quarta-feira, 22 de agosto de 2018

A História da AIDS (desde o começo)



Em 5 de junho 1981, o Morbidity anda Mortality Week Report, um veículo de informação sobre surtos e epidemias pertencente ao Center of Disease Control, nos EUA, lançou um informe que provavelmente passou despercebido. O que é perfeitamente compreensível, porque a maior parte desses informes semanais consiste em pequenos surtos e eventos limitados a uma pequena região geográfica, e só em alguns casos esses fenômenos locais ganham alguma projeção maior. Em meio a outras notícias que falavam de um novo surto de sarampo e de casos de dengue em americanos que voltavam do Caribe, o informe em questão falava de cinco pacientes admitidos entre 1980 e 1981 em três diferentes hospitais da Califórnia com um tipo muito raro de pneumonia, causada por um protozoário então chamado de Pneumocystis carinii, que costumava acometer pessoas com graves deficiências no sistema imune. Todos os cinco pareciam estar fora de qualquer risco de contrair uma pneumonia desse tipo. Eram todos homens jovens californianos e, coincidentemente ou não, homossexuais. Quando o CDC recebeu cinco pedidos diferentes para liberação de Pentamidina, uma medicação muito pouco usada mas que tinha como uma de suas principais indicações o tratamento da pneumonia por Pneumocystis carinii, os pesquisadores suspeitaram que talvez houvesse alguma coisa por trás do caso desses cinco jovens.


Poucos meses depois, outro informe do MMWR falava de vinte e seis casos de sarcoma de Kaposi, novamente em homens jovens e homossexuais vivendo em Nova York e na Califórnia. O sarcoma de Kaposi, descrito no fim do século XIX, era um tipo de tumor de vasos sanguíneos muito raro. Algumas de suas variantes acometiam idosos da região do Mediterrâneo e crianças de certas localidades na África, mas ver essas lesões de cor vinhosa ou violeta espalhadas pela pele de homens jovens era algo bastante incomum. Alguns deles, além do sarcoma de Kaposi, também apresentavam pneumonia por Pneumocystis carinii, o que possivelmente fazia com que o caso desses vinte e seis jovens tivesse alguma relação com o daqueles cinco californianos.



Em 9 de julho de 1982, um novo informe do MMWR falava de novos casos de sarcoma de Kaposi. Porém, dessa vez não eram jovens homossexuais californianos ou nova-iorquinos, e sim trinta e quatro homens e mulheres do Haiti e que haviam procurado atendimento em um hospital na Flórida. Alguns deles tinham também pneumonia por Pneumocystis carinii, lesões no esôfago por citomegalovírus, abscessos por toxoplasmose no cérebro, meningite por um fungo chamado Cryptococcus e candidíase na boca e no esôfago. Dessas trinta e quatro, dez haviam morrido.



Na semana seguinte, o MMWR lançara outro informe: três novos casos de pneumonia por Pneumocystis em homens jovens. Nenhum deles era homossexual, mas todos eram hemofílicos, portadores de uma doença genética que dificulta a coagulação do sangue que os obrigava a receber constantes transfusões de plasma com proteínas da coagulação e, ocasionalmente, também de hemácias para combater a anemia que resultava da perda de sangue. Dois haviam morrido, e um estava em estado grave.
A suspeita de que essa síndrome que destruía a imunidade do hospedeiro poderia ser transmitida por meio de transfusões de sangue veio no final daquele mesmo ano de 1982. Em 10 de dezembro, o MMWR reportara o caso de um recém-nascido com 1 ano e 8 meses que havia recebido múltiplas transfusões de sangue, inclusive plaquetas de um doador que depois se descobriu ser portador dessas mesmas doenças associadas à baixa imunidade. O bebê apresentava aumento do baço e do fígado, uma infecção grave no ouvido, candidíase oral e uma forma de hepatite que ainda não se podia caracterizar.


Essa trágica sequência de informes do CDC é considerada por muita gente a origem da maior epidemia da segunda metade do século XX. A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, ou AIDS na sigla em inglês, abalou a crença de que a Humanidade estava prestes a vencer as doenças infecciosas – a varíola havia acabado de ser erradicada! Houve quem acusasse alguma conspiração global de criar e espalhar essa doença nova para controlar a população do Terceiro Mundo que não parava de crescer, houve quem dissesse que a AIDS era um flagelo de Deus para punir os hábitos depravados dos homossexuais, houve quem inventasse as teorias mais absurdas (como sempre acontece em cada epidemia). Uma quantidade absurda de recursos no mundo todo foi aplicada em pesquisa para tentar entender e curar a doença. Hoje compreendemos muito melhor como ela age e como podemos agir para combatê-la.

Sabemos que ela é causada pelo HIV, que é um lentivírus, um tipo de retrovírus. Os retrovírus são um grupo especial de vírus que, em vez de conservar seu material genético em uma cadeia dupla de DNA, utilizam uma fita de RNA – uma cadeia similar, mas mais simples e propensa a erros de cópia, que chamamos de mutações. Esse RNA é convertido em DNA e emendado no material genético do núcleo da célula hospedeira quando o vírus a invade e usa a estrutura dela para produzir novas cópias virais. Esse caminho, de transformar RNA em DNA, é o contrário do que a célula faz quando sintetiza uma proteína, e daí os vírus que fazem isso são batizados como retrovírus. Essa é uma das forças e fraquezas que os retrovírus possuem: por ser feitas com base em RNA propenso a mutações, muitas das suas cópias são defeituosas e pouco eficazes, mas as que funcionam mudam suas características tão rapidamente que conseguem escapar da memória do nosso sistema imune. É como se vários tipos diferentes de vírus existissem ao mesmo tempo em um indivíduo: algumas podem ser resistentes a um determinado medicamento, e não há como fazer uma vacina contra um vírus que gera tantas variantes tão rápido.
Sabemos também que o HIV surgiu não nos EUA, mas na África. Por meio de análises comparadas de material genético, sabemos que os vírus mais parecidos com o HIV são os vírus de imunodeficiência símia, ou SIV. Assim como o HIV, eles são lentivírus, ou seja, vírus “’lentos”, que geralmente se manifestam muitos e muitos anos após infectar o hospedeiro. Isso sugere um longo período de adaptação evolutiva entre parasita e hospedeiro, com o último elaborando defesas específicas para conter o primeiro (caso contrário, o hospedeiro já teria sido varrido do mapa pelo parasita). Diversas espécies de mamíferos possuem seus próprios lentivírus, que as infectaram em algum momento da sua jornada evolutiva e coevoluíram com eles. Há até mesmo “lentivírus endógenos”, pedaços de DNA que um dia foram RNA de um lentivírus e que agora fazem parte do material genético de seus hospedeiros, e são incapazes de produzir vírus novos.

Fonte: Cold Spring Harb Perspect Med 2011;1:a006841 

As análises do material genético que indicam similaridades entre os diferentes tipos de lentivírus e entre os tipos de HIV são baseadas em “relógios moleculares”. Apesar do nome estranho, o conceito é simples: os vírus, assim como os animais, as plantas e todos os outros seres vivos, sofrem mutações e se diferenciam em determinado ambiente. Avaliando as diferenças entre o material genético de diversos espécimes de um vírus, por exemplo, é possível saber quais cepas ou “ramos da árvore” são parentes mais próximos de quais ramos e são mais distantes de quais outros ramos. Mais do que isso, conhecendo-se a velocidade média das mutações dentro de uma determinada espécie, é possível deduzir, dentro de uma margem de erro confiável e estreita, como era o ancestral comum de todas as variantes que existem hoje e há quanto tempo ele começou a se ramificar e dar origem a elas.


O esquema da esquerda mostra quatro variedades de um determinado vírus, 1a (verde escuro), 1b (roxo), 2a (azul claro) e 2b (azul-turquesa), que evoluíram de duas variedades, 1 (azul escuro) e 2 (azul claro). Comparando-se a sequência genética deles, é possível saber que 1a e 1b surgiram a partir de 1, e 2a e 2b surgiram a partir de 2, e deduzir pelo menos parcialmente qual era a sequência genética dos vírus ancestrais com base no que é mais comum entre os vírus de hoje. Se soubermos que em média as mutações que levaram os tipos 1 e 2 a se transformar em 1a, 1b, 2a e 2b levaram N anos, podemos prever em quanto tempo um vírus ancestral de todos eles deu origem aos tipos 1 e 2, e como era sua estrutura genética.
O mesmo raciocínio feito para a distribuição no tempo serve para a distribuição no espaço. Conforme os vírus sofrem mutações e se multiplicam em determinado território, eles se distribuem de forma heterogênea (esquema da direita). A não ser que haja uma influência externa muito forte, o vírus ancestral surgiu mais ou menos no centro a partir de onde saíram todos os outros – um para o norte, outro para o sul, outro para o leste...

Feita essa importante introdução sobre relógios moleculares, o caminho do HIV fica muito mais fácil de ser traçado. Pesquisadores usando biologia molecular conseguiram identificar quatro tipos principais de HIV-1: o M, de main (principal), corresponde a mais de 99% dos vírus do planeta, e por sua vez se subdivide em A, B, C, D, F, G, H, J e formas recombinantes entre elas. O O, de outlier (externo), é raro, acometendo algumas poucas pessoas no Camarões, na Guiné Equatorial e no Gabão. O N (não-M e não-O, que para mim parece mais uma forçada de barra para manter a ordem alfabética) é mais raro ainda, com apenas dois casos registrados no Camarões. E por fim existe o P, que é uma incógnita e há inclusive quem duvide da sua existência. A árvore genealógica dos diferentes vírus da imunodeficiência símia e dos diferentes HIV-1 é a seguinte:


Segundo ela, o HIV-1 do tipo P (em marrom) é parecido com alguns tipos de SIV encontrados em gorilas (à direita lê-se SIVgor de Gorilla gorilla), mas que também são aparentados com os SIV de chimpanzés, indicando que um chimpanzé talvez tenha passado seu vírus para um gorila e o gorila para um humano, ou o mesmo grupo de chimpanzés tenha passado o seu SIV para gorilas e para humanos. Os outros tipos de HIV-1, tanto o M (vermelho) quanto o N (azul claro) e o O (azul escuro) parecem ter vindo de chimpanzés. À direita, SIVcpz indica SIV de chimpanzés (Pan troglodytes troglodytes, Ptt, e Pan troglodytes schweinfurthi, Pts, são duas espécies de chimpanzé).
Analisando espacialmente, dá para perceber que a região onde gorilas e chimpanzés P. t. troglodytes e P. t. schweinfurthi coexistem, e portanto devem ter dado origem aos vírus ancestrais do HIV, é essa circulada em vermelho. Ela corresponde ao sudeste do que hoje é Camarões.


Olhando para essa “árvore genealógica” com mais cuidado, é possível perceber um detalhe chocante. Os ramos que correspondem aos tipos de HIV-1 (vermelho, azul claro, azul escuro e marrom) não estão ligados entre si. O HIV-1 tipo M é parente mais próximo do SIV de um grupo de chimpanzés do que do HIV-1 tipo O, que por sua vez é parente mais próximo de outro grupo de SIV, o dos chimpanzés e gorilas. O mesmo vale para os outros dois. Ou seja, os tipos de HIV-1 não têm um ancestral humano comum. O vírus foi passado para os seres humanos não uma única vez, mas em quatro oportunidades diferentes! De fato, os quatro círculos pretos nos ramos ancestrais da árvore indicam pontos onde mais provavelmente houve a passagem do vírus de um símio para um humano. E mais: analisando cronologicamente com relógios moleculares os tipos de HIV mais antigos, o M e o N, chega-se a outra conclusão igualmente chocante: as primeiras passagens do vírus muito provavelmente ocorreram entre 1900 e 1910! Muito, muito antes da AIDS ser descrita em 1981!
E como um vírus circulando no sangue de um chimpanzé vai parar no sangue de um humano? Muitas teorias surgiram, algumas extremamente mirabolantes envolvendo transplantes de testículos de chimpanzés em humanos por um cirurgião excêntrico para combater a infertilidade, outras envolvendo relações sexuais entre humanos e chimpanzés (os chimpanzés são muito mais fortes do que os humanos e podem ser muito agressivos, e imagino que um homem que tentar estuprar uma fêmea de chimpanzé certamente acabará morto ou gravemente ferido), mas a explicação mais plausível é mesmo a boa e velha caça. A carne de chimpanzé e de outros primatas é vendida no mercado negro em diversas regiões da África por suas supostas qualidades afrodisíacas e pelo seu exotismo, embora a prática seja duramente combatida pelas autoridades policiais.



Em menor escala, há também a caça de filhotes vivos para o uso como animais de estimação, prática também ilegal. Além disso, algumas tribos como o Bakwele, de Camarões, usam chimpanzés em seus rituais de iniciação. O jovem a ser iniciado precisa matar um chimpanzé para ser considerado homem, e no fim do ritual os membros mais proeminentes da tribo se banham em sangue do chimpanzé morto e a carne é distribuída entre todos os membros. Independentemente da discussão sobre isso ser um “ritual bárbaro” ou “uma manifestação da cultura local”, é uma ótima forma de se adquirir uma zoonose.
Uma breve explicação: nós humanos gostamos de colocar nomes nas coisas e encaixá-las em categorias, mas a Natureza existe em um grande continuum, sempre desafiando os limites arbitrários que tentamos impor. Um chimpanzé tinha um SIV (vírus da imunodeficiência símia) e acabou passando para um humano, que contraiu o primeiro HIV (vírus da imunodeficiência humana). O nome é diferente, a categoria é diferente, mas o vírus é o mesmo! Uma cepa do SIV do chimpanzé que era capaz de se reproduzir nas células humanas, graças à similaridade genética entre as duas espécies, acabou “virando” HIV, mas continuou sendo muito parecido com os outros tipos de SIV. Inclusive, tudo indica que o SIV não é completamente inofensivo para os primatas como se acreditava até poucos anos atrás. Embora não cause doença similar à AIDS nos humanos a menos que seja transmitido de uma espécie de primata para outra, o SIV diminui o tempo de vida de chimpanzés e gorilas. Observações realizadas em reservas e santuários de primatas na África mostram que os primatas portadores do SIV de fato vivem menos do que os outros.

Nos parágrafos anteriores eu me referi ao vírus da AIDS como HIV-1. Isso significa que existe um HIV-2? Sim! Muito mais raro que o HIV-1 e com mais dificuldade para infectar humanos, o HIV-2 está praticamente restrito à África Ocidental (Libéria, Senegal, Costa do Marfim, Guiné-Bissau). Se o HIV-1 tem origem no chimpanzé, o HIV-2 surgiu a partir do SIV presente em um macaco que só existe nessa região, o mangabeu-fuligento (Cercocebus atys atys, sooty mangabey). Considerado por alguns uma praga por atacar plantações, muitas vezes é adotado por famílias locais e usado como animal de estimação.



Aqui está um no colo de uma jovem africana:


Não é difícil imaginar que um desses macacos tenha uma vez ou outra arranhado a pele de uma pessoa e transmitido seu SIV para ela, dando origem ao primeiro HIV-2. De fato, isso parece ter acontecido pelo menos oito vezes, porque pela análise filogenética há oito tipos de HIV-2 não aparentados entre si, todos originários de diferentes cepas de SIV oriundos de mangabeus-fuligentos.



Ou seja, o HIV não infectou humanos uma única vez. Se somarmos as quatro cepas de HIV-1 e as oito cepas de HIV-2, foram pelo menos doze eventos diferentes que resultaram na transmissão do vírus para seres humanos. Isso só levando em conta as cepas que existem hoje. Se considerarmos que o SIV deve existir entre primatas não-humanos há séculos ou talvez milênios, é possível que tenha havido muitos outros episódios de contágio entre espécies, talvez resultando na morte de um único indivíduo, de uma família infectada ou de uma pequena tribo. Na grande maioria das vezes a ligação entre infecção e doença deve ter passado despercebida, fosse porque nos vilarejos da África tropical era muito mais fácil morrer de outra causa (malária, tripanossomíase africana, febre amarela ou o ataque de algum animal selvagem), fosse porque a doença causada pelo HIV progride lentamente e em seus estágios finais pode ser facilmente confundida com outras doenças. Ao infectar células do sistema imune, em especial os linfócitos T CD4 que coordenam a resposta imunológica celular (isto é, não produtora de anticorpos) contra diferentes tipos de microorganismos, o HIV torna o hospedeiro suscetível a um grande número de doenças causadas por vírus, fungos, protozoários e bactérias, incluindo as micobactérias causadoras da tuberculose. No entanto, o efeito do vírus sobre os linfócitos ocorre muito devagar. Eles perdem força, “envelhecem” e morrem aos poucos. Se uma pessoa adulta com o sistema imunológico saudável tem em torno de 1000 linfócitos T CD4 por milímetro cúbico de sangue (um número que pode variar bastante para mais ou para menos), a infecção pelo HIV vai reduzindo seu número aos poucos, 50, 100, 200 por ano, e as manifestações típicas da baixa imunidade que acompanham a AIDS geralmente surgem quando esse número de linfócitos cai para menos de 200 por milímetro cúbico. Daí essas doenças serem conhecidas como “oportunistas”: enquanto o sistema imunológico estiver em boas condições, os microorganismos que as causam ficam contidos e quase nunca geram problemas, mas quando as defesas do organismo não têm mais capacidade para contê-los eles se espalham e se fazem sentir de diferentes formas.
Agora vem uma questão espinhosa e que nos leva à segunda parte do texto: se o SIV foi transmitido várias vezes para os humanos e deu origem ao HIV nos últimos séculos ou milênios, por que a AIDS deixou de ser uma manifestação isolada de pequenos grupos na África e ganhou o mundo, dando origem à maior epidemia do final do século XX em todo o planeta? E por que, especificamente, na virada do século XIX para o século XX? Foram essas perguntas que me fizeram escrever esse texto em primeiro lugar, e para respondê-las precisamos sair da Biologia Evolutiva e entrar na História.



Essa é a região central da África hoje, dividida em diversos países que não necessariamente possuem grande unidade cultural, por obra do neocolonialismo europeu. Toda essa região é coberta por uma densa floresta tropical, e muito bem servida de rios:



Qualquer pessoa que já visitou uma região tropical sabe como os rios são importantes não só para obtenção de água e alimento, mas também para o transporte de pessoas e carga. É muito mais fácil viajar em um barco do que construir uma estrada ou mesmo uma trilha na floresta. No Congo não é diferente hoje e nem era no começo do século XX. O maior rio da região, o Rio Congo, recebe água de uma miríade de afluentes. Entre eles está o rio Sangha, que nasce no sul de Camarões. Ele ajuda a explicar o porquê de, apesar de provavelmente o primeiro humano a adquirir essa cepa atual de HIV a partir de um primata com SIV ter sofrido o contágio no sul de Camarões, a circulação inicial do vírus entre humanos não ocorreu ali. Do sudeste de Camarões, essa primeira vítima muito provavelmente desceu o rio Sangha até o maior centro urbano da região, segundo o esquema abaixo:



E qual era esse centro urbano por onde o HIV começou a circular? Para entender de forma mais detalhada, precisamos voltar mais um pouco no tempo e observar um mapa da África Central na segunda metade do século XIX:


Em 1849, os franceses interceptaram um navio negreiro repleto de escravos que partira de algum lugar da África rumo ao Brasil. Em uma época de crescente força do movimento abolicionista em toda a Europa, os franceses resolveram libertar toda aquela gente que certamente morreria cativa em alguma fazenda brasileira de café ou cana-de-açúcar. Deram meia-volta e aportaram no litoral africano, fundando uma colônia chamada Libreville, destinada a abrigar esses escravos libertos. Ela faria parte da então África Equatorial Francesa. No entanto, a partir da segunda metade do século XIX e graças ao recém-isolado quinino, os europeus poderiam ir mais a fundo no continente africano em busca de riquezas sem tanto medo de contrair malária. Assim, uma expedição francesa liderada por um italiano chamado Pietro Savorgnan de Brazza fundou a cidade de Brazzaville na margem noroeste do Rio Congo em 1883. Brazzaville cresceu e em pouco tempo se tornou maior que Libreville.

Na margem oposta do Rio Congo, em breve outra cidade foi fundada, mas não por franceses. O rei Leopoldo II, da Bélgica, financiou uma expedição liderada por um explorador britânico chamado Henry Morton Stanley e, por ter gostado do que viu, resolveu tomar aquele pedaço da África para si. Não para a Bélgica, para si próprio.

Leopoldo II no início de seu reinado

Usando influência política e convencendo os outros países da Europa de que ele levaria a civilização, a decência, a moral, os bons costumes e a caridade ao interior da África e eliminaria o tráfico de escravos para o Oceano Índico realizado pelos árabes, Leopoldo II conseguiu transformar uma porção enorme da África Central em seu domínio pessoal. Na verdade, o argumento que convenceu o resto da Europa foi a ideia de um Estado-tampão no meio das colônias das grandes potências europeias (Inglaterra, França e em menor extensão Portugal), evitando que elas se engajassem indefinidamente em disputas territoriais na região. Em 1885, ele criou o Estado Livre do Congo, e fundou uma capital com seu nome na margem sudeste do Rio Congo: Leopoldville.
Como era de se esperar, o propósito humanitário do Estado Livre do Congo ficou só no papel. Leopoldo II fez fortunas explorando a extração de borracha nas selvas congolesas, e usava métodos cruéis para que os povoados preenchessem as cotas de produção de borracha: intimidação por meio de milícias armadas, execuções e, o que o deixou bastante conhecido, a amputação de crianças e adultos dos vilarejos que não produziram borracha suficiente. 




Estima-se que antes de Leopoldo II a região onde hoje é o Congo tinha cerca de 30 milhões de pessoas. Após a independência, em 1959, havia apenas 14 milhões. Suas atrocidades revolveram de tal forma a opinião pública na Europa que o governo belga tirou das mãos de Leopoldo II o controle sobre o Estado Livre do Congo e o assumiu diretamente em 1908. Leopoldo morreu no ano seguinte.



Charges denunciando a brutalidade do regime de Leopoldo II no Congo circularam por toda a Europa, e Mark Twain escreveu uma obra ridicularizando Leopoldo II, “O Solilóquio do Rei Leopoldo”.

Foi nesse contexto que o HIV começou a circular entre humanos. Do sudeste de Camarões, ela chegou pelo rio até Leopoldville. Mas definitivamente não ficou restrita à cidade. A história da circulação urbana do HIV envolve o Congo Belga e o Congo Francês, porque Leopoldville e Brazzaville ficavam literalmente de frente uma para a outra, uma de cada lado do rio:



Essa é uma foto atual das duas cidades (Leopoldville atualmente se chama Kinshasa, mas Brazzaville mantém o mesmo nome até hoje). No centro da imagem, um alargamento do rio circundando um arquipélago fluvial forma a Piscina de Stanley. Dos dois lados, imediatamente a jusante, marcadas por estrelas, estão as duas cidades. Que na prática podem ser consideradas uma só. O fluxo de pessoas de um lado para o outro era e é constante, e o controle é precário. Se o nosso viajante do Camarões trouxe o HIV para Leopoldville, o vírus não tardou a chegar na margem oposta logo depois.
Como muitas outras cidades no planeta, Leopoldville e Brazzaville sofreram um aumento populacional explosivo ao longo do século XX. Em 1904, Brazzaville tinha pouco mais de 5.000 habitantes, sendo cerca de 250 europeus e o restante nativo. Em 1931 a população chegara a 18.000 pessoas, e em 1960 chegou aos 120.000. Leopoldville cresceu ainda mais rápido: se na virada do século XIX para o século XX tinha cerca de 12.000 habitantes, na época da independência do Congo Belga, em 1959, a população chegava aos 477.000.
Em ambas as cidades, mas de forma mais característica em Leopoldville, havia um desequilíbrio importante. A relação numérica entre homens e mulheres variava de 2 homens para cada mulher para até 10 homens para cada mulher em alguns períodos. As cidades eram verdadeiros canteiros de obras feitos para abrigar equipes de trabalhadores. Famílias, tanto de europeus quanto de africanos, não eram bem-vindas. E mulheres solteiras, menos ainda. Em nome da moralidade e da decência dos costumes, as autoridades coloniais queriam evitar que as cidades se tornassem antros de “depravação e prostituição”. E como costuma acontecer quando se tenta implementar medidas autoritárias em nome da moralidade, da decência e da hipocrisia, não funcionou. Pelo contrário: isso só aumentou a demanda reprimida por sexo e estimulou a prostituição. Entraram em cena as femmes libres.
Tentando fugir de estruturas patriarcais rígidas e costumes arcaicos como casamento infantil e mutilação genital, e em busca de oportunidades, muitas mulheres saíram de vilarejos no interior e chegaram às grandes cidades, e nas duas capitais irmãs dos dois lados do Rio Congo não foi diferente. Por mais que as autoridades tentassem restringir a entrada de mulheres solteiras, ocasionalmente se fazia vista grossa e elas acabavam ganhando a oportunidade de entrar, embora com um rígido controle por parte dos responsáveis pelo controle sanitário. Como a disparidade entre homens e mulheres era muito grande, era comum que essas mulheres se envolvessem por muitos anos com diferentes homens, com uma média de três, quatro ou cinco homens por ano, prestando serviços como cozinhar, limpar a casa e, ocasionalmente, serviços sexuais. Não se pode dizer que essas mulheres eram prostitutas, ou pelo menos no sentido que nós ocidentais costumamos considerar. Há quem diga que suas atividades constituíssem “prostituição de baixo risco”. Três a cinco parceiros sexuais em um ano é um número muito pequeno para se disseminar um vírus como o HIV. As femmes libres no máximo podem ter contribuído para que o vírus continuasse a circular, ainda que entre poucas pessoas. Os verdadeiros responsáveis pela disseminação do HIV eram outros.
Fosse para garantir que a população geral não adoecesse e não transmitisse doenças para os europeus, fosse para mostrar aos povos subjugados o quanto os colonizadores se preocupavam com a saúde e o bem-estar deles, o “fardo do homem branco” envolvia não só mutilar nativos que não preenchessem as cotas de produção ou fazê-los trabalhar dia e noite. Também envolvia realizar campanhas de vacinação em massa contra doenças imunopreveníveis, como a varíola. Além disso, o tratamento de doenças como a tripanossomíase africana envolvia repetidas aplicações de medicamentos endovenosos ou intramusculares (uma injeção por mês durante três anos). As femmes libres também recebiam tratamento regular contra ISTs, inclusive “sífilis” (sintomas inespecíficos podiam ser sífilis, uma reação de VDRL positiva em quem tinha uma doença também causada por espiroquetas chamada bouba era tratada como sífilis, etc). O tratamento geralmente era com sais de arsênico, embora haja registros de injeção intramuscular de outras soluções, inclusive leite (!). Clínicas chegavam a aplicar 300 doses em um único dia de trabalho. Também o tratamento da tuberculose em meados do século XX era feito com injeções diárias de estreptomicina associada a medicamentos orais durante um mês e doses mais espaçadas nos meses seguintes.
Tudo isso com um detalhe: não havia agulhas descartáveis nem esterilização adequada. Seringas de vidro eram as mais usadas, tratadas como preciosidades no interior da selva africana por ser tão difíceis de obter, e elas eram usadas centenas de vezes em um só dia. Fosse porque a estrutura era precária e não havia autoclaves suficientes, fosse porque simplesmente não dava tempo de esterilizar as agulhas e seringas, o fato é que elas eram reutilizadas com bastante frequência. Um médico francês chamado Eugene Jamot que atuou no interior do Congo Francês no combate à tripanossomíase africana tratou 5.347 pessoas entre 1917 e 1919 usando apenas seis seringas de vidro.
Agulhas podem ser grandes disseminadores de doenças, principalmente quando não são bem esterilizadas. Militares dos EUA que receberam vacina contra febre amarela na Segunda Guerra Mundial tinham na década de 1980 uma prevalência de HBV, o vírus causador da hepatite B, de 97%; militares que não foram vacinados tinham 13% de prevalência. No Egito, uma campanha gigantesca para erradicar a variedade de esquistossomose causada pelo verme Schistosoma haematobium usando medicações injetáveis na década de 1930 resultou na contaminação de milhões de pessoas com hepatite C, que sabidamente pode ser transmitido por agulhas. Mais da metade da população do Egito teve contato com o vírus da hepatite C, sendo que em alguns vilarejos a proporção chegava a 70%.


Fonte: PEPIN, Jacques, LOBBÉ, Annie-Claude, Noble goals, unforeseen consequences: control of tropical diseases in colonial Central Africa and the iatrogenic transmission of blood-borne viroses. Tropical Medicine and International Health, volume 13 no 6 pp 744–753 june 2008
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18397182

Também na África Subsaariana (incluindo o Congo) a prevalência de hepatites B e C era maior naquelas faixas etárias que receberam vacinas e tratamentos endovenosos até meados do século XX. É bastante plausível que, assim como as hepatites B e C, o HIV tenha se disseminado entre as pessoas no Congo (francês e belga) por meio de agulhas sem esterilização, durante anos ou décadas de domínio europeu.


Mas estamos falando de AIDS, uma doença que, apesar de progredir devagar e permanecer silenciosa por muitos anos, em sua fase final é bastante debilitante e causa uma constelação enorme de sintomas – febre, perda de peso, infecções respiratórias, diarreia, ínguas pelo corpo, entre outras muitas manifestações que em sua maioria são causadas pelas doenças oportunistas que o HIV permite que ajam sem controle. Ninguém nessas décadas de disseminação do HIV percebeu que uma nova doença parecia estar surgindo?
Para ser justo com os médicos e microbiologistas da época, os fenômenos geralmente se tornam mais óbvios quando são vistos em retrospectiva. É importante lembrar que a expectativa de vida da população do Congo (e do restante da África subsaariana) era muito baixa, e a maior parte das pessoas infectadas morria de alguma outra causa antes que o HIV debilitasse o organismo ao ponto de causar a AIDS. Além disso, os recursos naquela região eram muito precários para que se conduzisse uma investigação adequada, na maioria das vezes. Pacientes que morriam com febre, perda de peso, insuficiência respiratória, diarreia, ínguas e outras manifestações comuns na AIDS tinham a causa da morte geralmente atribuída a outras doenças prevalentes na região: malária, febre amarela, gastroenterites causadas por parasitas, tuberculose (que por sua vez pode ou não estar ligada à AIDS), etc. Portanto, havia motivos suficientes para que a epidemia inicial da AIDS na África central passasse completamente despercebida. Mas não foi isso que aconteceu. Para ser ainda mais justo, houve pelo menos uma pessoa que suspeitou que algo diferente estivesse acontecendo no Congo.



Até a década de 1930, só havia uma ferrovia ligando o interior do Congo ao oceano, e ela ficava do lado belga da fronteira – saía de Leopoldville e chegava ao porto de Matadi, na desembocadura do Rio Congo. De lá, as cargas de borracha, minério e outros produtos que saíam do Congo poderiam chegar à Europa. Nessa época, os franceses decidiram não mais depender dos belgas para transportar carga e pessoas do interior do Congo até o litoral, e iniciaram a construção de uma ferrovia ligando Brazzaville a Pointe-Noire, a Chemin de Fer Congo-Océan (CFCO). Os franceses recrutaram mão-de-obra de nativos e de trabalhadores de outras colônias em regime de trabalho forçado para construir a ferrovia, e o preço pago em vidas foi muito alto - chegando a 17 mil mortos em acidentes ou vitimados por doenças como malária e febre amarela. Em especial, uma região de relevo acidentado e densas florestas tropicais conhecida como Mayombe tornou-se o trecho mais problemático.
Nessa mesma época, um jovem médico chamado Léon Pales chegava para atuar em Brazzaville. Um verdadeiro prodígio, havia se formado recentemente na França e tinha um profundo interesse por Medicina Forense e Antropologia. Pales realizou algumas necropsias de trabalhadores que morreram de causas pouco esclarecidas na obra da CFCO. No total, ele descreveu 50 necropsias, sendo que 13 deles já tinham diagnóstico prévio de tuberculose e a necropsia só confirmou o achado. 7 tinham tuberculose intestinal ou dos linfonodos abdominais, e o diagnóstico só foi dado após a morte, e 4 tinham outros diagnósticos. Mas 26 desses trabalhadores mortos tinham um conjunto muito incomum de achados: peso entre 30 e 35 Kg, diarreia crônica, linfonodos abdominais aumentados e uma atrofia cerebral incompatível com a idade. Nas palavras de Pales, “um amontoado de ossos mantidos no lugar pela pele, e cujo único sinal de vida está no olhar”. Ele chamou essa condição clínica de “Caquexia do Mayombe”. Não havia recursos para que o agente daquela misteriosa doença fosse identificado, nem no interior da África nem em lugar nenhum do mundo: foi na mesma década de 1930 que a Humanidade tomou conhecimento dos vírus pela primeira vez, com a invenção do microscópio eletrônico. E nenhuma amostra de sangue ou tecido desses trabalhadores resistiu até os primeiros testes capazes de identificar o HIV em 1985 (a amostra mais antiga data de 1959, do Congo Belga), mas qualquer médico familiarizado com a AIDS enxerga nessa descrição de Pales um quadro muito sugestivo da doença. Léon Pales morreu em 1988, sete anos depois do início do reconhecimento da epidemia de AIDS nos EUA e no mundo. Teria ele alguma vez nos seus últimos anos de vida suspeitado que a sua Caquexia do Mayombe dos anos 1930 poderia ser a AIDS?

Fonte: PEPIN, Jacques – The Origins of AIDS, Cambridge University Press, 2011

Com o final da Segunda Guerra Mundial em 1945, as colônias começaram a vislumbrar a possibilidade de independência. Embora tenham ficado do lado vencedor, ingleses e franceses já não tinham a mesma força de antes da guerra, e ficava cada vez mais difícil justificar a luta em defesa da democracia contra os alemães e a manutenção de um império colonial ao mesmo tempo. E com o início da Guerra Fria, americanos e russos tinham interesse em promover a independência de colônias africanas e asiáticas para trazê-las para seu bloco geopolítico. Os franceses tentaram resistir ao desmantelamento de seu império e foram derrotados na Argélia e na Indochina, e Portugal sofreria derrotas semelhantes em suas colônias africanas na década de 1970. Os britânicos, após perder a Índia para o carisma e a não-violência de Gandhi, perceberam que era impossível resistir e tentaram favorecer um processo mais gradual de independência na maior parte de suas colônias, inclusive com a preservação de algumas estruturas de poder intactas em alguns casos, como aconteceu na África do Sul.

Assim, em 1960 o Congo Francês havia se tornado independente, com o nome de República do Congo. E o Congo Belga? Percebendo a inutilidade de gastar recursos com uma campanha militar para resistir ao processo de independência de sua colônia, os belgas simplesmente entregaram o Congo e foram embora em 1959. Com um sério problema: durante o período colonial, os belgas nunca se preocuparam com o futuro que a colônia deles teria (o que era bastante previsível se considerarmos a brutalidade com que os congoleses eram tratados). No ano da independência, o Congo belga tinha 14 milhões de habitantes e 700 médicos, todos estrangeiros – a maioria belgas e franceses. 0,04% da população havia completado o ensino secundário e, com exceção dos sacerdotes, havia 30 congoleses com curso superior em todo o país. A grande maioria dos profissionais qualificados – médicos, professores, engenheiros, advogados, agrônomos – eram belgas, e quando 87 mil belgas fugiram do país logo após a independência temendo agressões e violência por parte dos congoleses, o país entrou em colapso. Uma guerra civil teve início. Patrice Lumumba, que havia liderado o processo de independência, foi deposto poucos meses após chegar ao poder. Em seu lugar ficou Joseph Kasavubu, que permaneceu no poder até 1965, quando foi deposto por Mobutu Sese Seko, que inaugurou um regime corrupto e autoritário que durou até 1997. Durante um breve período após a independência, o Congo belga se chamou República do Congo (mesmo nome que o antigo Congo francês), e logo depois adotou o nome de República Democrática do Congo. Posteriormente Mobutu mudaria o nome do país para Zaire, mudança que foi revertida após sua morte.

O caos que se seguiu ao processo de independência da República Democrática do Congo criou as condições perfeitas para que o HIV se espalhasse com ainda mais força. Temendo a violência da guerra civil, muitos congoleses fugiram do país, e outros muitos buscaram refúgio na capital, a antiga Leopoldville agora recém-batizada como Kinshasa. A cidade cresceu descontroladamente com a chegada de centenas de milhares de pessoas. Desemprego e miséria chegaram a níveis estratosféricos com o colapso econômicos do país, e o padrão de vida declinou sensivelmente. As femmes libres perderam espaço para formas mais “convencionais” de prostituição, com algumas mulheres recebendo mais de mil clientes por ano. Nesse contexto, muito mais do que com as femmes libres, a transmissão sexual do HIV ganhou força.
E foi aí também que o HIV deixou de ser um vírus que circulava apenas na África central e ganhou o mundo. Com a República Democrática do Congo em colapso, a ONU enviou uma força-tarefa para evitar uma catástrofe. Além das forças de paz, centenas de profissionais especializados do mundo todo foram convidados a trabalhar nos serviços antes ocupados pelos belgas, pelo menos até que uma nova geração de congoleses com curso superior estivesse pronta para substituí-los. Muitos profissionais qualificados de todo o mundo foram trabalhar na RDC, inclusive europeus, mas a ONU deu preferência a profissionais que também fossem negros como os congoleses, para evitar o estigma colonial. E que falassem francês, facilitando a comunicação. Profissionais negros francófonos que tivessem um bom nível educacional e que talvez estivessem ansiosos para sair do seu país de origem devido ao autoritarismo e aos problemas econômicos. E foi assim que metade dos professores listados para atuar pela UNESCO na RDC, bem como grande parte dos profissionais de outras áreas, vieram do Haiti.
Em algum lugar da RDC, provavelmente em Kinshasa, um desses haitianos contraiu HIV. Possivelmente por via sexual, não se pode ter certeza. O que se sabe é que esse único indivíduo, ao voltar para o Haiti de férias ou com o fim de seu período de trabalho, levou o vírus para lá. Como se pode ter tanta certeza? Pela árvore genealógica dos vírus e pelos relógios moleculares. No início do texto mencionei que o HIV, por ter material genético composto por RNA, sofre mutações com facilidade. Com os anos de circulação do vírus na África, diferentes subtipos do vírus surgiram. Dentro do tipo M, que corresponde a mais de 99% dos casos, surgiram os subtipos A, B, C, D, F, G, H e J, que depois que a epidemia se tornou global passaram também a se recombinar entre si. Ainda que não tenhamos um mapa da prevalência dos subtipos de HIV-1 na década de 1960, com a análise do mapa atual podemos perceber alguns padrões:

Fonte: Martine PEETERS, Coumba TOURE-KANE and John N. NKENGASONG - Genetic diversity of HIV in Africa: impact on diagnosis, treatment, vaccine development and trials, AIDS 2003, 17:2547–2560

O subtipo A (laranja) é, e muito provavelmente era naquela época, mais prevalente na África Ocidental, enquanto o subtipo C (verde) tornou-se mais comum no sul e no leste do continente. Perceba que os países onde há maior diversidade de vírus são a República do Congo e a República Democrática do Congo, o que reforça a hipótese de que foi daí que o vírus começou a se espalhar. De qualquer forma, tanto na região do Congo quanto em toda a África a maior parte dos subtipos circulantes de HIV é A, C ou a forma recombinante CRF02 (entre A e G). Quase não se identifica o subtipo B (rosa), e mesmo na RDC, único país além da África do Sul onde ele aparece no gráfico, ele é muito pouco prevalente. É por esse motivo que sabemos que o HIV foi levado para o Haiti por uma única pessoa. Seria muita coincidência que três, cinco ou dez pessoas contraíssem um subtipo raro de HIV de forma independente e o levassem para fora da África. Seria esperado que no Haiti predominassem as formas A, C e CRF02 se o HIV tivesse sido levado para lá em diferentes episódios. No entanto, o subtipo que foi levado para o Haiti (e de lá para o mundo) era justamente do raro subtipo B. A análise do material genético do vírus circulando hoje no Haiti sugere que, com uma estreita margem de erro de quatro anos, o HIV chegou no país em 1966.
O Haiti nos anos 1960 estava sob o jugo de François “Papa Doc” Duvalier. Um médico que se tornou popular atendendo a população mais pobre do país mais pobre das Américas, Duvalier venceu as eleições para presidente em 1957 com um discurso populista e nacionalista, e iniciou uma ditadura com direito a culto à personalidade e esquadrões da morte. Embora o Haiti estivesse alinhado com os EUA durante a Guerra Fria e os comunistas haitianos fossem duramente perseguidos, as relações entre os dois países eram muito prejudicadas pelo autoritarismo e pela corrupção de Duvalier, com os quais os americanos faziam de tudo para não ter sua imagem associada. Seu “nacionalismo negro” levou à perseguição de muitos mulatos, considerados a elite econômica do país até aquela época. Muitos haitianos fugiram para os EUA, e foi também nesse período que alguns dos profissionais mais qualificados trocaram o Haiti pela RDC. A expulsão de camponeses de suas terras para dar lugar a membros de sua milícia inchou os subúrbios da capital Porto Príncipe, e colaborou para o declínio da economia haitiana. Duvalier favoreceu também cultos tradicionais incluindo o vodu haitiano, e se dizia sacerdote praticante de vodu para agradar os setores mais nacionalistas e tradicionais do país. Ele inclusive ordenou uma matança de cachorros pretos em 1963 após suspeitar que um de seus inimigos políticos havia se transformado em um cachorro preto.
François Duvalier morreu em 1971 e, como todo ditador que se preze, deixou seu filho Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier como seu sucessor.


Jean-Claude Duvalier deu continuidade ao legado de autoritarismo e corrupção do pai até 1986, quando foi deposto.


Essa é uma fotografia da posse de Jean-Claude Duvalier como novo presidente do Haiti após a morte do pai em 1971. A figura com o rosto circulado em vermelho não é de Duvalier (ele está de terno preto, no centro da foto). Esse é Luckner Cambronne, braço direito do seu pai François, chefe da sua milícia pessoal e ministro do Interior. Usando extorsão e outros métodos pouco honestos, Cambronne se tornou um dos homens mais ricos do Haiti, controlando diversos setores da economia. Dentre seus muitos negócios, estava a venda de cadáveres para pesquisas nos EUA. No mesmo ano de 1971, Cambronne resolveu se aventurar em um novo ramo que parecia promissor: a venda de sangue e seus componentes para hospitais nos EUA e na Europa. Fundou a Hemo Caribbean, que atuou até ser fechada em 1972 por intrigas políticas, pouco antes de Cambronne ser expulso do Haiti por ser visto como uma ameaça por Jean-Claude Duvalier. A empreitada rendeu a Luckner Cambronne o apelido de “Vampiro do Caribe”.
Durante o breve período em que funcionou, a Hemo Caribbean se especializou na venda de plasma, o componente líquido do sangue que contém, entre outras coisas, anticorpos e proteínas da coagulação. Avanços recentes na tecnologia médica aumentaram muito a demanda por plasma e outros componentes derivados dele, e todo mês a Hemo Caribbean exportava cerca de seis mil litros de plasma que eram destinados, entre outros, a hemofílicos nos EUA e na Europa. Cada doador recebia cerca de quatro dólares, o que era muita coisa principalmente para a maior parte da população haitiana, que vivia na pobreza. O processo de extração de plasma ocorria da seguinte forma: os doadores tinham o sangue retirado e em seguida filtrado em um processo conhecido como plasmaférese, para separar o plasma do restante (glóbulos vermelhos, glóbulos brancos e plaquetas). Para evitar que os doadores ficassem anêmicos e tivessem que esperar três ou quatro meses para doar sangue novamente, os outros componentes do sangue eram reinfundidos no doador. Dessa forma, era possível doar plasma até uma vez por mês, e a Hemo Caribbean chegou a ter mais de quatro mil doações de plasma por semana em seu auge. Tudo, obviamente, em condições de biossegurança precárias. Resíduos de sangue de outros doadores frequentemente permaneciam nos circuitos de diálise, e eram reinfundidos nos doadores seguintes.
É muito provável que a Hemo Caribbean tenha sido responsável por disseminar o HIV entre os haitianos, da mesma forma que as vacinas e medicações endovenosas e intramusculares fizeram no Congo. Casos similares de transmissão em doadores de sangue foram detectados a partir de 1986, quando os testes para HIV começaram a ser usados em larga escala. Uma clínica de doação de sangue no México tinha 281 doadores HIV-positivos em 1986. Na Índia, um hemocentro onde a prevalência de HIV era praticamente zero em 1987 tinha 87% de seus doadores com o vírus no ano seguinte. Na China, em 1990, 250 mil casos de HIV foram ligados a clínicas e hemocentros. Embora a Hemo Caribbean tenha sido fechada em 1972, o mesmo provavelmente ocorreu no Haiti, porque na década de 1980 um grande número de haitianos desenvolveu AIDS, sugerindo que tenham contraído o vírus na década de 1970. Todos eles tinham o subtipo B do HIV-1, indicando que o vírus inicial foi disseminado entre a população haitiana de uma forma que a transmissão sexual sozinha seria incapaz de explicar.
Outro indício a favor tanto da chegada do HIV-1 do subtipo B ao Haiti por meio de um único indivíduo quanto da sua disseminação por meio de sangue contaminado vem da ilha vizinha, Cuba. Nas décadas de 1960 e 1970, muitos soldados cubanos foram enviados por Fidel Castro para lutar ao lado de guerrilheiros comunistas africanos, principalmente em Angola mas também na própria RDC e em países vizinhos. Eventualmente, alguns desses guerrilheiros acabaram levando o HIV para Cuba, mas a variedade de vírus em Cuba era muito maior do que a que existia no Haiti. Além disso, não havia clínicas de venda de plasma em solo cubano, de forma que a prevalência do HIV em Cuba permaneceu em níveis muito inferiores do que no Haiti (0,4% contra 1,9%, considerando a população entre 15 e 49 anos). De fato, o Haiti tem até hoje a maior prevalência de HIV dentre todos os países fora da África.
Do Haiti, o HIV chegou aos EUA pouco tempo depois. A análise do material genético do vírus estima que a entrada tenha ocorrido em 1969, com margem de erro de três anos. A data coincide com o período de atuação da Hemo Caribbean, embora pareça precedê-lo por um ou dois anos. A Hemo Caribbean também explicaria os casos de AIDS identificados na década de 1980 entre hemofílicos nos EUA e na Europa, alguns dos quais haviam recebido plasma de doadores haitianos. Mas não explica a elevada prevalência de AIDS em homossexuais no início da epidemia. Para entendê-la, é preciso voltar ao Haiti.
Apesar da perseguição aos mulatos e de outros danos que os Duvalier causaram à economia, o Haiti era nas décadas de 1960 e 1970 um importante destino turístico no Caribe. Suas praias paradisíacas e seu clima tropical fizeram do país um destino muito procurado por americanos e europeus de férias. E o Haiti começava a atrair um segmento particular dentro dos turistas do Primeiro Mundo: os homossexuais. Seguindo a liberação sexual das mulheres com a invenção da pílula anticoncepcional e a entrada de cada vez mais mulheres nas universidades e no mercado de trabalho, os homossexuais também começaram a se fazer ouvir nas sociedades democráticas do Ocidente, e não tardaram a surgir produtos e serviços destinados a atender esse nicho de consumidores. Cruzeiros gays partiam de ambas as costas do Atlântico rumo ao Haiti, e o guia de viagens Spartacus, especializado em turismo gay, destacou em uma de suas edições de 1982 que “os haitianos são bonitos, muito bem-dotados, altamente sexualizados, desinibidos e afetuosos”. Diversas foram as teorias que surgiram para explicar uma suposta inclinação dos haitianos para a homossexualidade, como a ideia de que um haitiano que pratica sexo ativo com outro homem não se considera homossexual. Provavelmente a questão era muito mais econômica do que cultural: em um país devastado pela pobreza, muitos haitianos aceitavam ter relações sexuais com estrangeiros em troca de cem, cinquenta ou mesmo dez dólares, fossem eles originalmente homossexuais ou não. Lamentavelmente, o Haiti estava longe de ser destino exclusivo do turismo sexual no Caribe, fosse ele de qualquer natureza.

Fonte: The emergence of HIV/AIDS in the Americas and beyond - M. Thomas P. Gilbert, Andrew Rambaut, Gabriela Wlasiuk, Thomas J. Spira, Arthur E. Pitchenik, Michael Worobey, PNAS, 2007


Assim, o HIV provavelmente entrou nos EUA por duas vias diferentes mais ou menos na mesma época: pelos homossexuais e pelos hemofílicos, ambos contraindo o vírus a partir do Haiti. O gráfico acima mostra que, pouco tempo depois de entrar nos EUA e no Canadá e se ramificar em inúmeras cepas, o HIV também foi levado por um indivíduo para o arquipélago de Trinindad e Tobago, e se ramificou em outras cepas a partir de então. Entre os homossexuais masculinos, um grupo de pessoas que tendem a se relacionar sexualmente entre si, o vírus circulou de forma silenciosa por toda a década de 1970. Ainda que tenham tentado achar um único culpado e acusado o comissário de bordo canadense Gaetan Dugas de ser o “paciente zero” responsável pela transmissão do vírus a toda a comunidade gay dos EUA, o HIV já estava circulando entre eles muito antes de Dugas iniciar a vida sexual. Estima-se que, em 1978, 5% da população de homossexuais masculinos de Nova York e São Francisco era portadora do HIV. Embora provavelmente tivesse uma prevalência menor, o vírus também circulava entre homossexuais da Europa Ocidental, fosse porque mantinham relações sexuais com americanos, fosse porque tinham visitado o Haiti e mantido relações com locais. Por ser uma doença com um período de incubação longo, essas pessoas só começaram a manifestar a doença no início da década de 1980.
Foi aí, com os primeiros casos de pneumonia por Pneumocystis carinii e sarcoma de Kaposi identificados pelo CDC em adultos jovens homossexuais dos EUA, que a doença foi reconhecida, e o mundo entrou em pânico. Inicialmente foi chamada de GRID (Gay-Related Imune Deficiency), um termo que caiu em desuso quando ficou evidente que os homossexuais não eram os únicos afetados. Os epidemiologistas listaram grupos de risco, e chamaram a AIDS de “doença dos 4 Hs”: Homossexuais, Hemofílicos, Haitianos e, com um aumento preocupante nos EUA e na Europa, "Heroína", ou usuários de drogas endovenosas. Preconceitos afloraram, e muitas pessoas de mente estreita enxergaram a AIDS como uma praga enviada por Deus para punir os homossexuais pelas suas práticas pecaminosas. Destilou-se a xenofobia para com os haitianos, conforme se tentava encontrar alguma propensão cultural ou genética para a homossexualidade ou a AIDS. Nenhum dos haitianos que foram identificados com AIDS nos EUA no início da epidemia afirmavam ser homossexuais, e a elevada prevalência da doença entre eles se justificava simplesmente porque o Haiti era onde o vírus havia chegado primeiro a partir da África. Nos anos seguintes, a renda com o turismo no Haiti despencou, e nos últimos anos de seu regime Jean-Claude Duvalier perseguiu e executou muitos haitianos por suspeita de práticas homossexuais que, segundo ele, disseminavam a AIDS e arruinavam o turismo no país.
A ideia dos “grupos de risco” ou dos “4 Hs” foi gradualmente substituída pela ideia dos “comportamentos de risco”. Ou seja, o que determina o risco não é o que você É, e sim o que você FAZ. Campanhas de saúde pública começaram a advogar o uso de preservativos nas relações sexuais, tanto homossexuais como heterossexuais, já que ficava cada vez mais evidente que relações entre homens e mulheres também poderiam disseminar o vírus. O HIV passou a acometer cada vez mais heterossexuais em muitos países do mundo, e casos como o do astro do basquete Magic Johnson deram maior visibilidade ao risco até então negligenciado de se adquirir o HIV por meio de relações heterossexuais.



No mapa, baseado no estudo de Peeters sobre a prevalência dos subtipos virais na África, é possível identificar o subtipo B (rosa) como o mais prevalente no Ocidente, inclusive entre a população branca da África do Sul. O subtipo C se disseminou para o sul da África e, graças às íntimas ligações entre os dois países devido à herança colonial britânica, o HIV subtipo C foi levado da África do Sul para a Índia. Uma cepa derivada do subtipo B (rosa) chegou ao sudeste asiático e à China, juntamente com uma forma recombinante chamada CRF01 (preto). Subtipos A (marrom alaranjado) e G (azul), e a forma recombinante CRF02 (salmão com borda marrom) continuaram a ser mais prevalentes na África Ocidental.
De forma geral, por mais que a AIDS tenha se espalhado pelo mundo, a África continua a ser, de longe, o continente onde existe a maior prevalência da doença. 69% dos casos de AIDS do mundo estão na África, e alguns países possuem prevalências assustadoramente altas da doença, como Botswana (21%) África do Sul (18%), Lesoto (25%) e Moçambique (13%). O fato de todos esses países estarem no sul do continente indica que talvez o subtipo C, o mais prevalente na região, seja capaz de se transmitir com mais facilidade. Curiosamente, a República do Congo (3%) e a República Democrática do Congo (0,7%) não têm prevalências tão elevadas quanto o sul da África. Como se não bastasse todo o atraso que trouxeram o período colonial e as guerras civis que se seguiram, a AIDS tornou-se um fator que dificultou ainda mais o desenvolvimento do continente.
Quando os primeiros casos começaram a ser identificados, em 1981, já havia a suspeita de que a AIDS poderia ser causada por um vírus. Tentativas de se ligar a doença ao citomegalovírus acabaram não dando certo (na verdade, o citomegalovírus é um dos muitos microorganismos oportunistas que se manifestam quando o HIV já debilitou a muito imunidade, causando desde lesões na retina até úlceras no tubo digestivo). Duas equipes principais se lançaram na corrida para isolar e identificar o agente causador da AIDS. Uma equipe de pesquisadores americanos liderada por Robert Gallo, que havia descrito o HTLV (Human T-Lymphotrophic Virus), o primeiro retrovírus, trabalhava com a hipótese de que esse novo vírus era um parente próximo dos dois tipos de HTLV já descobertos, e chamava o HIV de HTLV-3. Do outro lado do Oceano Atlântico, no Instituto Pasteur, em Paris, Françoise Barré-Sinoussi e Luc Montaigner sustentavam a hipótese de que o vírus da AIDS devia ser um retrovírus, mas não tão aparentado com o HTLV 1 e o HTLV-2. Chamaram o vírus de LAV (Lymphadenopathy-Associated Virus, ou vírus associado à linfadenopatia, por ser as ínguas por todo o corpo um importante achado nos pacientes que tinham o vírus). Houve uma enorme controvérsia sobre se a equipe de Gallo se apropriou indevidamente de uma amostra enviada pelo laboratório francês e tentou ficar com o crédito, mas em 1983 uma imagem de microscópio eletrônico mostrou que o HIV e o HTLV eram de fato vírus diferentes. Embora Robert Gallo tenha realizado importantes contribuições para determinar o papel do HIV na patogênese da doença, Luc Montaigner e Françoise Barré-Sinoussi ganharam o Nobel de Medicina em 2008 pela descoberta do HIV, dividindo o prêmio com Harald zur Hausen, que descreveu a ligação entre o HPV e o câncer de colo de útero. Robert Gallo ficou de fora.




Uma vez descoberto e isolado o vírus, em 1985 foi criado o primeiro teste sorológico capaz de identificar se uma pessoa era ou não portadora do HIV. Amostras de sangue que haviam ficado armazenadas por anos após a morte de pacientes por alguma doença misteriosa que as consumia agora testavam positivo. Isso aconteceu com um congolês no ano de 1959 e com uma cirurgiã dinamarquesa que morreu em 1977 após trabalhar muitos anos como voluntária no Congo (e provavelmente sofrer inúmeros acidentes pérfuro-cortantes).
Estranhamente, um grupo de pessoas na Guiné-Bissau, ex-colônia portuguesa na África Ocidental, manifestava sintomas idênticos aos da AIDS, mas os testes realizados foram todos negativos. As amostras de sangue foram levadas para análise em Portugal, e a partir dessas amostras de sangue foi identificado o HIV-2. Testes mais modernos se revelaram capazes de identificar tanto o HIV-1 quanto o HIV-2, e têm sido usados desde então na maioria dos países.
Em 1986, a primeira medicação antirretroviral começou a ser empregada no tratamento do HIV: a Zidovudina, ou AZT. Não se pode dizer que ela foi descoberta nessa época: a droga existia desde 1964, e tinha sido empregada sem sucesso como agente antioncogênico, em uma época em que se acreditava que todos os cânceres tinham origem em algum vírus. Embora de fato haja alguns exemplos (o câncer de colo de útero e o HPV, o hepatocarcinoma e o HBV, o sarcoma de Kaposi e o HHV-8), a grande maioria dos tipos de câncer conhecidos hoje surge da replicação descontrolada de uma célula motivada por um dano no DNA que não tem relação com nenhum vírus. Como resultado, o AZT ficou na geladeira por duas décadas, até que alguém teve a ideia de testar aquele antiviral esquecido em pacientes com HIV e descobriu que de fato ele conseguia inibir a replicação viral e reduzir a quantidade de vírus circulando no sangue. No entanto, a dose empregada era elevadíssima e a posologia era péssima, com vários comprimidos sendo ingeridos diversas vezes ao dia. Efeitos colaterais eram debilitantes, e manter um tratamento regular era martirizante – e caro. Poucos anos depois, surgiu outro antirretroviral, a Didanosina (DDI), com o mesmo mecanismo de ação do AZT (atrapalham a transformação do RNA viral em DNA por ter uma estrutura química similar à de um ácido nucleico e com isso “travar” a enzima transcriptase reversa). Porém só em 1996, com o surgimento de uma nova categoria de antirretrovirais (os inibidores de protease, capazes de inibir a síntese de proteínas pelo vírus), foi possível combinar as drogas em um tratamento realmente efetivo com no mínimo três medicamentos diferentes. Surgiu o tratamento conhecido pela sigla inglês HAART (Highly Active Anti-Retroviral Therapy, ou terapia antirretroviral altamente efetiva), e o impacto que ela teve na sobrevida dos pacientes vivendo com HIV e AIDS foi sem precedentes. O HIV deixava de ser uma sentença de morte e caminhava para se tornar uma doença crônica incurável mas tratável, como o diabetes e a hipertensão. Houve quem proclamasse que estávamos a um passo da cura, mas pouco tempo depois se descobriu que impedir a circulação do vírus era uma coisa, e eliminá-lo do material genético das células de defesa e dos “santuários” do organismo onde o HIV se escondia era outra completamente diferente.
Além disso, com o aumento da sobrevida surgiram os efeitos colaterais tardios da terapia antirretroviral: a Zidovudina causava anemia, a Didanosina poderia causar cirrose, os inibidores de protease redistribuíam a gordura do corpo de forma desfigurante e estigmatizante (lipodistrofia)... Novas drogas surgiram, mais potentes e com menos efeitos colaterais, e as antigas foram deixando as farmácias aos poucos.
O caminho teve seus sobressaltos, e a ignorância venceu em algumas ocasiões. O presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, afirmou que a AIDS era causada diretamente pela desnutrição e pela pobreza, e não pelo HIV, e graças a isso a distribuição de antirretrovirais no país foi seriamente prejudicada. O continente africano segue sofrendo a maior parte das baixas relacionadas à AIDS no planeta, com homens e mulheres sendo vitimados igualmente. Com um agravante: como no Ocidente há uma prevalência muito mais alta do subtipo B do HIV-1, a maior parte das drogas é testada contra vírus do subtipo B, e a eficácia contra outros subtipos (como o A e o C, mais comuns na África) nem sempre é a mesma.
Em grande parte do Ocidente, a previsão de que o HIV se alastraria para além dos grupos de pessoas com comportamento de risco, como na África, concretizou-se apenas parcialmente ou não chegou a se concretizar. Nos últimos anos, tem havido uma nova epidemia entre jovens em diversos países, inclusive no Brasil. Proporcionalmente, a quantidade de casos entre homossexuais tem aumentado outra vez, indicando que talvez as estratégias de conscientização dos jovens para o uso de preservativos precisem ser substituídas, ou pelo menos revistas. A profilaxia pré-exposição pode ser uma alternativa, mas só o tempo dirá se ela se consolidará de verdade.
Contudo, nem tudo são más notícias. Drogas mais modernas e com menos efeitos colaterais têm sido desenvolvidas, e estudos recentes mostram que a chance de pacientes com carga viral indetectável transmitir o HIV é desprezível, desde que não tenham outras DSTs associadas. É uma boa notícia para casais homo e heterossexuais em que um dos parceiros tem o vírus (e se trata adequadamente) e o outro não. E as pesquisas continuam a avançar. Passadas quatro décadas do reconhecimento dos primeiros casos de AIDS, ainda não chegamos à cura, embora tenhamos nos aprofundado muito no conhecimento do vírus e de como funciona nosso sistema imunológico. Há quem diga que nunca chegaremos a uma cura do vírus, mas eu pessoalmente acho que as pessoas com frequência subestimam a capacidade humana, para o bem ou para o mal. Mas uma coisa é certa: sempre que alguém proclamar que o ser humano atingiu o domínio sobre a natureza e sobre os microorganismos que nela habitam, deve-se tomar essa opinião com bastante cautela. Em algum lugar do mundo, um microorganismo novo pode surgir e nos obrigar a rever nossos conceitos, nossa posição no universo e as verdades nas quais acreditamos.




LEITURAS RECOMENDADAS:

Jacques Pepin – The Origins of AIDS, Cambridge University Press, 2011

David Quammen, The Chimp and the River How AIDS emerged from an African Forest, 2012

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