sofre mutações com facilidade. Com os anos de circulação do vírus na
África, diferentes subtipos do vírus surgiram. Dentro do tipo M, que
corresponde a mais de 99% dos casos, surgiram os subtipos A, B, C, D, F, G, H e
J, que depois que a epidemia se tornou global passaram também a se recombinar
entre si. Ainda que não tenhamos um mapa da prevalência dos subtipos de HIV-1
na década de 1960, com a análise do mapa atual podemos perceber alguns padrões:
Fonte: Martine PEETERS, Coumba
TOURE-KANE and John N. NKENGASONG - Genetic diversity of HIV in Africa:
impact on diagnosis, treatment, vaccine development and
trials, AIDS 2003, 17:2547–2560
O subtipo A (laranja) é, e muito provavelmente era naquela
época, mais prevalente na África Ocidental, enquanto o subtipo C (verde)
tornou-se mais comum no sul e no leste do continente. Perceba que os países
onde há maior diversidade de vírus são a República do Congo e a República
Democrática do Congo, o que reforça a hipótese de que foi daí que o vírus
começou a se espalhar. De qualquer forma, tanto na região do Congo quanto em
toda a África a maior parte dos subtipos circulantes de HIV é A, C ou a forma recombinante
CRF02 (entre A e G). Quase não se identifica o subtipo B (rosa), e mesmo na
RDC, único país além da África do Sul onde ele aparece no gráfico, ele é muito
pouco prevalente. É por esse motivo que sabemos que o HIV foi levado para o
Haiti por uma única pessoa. Seria muita coincidência que três, cinco ou dez
pessoas contraíssem um subtipo raro de HIV de forma independente e o levassem
para fora da África. Seria esperado que no Haiti predominassem as formas A, C e
CRF02 se o HIV tivesse sido levado para lá em diferentes episódios. No entanto,
o subtipo que foi levado para o Haiti (e de lá para o mundo) era justamente do
raro subtipo B. A análise do material genético do vírus circulando hoje no
Haiti sugere que, com uma estreita margem de erro de quatro anos, o HIV chegou
no país em 1966.
O Haiti nos anos 1960 estava sob o jugo de François “Papa
Doc” Duvalier. Um médico que se tornou popular atendendo a população mais pobre
do país mais pobre das Américas, Duvalier venceu as eleições para presidente em
1957 com um discurso populista e nacionalista, e iniciou uma ditadura com
direito a culto à personalidade e esquadrões da morte. Embora o Haiti estivesse
alinhado com os EUA durante a Guerra Fria e os comunistas haitianos fossem
duramente perseguidos, as relações entre os dois países eram muito prejudicadas
pelo autoritarismo e pela corrupção de Duvalier, com os quais os americanos
faziam de tudo para não ter sua imagem associada. Seu “nacionalismo negro”
levou à perseguição de muitos mulatos, considerados a elite econômica do país
até aquela época. Muitos haitianos fugiram para os EUA, e foi também nesse
período que alguns dos profissionais mais qualificados trocaram o Haiti pela
RDC. A expulsão de camponeses de suas terras para dar lugar a membros de sua milícia
inchou os subúrbios da capital Porto Príncipe, e colaborou para o declínio da
economia haitiana. Duvalier favoreceu também cultos tradicionais incluindo o
vodu haitiano, e se dizia sacerdote praticante de vodu para agradar os setores
mais nacionalistas e tradicionais do país. Ele inclusive ordenou uma matança de
cachorros pretos em 1963 após suspeitar que um de seus inimigos políticos havia
se transformado em um cachorro preto.
François Duvalier morreu em 1971 e, como todo ditador que se
preze, deixou seu filho Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier como seu sucessor.
Jean-Claude Duvalier deu continuidade ao legado de
autoritarismo e corrupção do pai até 1986, quando foi deposto.
Essa é uma fotografia da posse de Jean-Claude Duvalier como
novo presidente do Haiti após a morte do pai em 1971. A figura com o rosto
circulado em vermelho não é de Duvalier (ele está de terno preto, no centro da
foto). Esse é Luckner Cambronne, braço direito do seu pai François, chefe da
sua milícia pessoal e ministro do Interior. Usando extorsão e outros métodos
pouco honestos, Cambronne se tornou um dos homens mais ricos do Haiti,
controlando diversos setores da economia. Dentre seus muitos negócios, estava a
venda de cadáveres para pesquisas nos EUA. No mesmo ano de 1971, Cambronne
resolveu se aventurar em um novo ramo que parecia promissor: a venda de sangue
e seus componentes para hospitais nos EUA e na Europa. Fundou a Hemo Caribbean,
que atuou até ser fechada em 1972 por intrigas políticas, pouco antes de
Cambronne ser expulso do Haiti por ser visto como uma ameaça por Jean-Claude
Duvalier. A empreitada rendeu a Luckner Cambronne o apelido de “Vampiro do
Caribe”.
Durante o breve período em que funcionou, a Hemo Caribbean se
especializou na venda de plasma, o componente líquido do sangue que contém,
entre outras coisas, anticorpos e proteínas da coagulação. Avanços recentes na
tecnologia médica aumentaram muito a demanda por plasma e outros componentes
derivados dele, e todo mês a Hemo Caribbean exportava cerca de seis mil litros
de plasma que eram destinados, entre outros, a hemofílicos nos EUA e na Europa.
Cada doador recebia cerca de quatro dólares, o que era muita coisa
principalmente para a maior parte da população haitiana, que vivia na pobreza.
O processo de extração de plasma ocorria da seguinte forma: os doadores tinham
o sangue retirado e em seguida filtrado em um processo conhecido como
plasmaférese, para separar o plasma do restante (glóbulos vermelhos, glóbulos
brancos e plaquetas). Para evitar que os doadores ficassem anêmicos e tivessem
que esperar três ou quatro meses para doar sangue novamente, os outros componentes
do sangue eram reinfundidos no doador. Dessa forma, era possível doar plasma
até uma vez por mês, e a Hemo Caribbean chegou a ter mais de quatro mil doações
de plasma por semana em seu auge. Tudo, obviamente, em condições de
biossegurança precárias. Resíduos de sangue de outros doadores frequentemente
permaneciam nos circuitos de diálise, e eram reinfundidos nos doadores
seguintes.
É muito provável que a Hemo Caribbean tenha sido responsável
por disseminar o HIV entre os haitianos, da mesma forma que as vacinas e
medicações endovenosas e intramusculares fizeram no Congo. Casos similares de
transmissão em doadores de sangue foram detectados a partir de 1986, quando os
testes para HIV começaram a ser usados em larga escala. Uma clínica de doação
de sangue no México tinha 281 doadores HIV-positivos em 1986. Na Índia, um
hemocentro onde a prevalência de HIV era praticamente zero em 1987 tinha 87% de
seus doadores com o vírus no ano seguinte. Na China, em 1990, 250 mil casos de
HIV foram ligados a clínicas e hemocentros. Embora a Hemo Caribbean tenha sido
fechada em 1972, o mesmo provavelmente ocorreu no Haiti, porque na década de
1980 um grande número de haitianos desenvolveu AIDS, sugerindo que tenham
contraído o vírus na década de 1970. Todos eles tinham o subtipo B do HIV-1,
indicando que o vírus inicial foi disseminado entre a população haitiana de uma
forma que a transmissão sexual sozinha seria incapaz de explicar.
Outro indício a favor tanto da chegada do HIV-1 do subtipo B
ao Haiti por meio de um único indivíduo quanto da sua disseminação por meio de
sangue contaminado vem da ilha vizinha, Cuba. Nas décadas de 1960 e 1970,
muitos soldados cubanos foram enviados por Fidel Castro para lutar ao lado de
guerrilheiros comunistas africanos, principalmente em Angola mas também na
própria RDC e em países vizinhos. Eventualmente, alguns desses guerrilheiros
acabaram levando o HIV para Cuba, mas a variedade de vírus em Cuba era muito
maior do que a que existia no Haiti. Além disso, não havia clínicas de venda de
plasma em solo cubano, de forma que a prevalência do HIV em Cuba permaneceu em
níveis muito inferiores do que no Haiti (0,4% contra 1,9%, considerando a
população entre 15 e 49 anos). De fato, o Haiti tem até hoje a maior
prevalência de HIV dentre todos os países fora da África.
Do Haiti, o HIV chegou aos EUA pouco tempo depois. A análise
do material genético do vírus estima que a entrada tenha ocorrido em 1969, com
margem de erro de três anos. A data coincide com o período de atuação da Hemo
Caribbean, embora pareça precedê-lo por um ou dois anos. A Hemo Caribbean
também explicaria os casos de AIDS identificados na década de 1980 entre
hemofílicos nos EUA e na Europa, alguns dos quais haviam recebido plasma de
doadores haitianos. Mas não explica a elevada prevalência de AIDS em
homossexuais no início da epidemia. Para entendê-la, é preciso voltar ao Haiti.
Apesar da perseguição aos mulatos e de outros danos que os
Duvalier causaram à economia, o Haiti era nas décadas de 1960 e 1970 um
importante destino turístico no Caribe. Suas praias paradisíacas e seu clima
tropical fizeram do país um destino muito procurado por americanos e europeus
de férias. E o Haiti começava a atrair um segmento particular dentro dos
turistas do Primeiro Mundo: os homossexuais. Seguindo a liberação sexual das
mulheres com a invenção da pílula anticoncepcional e a entrada de cada vez mais
mulheres nas universidades e no mercado de trabalho, os homossexuais também
começaram a se fazer ouvir nas sociedades democráticas do Ocidente, e não
tardaram a surgir produtos e serviços destinados a atender esse nicho de
consumidores. Cruzeiros gays partiam de ambas as costas do Atlântico rumo ao
Haiti, e o guia de viagens Spartacus, especializado em turismo gay, destacou em
uma de suas edições de 1982 que “os haitianos são bonitos, muito bem-dotados,
altamente sexualizados, desinibidos e afetuosos”. Diversas foram as teorias que
surgiram para explicar uma suposta inclinação dos haitianos para a
homossexualidade, como a ideia de que um haitiano que pratica sexo ativo com
outro homem não se considera homossexual. Provavelmente a questão era muito
mais econômica do que cultural: em um país devastado pela pobreza, muitos
haitianos aceitavam ter relações sexuais com estrangeiros em troca de cem,
cinquenta ou mesmo dez dólares, fossem eles originalmente homossexuais ou não.
Lamentavelmente, o Haiti estava longe de ser destino exclusivo do turismo
sexual no Caribe, fosse ele de qualquer natureza.
Fonte: The emergence of HIV/AIDS in the
Americas and
beyond
- M. Thomas P. Gilbert, Andrew Rambaut,
Gabriela Wlasiuk,
Thomas J. Spira,
Arthur E. Pitchenik,
Michael Worobey,
PNAS, 2007
Assim, o HIV provavelmente entrou nos EUA por duas vias diferentes
mais ou menos na mesma época: pelos homossexuais e pelos hemofílicos, ambos
contraindo o vírus a partir do Haiti. O gráfico acima mostra que, pouco tempo
depois de entrar nos EUA e no Canadá e se ramificar em inúmeras cepas, o HIV
também foi levado por um indivíduo para o arquipélago de Trinindad e Tobago, e
se ramificou em outras cepas a partir de então. Entre os homossexuais
masculinos, um grupo de pessoas que tendem a se relacionar sexualmente entre
si, o vírus circulou de forma silenciosa por toda a década de 1970. Ainda que
tenham tentado achar um único culpado e acusado o comissário de bordo canadense
Gaetan Dugas de ser o “paciente zero” responsável pela transmissão do vírus a
toda a comunidade gay dos EUA, o HIV já estava circulando entre eles muito
antes de Dugas iniciar a vida sexual. Estima-se que, em 1978, 5% da população
de homossexuais masculinos de Nova York e São Francisco era portadora do HIV.
Embora provavelmente tivesse uma prevalência menor, o vírus também circulava
entre homossexuais da Europa Ocidental, fosse porque mantinham relações sexuais
com americanos, fosse porque tinham visitado o Haiti e mantido relações com
locais. Por ser uma doença com um período de incubação longo, essas pessoas só
começaram a manifestar a doença no início da década de 1980.
Foi aí, com os primeiros casos de pneumonia por Pneumocystis carinii e sarcoma de Kaposi
identificados pelo CDC em adultos jovens homossexuais dos EUA, que a doença foi
reconhecida, e o mundo entrou em pânico. Inicialmente foi chamada de GRID (Gay-Related Imune Deficiency),
um termo que caiu em desuso quando ficou evidente que os homossexuais não eram
os únicos afetados. Os epidemiologistas listaram grupos de risco, e chamaram a
AIDS de “doença dos 4 Hs”: Homossexuais, Hemofílicos, Haitianos e, com um
aumento preocupante nos EUA e na Europa, "Heroína", ou usuários de drogas
endovenosas. Preconceitos afloraram, e muitas pessoas de mente estreita
enxergaram a AIDS como uma praga enviada por Deus para punir os homossexuais
pelas suas práticas pecaminosas. Destilou-se a xenofobia para com os haitianos,
conforme se tentava encontrar alguma propensão cultural ou genética para a
homossexualidade ou a AIDS. Nenhum dos haitianos que foram identificados com
AIDS nos EUA no início da epidemia afirmavam ser homossexuais, e a elevada
prevalência da doença entre eles se justificava simplesmente porque o Haiti era
onde o vírus havia chegado primeiro a partir da África. Nos anos seguintes, a
renda com o turismo no Haiti despencou, e nos últimos anos de seu regime
Jean-Claude Duvalier perseguiu e executou muitos haitianos por suspeita de
práticas homossexuais que, segundo ele, disseminavam a AIDS e arruinavam o
turismo no país.
A ideia dos “grupos de risco” ou dos “4 Hs” foi gradualmente
substituída pela ideia dos “comportamentos de risco”. Ou seja, o que determina
o risco não é o que você É, e sim o que você FAZ. Campanhas de saúde pública
começaram a advogar o uso de preservativos nas relações sexuais, tanto
homossexuais como heterossexuais, já que ficava cada vez mais evidente que
relações entre homens e mulheres também poderiam disseminar o vírus. O HIV
passou a acometer cada vez mais heterossexuais em muitos países do mundo, e
casos como o do astro do basquete Magic Johnson deram maior visibilidade ao
risco até então negligenciado de se adquirir o HIV por meio de relações
heterossexuais.
No mapa, baseado no estudo de Peeters sobre a prevalência
dos subtipos virais na África, é possível identificar o subtipo B (rosa) como o
mais prevalente no Ocidente, inclusive entre a população branca da África do
Sul. O subtipo C se disseminou para o sul da África e, graças às íntimas
ligações entre os dois países devido à herança colonial britânica, o HIV
subtipo C foi levado da África do Sul para a Índia. Uma cepa derivada do
subtipo B (rosa) chegou ao sudeste asiático e à China, juntamente com uma forma
recombinante chamada CRF01 (preto). Subtipos A (marrom alaranjado) e G (azul),
e a forma recombinante CRF02 (salmão com borda marrom) continuaram a ser mais
prevalentes na África Ocidental.
De forma geral, por mais que a AIDS tenha se espalhado pelo
mundo, a África continua a ser, de longe, o continente onde existe a maior
prevalência da doença. 69% dos casos de AIDS do mundo estão na África, e alguns países possuem prevalências assustadoramente altas da doença, como Botswana
(21%) África do Sul (18%), Lesoto (25%) e Moçambique (13%). O fato de todos
esses países estarem no sul do continente indica que talvez o subtipo C, o mais
prevalente na região, seja capaz de se transmitir com mais facilidade.
Curiosamente, a República do Congo (3%) e a República Democrática do Congo
(0,7%) não têm prevalências tão elevadas quanto o sul da África. Como se não
bastasse todo o atraso que trouxeram o período colonial e as guerras civis que
se seguiram, a AIDS tornou-se um fator que dificultou ainda mais o
desenvolvimento do continente.
Quando os primeiros casos começaram a ser identificados, em
1981, já havia a suspeita de que a AIDS poderia ser causada por um vírus.
Tentativas de se ligar a doença ao citomegalovírus acabaram não dando certo (na
verdade, o citomegalovírus é um dos muitos microorganismos oportunistas que se
manifestam quando o HIV já debilitou a muito imunidade, causando desde lesões
na retina até úlceras no tubo digestivo). Duas equipes principais se lançaram
na corrida para isolar e identificar o agente causador da AIDS. Uma equipe de
pesquisadores americanos liderada por Robert Gallo, que havia descrito o HTLV (Human
T-Lymphotrophic Virus), o primeiro retrovírus, trabalhava com a hipótese de que
esse novo vírus era um parente próximo dos dois tipos de HTLV já descobertos, e
chamava o HIV de HTLV-3. Do outro lado do Oceano Atlântico, no Instituto
Pasteur, em Paris, Françoise Barré-Sinoussi e Luc Montaigner sustentavam a
hipótese de que o vírus da AIDS devia ser um retrovírus, mas não tão aparentado
com o HTLV 1 e o HTLV-2. Chamaram o vírus de LAV (Lymphadenopathy-Associated
Virus, ou vírus associado à linfadenopatia, por ser as ínguas por todo o corpo
um importante achado nos pacientes que tinham o vírus). Houve uma enorme
controvérsia sobre se a equipe de Gallo se apropriou indevidamente de uma
amostra enviada pelo laboratório francês e tentou ficar com o crédito, mas em
1983 uma imagem de microscópio eletrônico mostrou que o HIV e o HTLV eram de
fato vírus diferentes. Embora Robert Gallo tenha realizado importantes
contribuições para determinar o papel do HIV na patogênese da doença, Luc
Montaigner e Françoise Barré-Sinoussi ganharam o Nobel de Medicina em 2008 pela
descoberta do HIV, dividindo o prêmio com Harald zur Hausen, que descreveu a
ligação entre o HPV e o câncer de colo de útero. Robert Gallo ficou de fora.
Uma vez descoberto e isolado o vírus, em 1985 foi criado o
primeiro teste sorológico capaz de identificar se uma pessoa era ou não
portadora do HIV. Amostras de sangue que haviam ficado armazenadas por anos
após a morte de pacientes por alguma doença misteriosa que as consumia agora testavam
positivo. Isso aconteceu com um congolês no ano de 1959 e com uma cirurgiã
dinamarquesa que morreu em 1977 após trabalhar muitos anos como voluntária no
Congo (e provavelmente sofrer inúmeros acidentes pérfuro-cortantes).
Estranhamente, um grupo de pessoas na Guiné-Bissau,
ex-colônia portuguesa na África Ocidental, manifestava sintomas idênticos aos
da AIDS, mas os testes realizados foram todos negativos. As amostras de sangue
foram levadas para análise em Portugal, e a partir dessas amostras de sangue
foi identificado o HIV-2. Testes mais modernos se revelaram capazes de
identificar tanto o HIV-1 quanto o HIV-2, e têm sido usados desde então na
maioria dos países.
Em 1986, a primeira medicação antirretroviral começou a ser
empregada no tratamento do HIV: a Zidovudina, ou AZT. Não se pode dizer que ela
foi descoberta nessa época: a droga existia desde 1964, e tinha sido empregada
sem sucesso como agente antioncogênico, em uma época em que se acreditava que
todos os cânceres tinham origem em algum vírus. Embora de fato haja alguns
exemplos (o câncer de colo de útero e o HPV, o hepatocarcinoma e o HBV, o sarcoma
de Kaposi e o HHV-8), a grande maioria dos tipos de câncer conhecidos hoje
surge da replicação descontrolada de uma célula motivada por um dano no DNA que
não tem relação com nenhum vírus. Como resultado, o AZT ficou na geladeira por
duas décadas, até que alguém teve a ideia de testar aquele antiviral esquecido em
pacientes com HIV e descobriu que de fato ele conseguia inibir a replicação
viral e reduzir a quantidade de vírus circulando no sangue. No entanto, a dose
empregada era elevadíssima e a posologia era péssima, com vários comprimidos
sendo ingeridos diversas vezes ao dia. Efeitos colaterais eram debilitantes, e
manter um tratamento regular era martirizante – e caro. Poucos anos depois,
surgiu outro antirretroviral, a Didanosina (DDI), com o mesmo mecanismo de ação
do AZT (atrapalham a transformação do RNA viral em DNA por ter uma estrutura
química similar à de um ácido nucleico e com isso “travar” a enzima transcriptase
reversa). Porém só em 1996, com o surgimento de uma nova categoria de
antirretrovirais (os inibidores de protease, capazes de inibir a síntese de
proteínas pelo vírus), foi possível combinar as drogas em um tratamento
realmente efetivo com no mínimo três medicamentos diferentes. Surgiu o
tratamento conhecido pela sigla inglês HAART (Highly Active Anti-Retroviral
Therapy, ou terapia antirretroviral altamente efetiva), e o impacto que ela
teve na sobrevida dos pacientes vivendo com HIV e AIDS foi sem precedentes. O
HIV deixava de ser uma sentença de morte e caminhava para se tornar uma doença
crônica incurável mas tratável, como o diabetes e a hipertensão. Houve quem
proclamasse que estávamos a um passo da cura, mas pouco tempo depois se
descobriu que impedir a circulação do vírus era uma coisa, e eliminá-lo do
material genético das células de defesa e dos “santuários” do organismo onde o
HIV se escondia era outra completamente diferente.
Além disso, com o aumento da sobrevida surgiram os efeitos
colaterais tardios da terapia antirretroviral: a Zidovudina causava anemia, a
Didanosina poderia causar cirrose, os inibidores de protease redistribuíam a
gordura do corpo de forma desfigurante e estigmatizante (lipodistrofia)...
Novas drogas surgiram, mais potentes e com menos efeitos colaterais, e as
antigas foram deixando as farmácias aos poucos.
O caminho teve seus sobressaltos, e a ignorância venceu em
algumas ocasiões. O presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, afirmou que a
AIDS era causada diretamente pela desnutrição e pela pobreza, e não pelo HIV, e
graças a isso a distribuição de antirretrovirais no país foi seriamente
prejudicada. O continente africano segue sofrendo a maior parte das baixas
relacionadas à AIDS no planeta, com homens e mulheres sendo vitimados
igualmente. Com um agravante: como no Ocidente há uma prevalência muito mais
alta do subtipo B do HIV-1, a maior parte das drogas é testada contra vírus do
subtipo B, e a eficácia contra outros subtipos (como o A e o C, mais comuns na
África) nem sempre é a mesma.
Em grande parte do Ocidente, a previsão de que o HIV se
alastraria para além dos grupos de pessoas com comportamento de risco, como na
África, concretizou-se apenas parcialmente ou não chegou a se concretizar. Nos
últimos anos, tem havido uma nova epidemia entre jovens em diversos países,
inclusive no Brasil. Proporcionalmente, a quantidade de casos entre
homossexuais tem aumentado outra vez, indicando que talvez as estratégias de
conscientização dos jovens para o uso de preservativos precisem ser
substituídas, ou pelo menos revistas. A profilaxia pré-exposição pode ser uma
alternativa, mas só o tempo dirá se ela se consolidará de verdade.
Contudo, nem tudo são más notícias. Drogas mais modernas e
com menos efeitos colaterais têm sido desenvolvidas, e estudos recentes mostram
que a chance de pacientes com carga viral indetectável transmitir o HIV é
desprezível, desde que não tenham outras DSTs associadas. É uma boa notícia
para casais homo e heterossexuais em que um dos parceiros tem o vírus (e se
trata adequadamente) e o outro não. E as pesquisas continuam a avançar.
Passadas quatro décadas do reconhecimento dos primeiros casos de AIDS, ainda
não chegamos à cura, embora tenhamos nos aprofundado muito no conhecimento do
vírus e de como funciona nosso sistema imunológico. Há quem diga que nunca
chegaremos a uma cura do vírus, mas eu pessoalmente acho que as pessoas com
frequência subestimam a capacidade humana, para o bem ou para o mal. Mas uma
coisa é certa: sempre que alguém proclamar que o ser humano atingiu o domínio
sobre a natureza e sobre os microorganismos que nela habitam, deve-se tomar
essa opinião com bastante cautela. Em algum lugar do mundo, um microorganismo
novo pode surgir e nos obrigar a rever nossos conceitos, nossa posição no
universo e as verdades nas quais acreditamos.
LEITURAS RECOMENDADAS:
Jacques Pepin – The
Origins
of
AIDS,
Cambridge University
Press, 2011
David Quammen, The Chimp and the River – How
AIDS emerged
from
an
African
Forest,
2012