domingo, 14 de abril de 2019

A História em Game of Thrones


Game of Thrones é uma obra de ficção fantástica (tanto no sentido de ser uma obra do gênero de fantasia quanto de ser uma obra sensacional mesmo), mas a história das Crônicas de Gelo e Fogo (o nome da série de livros que originou a série da HBO) tem muita, muita inspiração em eventos históricos, e muitos dos eventos mais fantásticos em Westeros, Essos e adjacências foram baseados em fatos, alguns deles ainda mais incríveis, ocorridos no nosso planeta, onde as estações duram apenas três meses.
Aproveitando a onda de empolgação com o lançamento da oitava e última temporada da série na HBO (e torcendo para que George R. R. Martin publique os dois últimos livros não muito tempo depois disso), resolvi escrever sobre a História (com H maiúsculo) em Game of Thrones.
Importante: não contém spoilers, nem glúten, nem lactose.


-Westeros e Essos

Não é segredo para ninguém que as Crônicas de Gelo e Fogo se passam em um ambiente inspirado na Europa medieval, principalmente na Inglaterra. Embora George R. R. Martin não tenha atribuído nenhuma de suas criações de reinos, povos, personagens ou eventos a nenhum paralelo do mundo real em particular, ele se baseia sempre em algumas fontes (no plural). Por isso é impossível afirmar que os Lannisters representam a Inglaterra e os Stark representam a Escócia, por exemplo, mas alguns paralelos podem ser feitos de maneira menos rígida.
Peguemos o mapa, por exemplo. É bem conhecida entre os fãs a teoria de que Westeros, o continente onde se passa a maior parte da trama, representa as Ilhas Britânicas. De fato, se você imaginar a Irlanda sendo girada cento e oitenta graus e encaixada debaixo da Grã-Bretanha, temos o formato de Westeros.


Fonte: http://history-behind-game-of-thrones.com/ancienthistory/walls-wildlings


Mas é difícil chegar a uma conclusão exata, principalmente porque não há nos livros e nem na série uma indicação precisa do tamanho do continente. Alguns fãs sugerem que o continente de Westeros tem aproximadamente o tamanho da Europa ou da América do Sul, enquanto Essos, o continente maior a sudeste, tem dimensões comparáveis à da Ásia. Além disso, não existe em nenhum lugar algo que indique o tamanho real do planeta onde a história se passa. Os mapas que vemos nos livros e na série só mostram alguns continentes cercados por um “oceano” de desconhecido, muito similar aos mapas de antes das Grandes Navegações. Não sabemos o que há além deles, embora a próxima temporada ou os livros possam revelar alguma coisa.
Em uma comparação mais ou menos livre, Westeros representa a Europa, com uma variedade de climas e vegetações similar – desde as terras frias do Norte representando as áreas setentrionais da Escócia, da Escandinávia, da Islândia e da Carélia até as regiões quentes e ensolaradas de Dorne com um clima mediterrâneo parecido com o sul da Espanha, a Grécia ou a Sicília. No meio do caminho, florestas, vales, colinas e cadeias de montanhas com cenários que lembram a Floresta Negra, os Alpes, a Irlanda ou a Inglaterra. Alguns dos lugares da história têm inspirações mais diretas, como Rochedo Casterly (inspirado em Gibraltar) e o Ninho da Águia, da casa Arryn (inspirado no castelo de Neuschwanstein, na Baviera).
Do outro lado do Mar Estreito está Essos, o grande continente livremente baseado na Ásia medieval, com povos exóticos, cidades mercantis cheias de tesouros (e escravos) e estepes extensas povoadas por nômades que vivem sobre cavalos. Sobre os cavaleiros Dothraki e as estepes do Mar Dothraki comentarei mais para frente, mas as grandes cidades de Essos, como Qarth, Astapor, Yunai, Meereen, Volantis, Lys, Tyrosh e Pentos, são frouxamente baseadas nas cidades da península arábica e da Índia. Sobre Sothoryos, as Ilhas Basilisco e as Ilhas do Verão há pouca informação para traçar qualquer paralelo.

-Primeiros homens, valirianos, ândalos
Embora Westeros seja baseado na Europa, sua História no mundo criado por George R. R. Martin tem grandes paralelos com a História da Grã-Bretanha em particular. Nas histórias contadas e no universo expandido, os primeiros habitantes do continente foram os Filhos da Floresta, que viviam de forma primitiva e com uma relação muito próxima da Natureza, em especial das árvores. Em uma época posterior, similar à nossa Era do Bronze, chegaram ao continente os Primeiros Homens, trazendo armas de metal e ferramentas capazes de derrubar árvores. Por muitos séculos os dois povos viveram em guerra, até um acordo de paz ser selado e os Primeiros Homens se comprometerem a proteger os Filhos da Floresta e as árvores, levando a um período de paz duradoura. Depois vieram os Valirianos, um império poderoso embora não tivesse reis, rico e tecnologicamente avançado que levou a civilização a Westeros, até sucumbir a um violento desastre natural. Tempos depois, também atravessando o mar, chegaram os Ândalos, fiéis aos Sete e trazendo armas poderosas feitas de ferro. Derrubaram árvores e praticamente exterminaram os Filhos da Floresta. Por fim, aportando em Dorne com dez mil navios e invadindo o continente em seguida, vieram os Roinares, cerca de mil anos antes dos eventos retratados nas Crônicas de Gelo e Fogo (os livros) e em Game of Thrones (a série).
Embora não se saiba com exatidão quem eram os primeiros povos que habitavam as Ilhas Britânicas, sabe-se que os celtas migraram para lá no início da Era do Bronze, e provavelmente se misturaram com os habitantes nativos das ilhas da mesma forma que os Primeiros Homens fizeram com os Filhos da Floresta. Assim como os povos celtas (que na região ficaram conhecidos como bretões), os Primeiros Homens tinham armas e armaduras de metal e construíam fortalezas de madeira. Outro importante paralelo entre os celtas e os Primeiros Homens está em um aspecto cultural e religioso: a veneração das árvores. Os druidas, os equivalentes celtas a sacerdotes ou xamãs, acreditavam que as árvores tinham poderes sobrenaturais e até o horóscopo celta era baseado em árvores. Assim como ocorreu com seus paralelos em Westeros, a religião dos celtas se manteve forte e arraigada no Norte (Escócia) mesmo muito tempo depois da chegada de uma nova religião do além-mar (a fé nos Sete e o cristianismo, respectivamente).
Quando Jorah Mormont sequestra Tyrion Lannister e ambos viajam em um pequeno barco por entre as ruínas valirianas, Jorah olha para aquela paisagem maravilhado e se pergunta como os valirianos eram capazes de construir estruturas de pedra que durassem tanto tempo. A todos os fãs de Bernard Cornwell nesse momento (dentre os quais eu me incluo) certamente veio à cabeça alguma cena das Crônicas de Artur ou das Crônicas Saxônicas em que algum dos personagens também olha maravilhado para as ruínas romanas na Inglaterra e se pergunta como aquelas estruturas de pedra podem ainda ficar de pé por séculos enquanto as construções de madeira dos saxões ou nórdicos só duram algumas décadas, no máximo. Sim, Valíria é o paralelo romano das Crônicas de Gelo e Fogo, com conhecimentos de Arquitetura extremamente avançados que permitiam construir usando pedras, uma cultura refinada e armas poderosas – refletidas no universo de George R. R. Martin sob a forma do muito valorizado aço valiriano. Roma caiu por causa das invasões bárbaras e da crise no modelo escravista que era a base de sua economia, e que começava a ruir com a expansão do cristianismo, enquanto a Valíria foi destruída por um grande desastre natural inspirado na erupção do Vesúvio que destruiu Pompéia, mas de qualquer forma há um paralelo entre duas civilizações avançadas que sucumbiram deixando para o futuro apenas suas ruínas e a influência sobre os povos que viriam em seguida, para quem representavam ideais que jamais seriam alcançados.

Tyrion e Jorah passam por Valíria e contemplam as ruínas do que outrora foi um grande império


A invasão dos ândalos guarda importante paralelo com a invasão da Grã-Bretanha pelos saxões, nos séculos V e VI. Assim como os ândalos, os saxões tinham armas de ferro e trouxeram consigo uma nova religião. É verdade que o cristianismo já havia chegado à Grã-Bretanha antes, durante o período romano, mas apenas como religião praticada por cidadãos romanos vivendo na ilha. Quando o Império Romano abandonou a província no início do século V, pouco restou. Só no fim do século V e início do século VI a fé cristã chegaria em definitivo às Ilhas Britânicas, justamente com os saxões, anglos e jutas que saíram do que hoje é o norte da Alemanha para invadir e colonizar a Grã-Bretanha e difundir o cristianismo para o restante do arquipélago. Mais ou menos como os ândalos fizeram ao trazer a fé nos Sete para Westeros.
A última invasão de Westeros, pelos roinares, tem seu paralelo nos normandos, que podem não ter invadido a Grã-Bretanha com dez mil navios, mas têm uma história provavelmente tão fantástica quanto. Ela começa em 911, quando um viking chamado Rollo (ou Hrolf, em sua versão nórdica) saqueou o litoral norte da França. A região havia se tornado alvo preferencial de ataques dos vikings, já que na Inglaterra os líderes locais haviam começado a aprender como se defender dos saques ao criar fortificações chamadas burhs para proteger suas cidades e vilas, inviabilizando a estratégia viking de desembarcar-saquear-e-fugir-antes-das-forças-locais-chegarem. A cidade de Paris havia sido saqueada duas vezes, em 845 e 885. Para tentar proteger o reino da Frância Ocidental de novos ataques, o rei Carlos o Simples concedeu o território que hoje corresponde à Normandia (significando literalmente terra dos homens do norte) a Rollo. Em troca ele se converteria ao cristianismo, se casaria com uma das filhas de Carlos e protegeria o litoral contra outras incursões dos vikings. Rollo aceitou, e ele e seus descendentes normandos passaram a governar a região a partir de então. Como nessa altura do campeonato havia nórdicos dos dois lados do Canal da Mancha e a nobreza europeia costumava se casar entre si para assegurar territórios, em 1066 um descendente de Rollo que tinha o sofrível apelido de Guilherme o Bastardo invadiu a Inglaterra julgando ser ele próprio o legítimo herdeiro da coroa inglesa. Conseguiu apoio do Papa e encomendou uma enorme peça de propaganda sob a forma de uma tapeçaria de 70 metros de comprimento (que hoje está em Bayeux, na França), e cruzou o Canal da Mancha para invadir a Inglaterra. Que já estava sendo invadida.
Por um viking.
Harald Hardrada foi o último dos guerreiros pagãos da Escandinávia a lançar-se ao mar para saquear e conquistar. Julgando-se também legítimo herdeiro do trono inglês, invadiu a Inglaterra em 1066 pelo norte com milhares de guerreiros vikings e foi derrotado pelo rei Haroldo II (que era o atual dono da coroa cobiçada por Harald Hardrada e Guilherme) na batalha da Ponte de Stanford (segundo a lenda, após matar sozinho 40 ingleses). Mal Haroldo II conseguira se recuperar da batalha, Guilherme invadiu a ilha pelo sul. Os dois se encontraram em Hastings, e Haroldo foi morto na batalha (segundo a lenda, com uma flecha no olho). Guilherme pôde enfim reinar na Inglaterra e largar a alcunha de bastardo. A partir de então, passou a ser conhecido como Gulherme, o Conquistador.
Representação da morte de Haroldo II na Tapeçaria de Bayeux


A invasão normanda foi o último episódio na formação do que conhecemos hoje como o Caldeirão Inglês (English Melting Pot), a mistura de culturas que deu origem aos ingleses atuais – celtas, romanos, anglo-saxões, nórdicos e normandos – tornando ridícula qualquer afirmação de que exista supostamente um inglês “puro”. Da mesma forma, os roinares foram os últimos dos povos de Essos a invadir Westeros e a participar da formação dos Sete Reinos, estabelecendo-se no sul, principalmente em Dorne.


-A muralha
Ao contrário dos outros tópicos, cujos paralelos são um tanto livres, a muralha de gelo não é. O próprio George R. R. Martin admitiu em uma entrevista https://www.sfsite.com/01a/gm95.htm que teve a ideia ao visitar a Muralha de Adriano no norte da Inglaterra, quase na fronteira com a Escócia. “A inspiração para a Muralha vem certamente da Muralha de Adriano, que vi quando visitei a Escócia. Eu fiquei de pé na Muralha de Adriano e tentei imaginar como seria ser um soldado romano enviado para lá da Itália ou da Antióquia. Ficar ali, olhar à distância, sem saber o que poderia emergir da floresta. Claro que a fantasia é mais vívida e maior que a realidade, então a minha muralha é mais alta, consideravelmente mais longa e mais mágica. E claro, o que há além dela tem que ser mais do que apenas escoceses.”

A Muralha de Adriano sobre um penhasco, na Escócia

Construída como uma barreira para impedir que os “escoceses bárbaros e selvagens” invadissem o território romano na Grã-Bretanha, ela podia não ser feita de gelo nem ser tão grande e imponente quanto a da série e dos livros, mas também era guardada por soldados (romanos) que muitas vezes vinham de muito longe, embora não existisse nenhuma ordem como a Patrulha da Noite. Era feita de pedra e em grande parte construída logo atrás de uma série de penhascos, tornando-a mais difícil de ser rompida e transposta. É claro que, com o passar de quase dois mil anos e com locais no período de lá para cá usando os blocos para construir casas, muros e igrejas, grande parte da estrutura não existe mais. Mas o que ainda está de pé pode dar uma ideia de que era essa muralha.
Além da muralha, estavam tribos célticas, entre elas os pictos e os escotos, que dariam origem ao que hoje são os escoceses. Tidos como guerreiros formidáveis e que sabiam fazer bom uso do terreno montanhoso e acidentado das Highlands, eles resistiriam a invasões de romanos e futuramente de nórdicos e de ingleses. Porém, para os romanos, eram tidos como bárbaros, primitivos e iletrados, sem costumes, verdadeiros selvagens. Nada muito diferente de como a Patrulha da Noite via os povos-além-da-muralha.
Até onde se sabe, não havia caminhantes brancos para além da Muralha de Adriano.



-Stark vs Lannister

Continuando com os paralelos entre Westeros e a Grã-Bretanha, chegamos ao evento que serviu como principal inspiração para a trama da série e dos livros: a Guerra das Rosas. Não sem motivo, Lannister e Stark têm uma sonoridade muito parecida com as duas casas que se digladiaram na Inglaterra por décadas, os Lancaster e os York. Basicamente, tudo aconteceu quando, após os 116 anos de conflito intermitente que passaram para a História como a Guerra dos Cem anos, o rei Henrique VI da Inglaterra – considerado fraco, incapaz e possivelmente portador de algum distúrbio mental – cedeu aos franceses alguns dos territórios que haviam sido conquistados. Parte da nobreza inglesa, sob a liderança da casa de York, considerou esse um ato de fraqueza ou mesmo traição orquestrado pela casa de Lancaster – à qual pertencia a maior parte dos conselheiros do rei, inclusive ele próprio. Foram anos de guerra civil, intrigas políticas, traições e reviravoltas (sugiro a leitura da excelente série de ficção histórica do Conn Iggulden, A Guerra das Rosas, para quem quiser um excelente romance sobre esse período) que começaram em 1455 e duraram até 1487 com a ascensão dos Tudor. A trama é muito complexa, com muitos personagens, batalhas e eventos, por isso nem pensarei em detalhar aqui, mas a ideia de casas diferentes lutando pelo controle de uma coroa (ou de um trono de ferro) deu origem ao pano de fundo da história contada por George R. R. Martin.


-Dothraki
Nem só de paralelos com a História britânica vivem as Crônicas de Gelo e Fogo. Os dothraki, por exemplo, são inspirados em diversos povos nômades da Ásia Central e do leste da Europa, como os hunos, os avaros, os citas, os tártaros e os mongóis. Todos eles habitavam as vastas estepes da Eurásia, que se estendem da Ucrânia e da Moldávia à Mongólia e a China atuais, e são compostas principalmente de um terreno relativamente plano e coberto predominantemente por gramíneas ou no máximo por arbustos – ou seja, sem florestas. Nessa imensa área aberta, ter um cavalo era a melhor maneira de se deslocar por longas distâncias, e muitas vezes significava a diferença entre a vida e a morte. Não por acaso, foi nessa região que, há pelo menos 5.500 anos, o cavalo foi domesticado pela primeira vez. Desde então, sua importância socioeconômica para os povos nômades das estepes tem sido inegável. O próprio estilo de vida nômade e a subsistência a partir do pastoreio se tornam muito mais fáceis (ou menos difíceis, eu diria) quando se está sobre um cavalo. Os equinos se tornaram também uma importante arma de guerra, permitindo ataques muito mais ágeis e possibilitando o surgimento de alguns dos mais temidos guerreiros que já existiram. A invenção do estribo (também ocorrida na mesma região, milênios depois) elevou as hordas de cavaleiros nômades a outro nível, porque dali em diante era possível se apoiar sobre o cavalo com os pés e utilizar as duas mãos para manejar uma arma (atirar uma flecha com um arco, por exemplo). Tribos nômades frequentemente guerreavam entre si e saqueavam acampamentos de rivais, cidades e comunidades agrícolas em busca de riquezas e, às vezes, de escravos. Poucos eram aqueles que poderiam resistir a uma horda de guerreiros montados em seus cavalos.
Sendo tão importante para o modo de vida dos nômades das estepes, não é de se estranhar que o cavalo tenha sido também uma figura central em sua cultura. Para os mongóis, por exemplo, o cavalo era fonte de alimento (carne de cavalo ou do queijo produzido a partir do leite de égua) e mesmo a bebida alcoólica tradicional, o airag, era feita à base de leite de égua fermentado. Em povos nômades do atual Cazaquistão, era comum que os túmulos de pessoas importantes (provavelmente grandes guerreiros) recebessem também os restos mortais de seus cavalos.
Essa relação íntima com os cavalos também pode ser vista nos dothraki. Todo guerreiro que se preze deve ter seu cavalo e “nascer, lutar e morrer em uma sela”, e um dothraki incapaz de montar um cavalo por estar muito ferido ou doente é abandonado e largado para morrer. Obrigar uma pessoa a descer do seu cavalo e caminhar a pé, como foi feito com Viserys, é considerado uma grande humilhação. E o ritual de comer o coração cru de um cavalo para dar força e vitalidade ao bebê no ventre da mãe, como retratado no livro e na série, é mais uma prova do poder que os dothraki atribuíam à sua montaria.
Assim como os povos que os inspiraram no nosso mundo, os dothraki se dividem em diversas tribos nômades menores que vagam pela grande estepe conhecida como mar dothraki. Assim como os mongóis, hunos e citas, são considerados guerreiros formidáveis, mas são “incapazes de atravessar o Mar Estreito” (como foi dito diversas vezes na série). Para fazer mais um paralelo, quando os mongóis tentaram atravessar o mar para invadir o Japão, foram derrotados duas vezes. Em uma delas, um tufão destruiu a frota mongol. Isso deu origem ao mito do “vento divino” (kamikaze) e reforçou a ideia corrente no Japão até o fim da Segunda Guerra Mundial de que os japoneses são um povo escolhido, superior e, portanto, invencível.


-“Coroa de Ouro” fervente
Uma cena marcante da primeira temporada foi a execução de Viserys, o irmão da Daenerys, com uma “coroa de ouro”. Ele, que pretendia inicialmente forjar uma aliança com os Dothraki através do casamento da irmã para invadir Westeros, derrubar o usurpador Robert Baratheon e conseguir para si a coroa a que tinha direito, tornou-se cada vez mais petulante e, no fim das contas, os dothraki acabaram dando a ele outra “coroa”: derramaram ouro fundido sobre sua cabeça, matando-o com o calor do metal fervente. Uma morte horrível e que parece ter saído da mente criativa de George R. R. Martin. Mas pode ter tido inspiração em um evento real.
No final da República romana, um acordo tripartite entre três personalidades proeminentes na política romana deu origem ao primeiro Triunvirato. Ele era composto por Júlio César, militar romano que havia sido designado para a província da Hispânia e ganhou grande influência após as vitórias militares na região; Pompeu Magno, um dos mais destacados e famosos generais romanos (e um dos responsáveis pelo exílio de Júlio César na Gália); e Marco Licínio Crasso, o homem mais rico de Roma. Todos eram influentes e poderosos mas, ao contrário dos outros dois, Crasso não possuía nenhuma vitória militar em seu currículo. Desejando tornar-se mais influente e talvez desbancar os outros dois rivais – ou pelo menos estar no mesmo nível do que eles – Crasso planejou uma grande campanha militar para invadir a Pérsia (na época sob o Império Parta) a partir dos territórios da Síria-Palestina, no extremo oriental dos domínios romanos.
No entanto, apesar de todo o dinheiro, faltava a Crasso habilidade como estrategista. Ao invés de invadir o território parta pelo Cáucaso, como havia sido sugerido pelo seu aliado rei Artavasdes da Armênia, Crasso optou por cruzar o deserto e invadir os partas pela Mesopotâmia, ambicioso por capturar as ricas e famosas cidades da região. Durante uma incursão pelo deserto, próximo a um vilarejo chamado Carras (ou Carrhae), as forças de Crasso foram surpreendidas e derrotadas por um exército parta muito menor, mas foram fragorosamente derrotadas, inclusive com o filho de Crasso morrendo na batalha. Estima-se que vinte mil soldados romanos tenham sido mortos e dez mil tenham sido capturados. O desastre deu origem ao termo “erro crasso”, ou seja, um erro inadmissível e grosseiro com consequências trágicas.
Os partas enviaram um emissário para negociar com Crasso. Eles queriam que Roma entregasse todos os territórios a leste do rio Eufrates, e em troca, permitiriam que Crasso e seus soldados voltassem em segurança para a Síria romana. Crasso permaneceu relutante e, no fim das contas, a negociação terminou em confusão. Há quem afirme que Crasso tentou subornar os partas e, para ridicularizar sua sede por riqueza, eles o mataram derramando ouro fervente em sua boca. Há outras versões para a história, algumas afirmando que Crasso foi morto durante a confusão e o ouro foi derramado em sua boca após sua morte. De qualquer forma, a lenda teria sido suficiente para inspirar George R. R. Martin.
Outro episódio muito parecido pode ter ocorrido na Idade Média, não com ouro, mas com prata. Em 1218, Gênghis Khan havia unificado os mongóis e sua horda formidável já iniciava a invasão da China – que só seria completa com seu neto Kublai Khan. Uma caravana com um emissário mongol foi enviada ao Império Corásmida, correspondendo ao que hoje são o sul do Cazaquistão, o oeste do Afeganistão, o Irã e as outras ex-repúblicas soviéticas no meio deles. O Império Corásmida era muito rico porque em seu território estavam cidades prósperas como Merv, Bukhara e Samarcanda, por onde passava a Rota da Seda que ligava a Europa à China. O objetivo era que os corásmidas reconhecessem o império mongol como uma das forças ascendentes na região e começassem a fazer comércio. Porém, um “pequeno desentendimento” ocorreu quando a caravana chegou à cidade corásmida de Otrar. Alegando que havia espiões na caravana, o governador de Otrar, Inalchuk, prendeu e executou os membros da caravana e vendeu os bens que ela carregava. Enfurecido, Gênghis Khan enviou uma delegação ao sultão corásmida, que era sobrinho de Inalchuk, exigindo um pedido de desculpas e que Inalchuk fosse punido – leia-se, executado. O sultão decapitou um membro da delegação que era muçulmano e humilhou os outros dois, que eram mongóis, raspando as suas barbas. Diante dessa segunda provocação, Gênghis Khan invadiu o Império Corásmida. Muitas cidades se renderam rapidamente, mas Otrar resistiu ao cerco por cinco meses. Quando os mongóis invadiram a cidade, Inalchuk tentou se abrigar em uma torre juntamente com alguns dos seus guardas que haviam sobrado, e de lá começaram a arremessar tijolos nos mongóis que tentavam capturá-los. Quando finalmente Inalchuk foi capturado, tentou desesperadamente oferecer todo o seu tesouro aos mongóis em troca de sua vida. Mas os mongóis jamais perdoariam as duas ofensas que haviam sofrido. Pegaram parte da prata que Inalchuk entregou, puseram em um caldeirão, derreteram e derramaram o metal líquido sobre a cabeça de Inalchuk. A história está presente também na excelente série de livros de ficção histórica de Conn Iggulden, O Conquistador.



-O Titã de Braavos
Essa é uma referência bastante óbvia, embora a fantasia tenha multiplicado o correspondente histórico da mesma forma como fez com a Muralha. O Titã de Braavos foi inspirado no Colosso de Rodes, uma das sete Maravilhas do Mundo Antigo que ficava na ilha de mesmo nome, ao sul da atual Turquia. O Colosso original foi erguido em 280 a.C, para comemorar uma vitória militar sobre o Chipre, e permaneceu de pé até 226 a.C quando foi destruído por um terremoto. No entanto, não era nem de longe das mesmas dimensões que o Titã de Braavos. Provavelmente tinha cerca de 33 metros de altura, mais ou menos o mesmo tamanho da Estátua da Liberdade. E assim como ela, o Colosso era todo revestido por bronze.
O Colosso de Rodes, em ilustração do século XVI (muito tempo depois de ele ser destruído)



-O Casamento Vermelho
Uma das cenas mais chocantes e sangrentas de toda a série Game of Thrones foi o Casamento Vermelho. Assassinar convidados em cerimônias como casamentos, coroações ou em qualquer situação similar era tido como altamente desrespeitoso e malvisto, e por algum motivo não costumava ajudar muito a alavancar a reputação do hóspede.
No entanto, ao longo da História houve sim alguns episódios de massacres e assassinatos durante jantares, casamentos e outras cerimônias. O registro mais próximo de algo que se assemelha ao Casamento Vermelho aconteceu na Escócia do século XV. Em 1437, o rei James I da Escócia morreu de forma bastante suspeita (não, não há registros sobre torta de pombo), deixando o trono para seu filho James II, de apenas seis anos. O regente de James II era um nobre influente, o conde Arquibaldo de Douglas. No entanto, Arquibaldo morreu vítima da peste negra pouco tempo depois. Foi a oportunidade para que dois ambiciosos nobres escoceses, William Crichton e Alexander Livingston, ganhassem influência sobre James II e sobre o reino da Escócia. Tentando se livrar de opositores, os dois chegaram a ordenar a prisão da mãe do pequeno rei James II, só devolvendo sua liberdade após ela ceder a custódia do rei aos dois nobres.
Mas havia duas outras pessoas que eram tão influentes sobre o pequeno James quanto sua própria mãe: os filhos de Arquibaldo. O mais velho, William, tinha dezesseis anos, e o mais novo, David, tinha doze. Ambos eram muito próximos do rei James II e o monarca os via como exemplos a ser seguidos, quase como uma idolatria. Além disso, os dois eram herdeiros do clã dos Douglas, e teriam em breve o controle sobre um dos maiores exércitos da Escócia. Crichton e Livingston sabiam que os irmãos poderiam fazer o rei se voltar contra eles ou pelo menos limitar sua influência, e conspiraram para matar os dois garotos.
Em novembro de 1440, Crichton e Livingston convidaram os irmãos Douglas para um jantar no castelo de Edinburgo. No meio do evento, guardas fecharam as portas do salão com suas alabardas. A banda não tocou As Chuvas de Castamere, mas foi servida a cabeça de um touro negro sobre uma bandeja - o que, na Escócia medieval, significava a morte de um dos convidados. Os dois irmãos foram levados ao pátio interno do castelo, julgados traidores por Crichton e Livingston, e decapitados ali mesmo. Na frente do rei James, que viu tudo. O episódio ficou conhecido como o Jantar Negro. Depois que James II chegou à idade adulta, os clãs Crichton e Livingston perderam gradativamente sua influência para o próprio clã Douglas - embora não haja registro de Crichton e Livingston como ingredientes de nenhuma torta nos anos seguintes.


-Escamagris
No universo de Game of Thrones e das Crônicas de Gelo e Fogo, a escamagris é uma doença altamente contagiosa que deixa a pele com um aspecto liquenificado, escamoso, e se dissemina pelo corpo até tomar o indivíduo completamente e, por fim, deixá-lo louco. Temendo o contágio, as autoridades de Westeros e Essos enviam todos aqueles com escamagris para as ruínas da Valíria, para que permaneçam lá até morrer - sem colocar nenhuma pessoa sã em perigo.
O paralelo que podemos fazer em nosso universo é a hanseníase, conhecida nos tempos antigos como lepra. Embora a chance de contágio seja muito, muito menor do que a da escamagris, os povos antigos não sabiam como lidar como a doença e também condenavam as vítimas a um exílio fora das cidades, em cavernas ou em comunidades chamadas leprosários. A hanseníase merece um texto inteiro para si, mas adianto que a transmissão do Mycobacterium leprae exige contato íntimo por bastante tempo, de forma similar à sua prima, a Mycobacterium tuberculosis. Os efeitos da hanseníase no organismo são muito dependentes do tipo de resposta imunológica que o indivíduo consegue elaborar, e os casos "de livro" com deformidade e perda de dedos de mãos e pés e desfiguração do rosto geralmente ocorrem na forma virchowiana da doença, enquanto a forma tuberculoide tende a ser mais restrita. A escamagris parece ser bem mais agressiva do que a hanseníase, embora a personagem Shireen, que nasceu com a doença, tenha tido uma forma restrita a uma parte do rosto apenas. Teria ela alguma resposta imune diferenciada?
Segundo as descrições, a escamagris, após acometer todo o corpo, causa repercussões mentais e deixa a pessoa louca e termina por matá-la. Por sorte, isso não ocorre com a hanseníase mesmo em sua forma virchowiana, e as poucas pessoas que realmente morrem da doença o fazem em decorrência de infecções ósseas nos pés ou em outras partes do corpo devido às lesões causadas pela própria hanseníase. Lembrando que a hanseníase tem cura, e seu tratamento é disponibilizado gratuitamente pelo SUS. 

A cura da hanseníase geralmente é menos dolorosa do que a da escamagris


-Os Greyjoy
Uma das famílias que dividem o poder em Westeros é a dos Greyjoy. Com seus domínios nas Ilhas de Ferro e uma lula gigante em seu escudo, eles são inegavelmente saqueadores dos mares. Piratas, ou - para fazer um paralelo com a Europa medieval - vikings. "Viking" não é a denominação de um povo, mas sim de uma atividade: saquear e roubar. Viking é um pirata nórdico, portanto. Detentores de avançadas tecnologias de construção naval e capazes de atacar, saquear e fugir rapidamente, aterrorizaram a Europa, o norte da África e o Oriente Médio desde o primeiro ataque ao mosteiro de Lindisfarna em 793 até meados do século XII, quando os últimos escandinavos se converteram ao cristianismo e abandonaram as atividades de saque.
Os Greyjoy fazem basicamente a mesma coisa na série. Vivem de saquear reinos e cidades da vizinhança. Seu lema deixa isso bem claro: "nós não semeamos". Os outros semeiam, eles colhem. Ou seja, seu modo de vida é se apropriar do que os outros conseguiram com trabalho ou comércio. "Pagar o preço do ferro" (o saque) é mais honroso do que "pagar o preço do ouro" (a obtenção através do comércio). Mais vikingo do que isso, impossível. 


-Incesto
Em Westeros, tanto na série quanto nos livros, o incesto é um tabu, da mesma forma como é no nosso universo. No entanto, tanto lá como aqui, algumas vezes ele foi praticado e às vezes até mesmo encorajado. Em Roma, uma sociedade onde o incesto não era bem-visto, Calígula manteve relações com suas três irmãs, reforçando sua imagem de depravado e louco. Uma reação similar àquela que ocorreu quando foi revelada a relação entre a rainha Cersei e seu irmão Jaime Lannister, e que deu origem a praticamente toda a disputa pelo trono dentro de Westeros dali em diante.
No entanto, entre os Targaryen, o incesto é algo perfeitamente normal, e muitos membros da dinastia se casavam com seus irmãos, primos ou tios sem qualquer tipo de tabu, em uma estratégia para conservar o poder evitando que membros de outras dinastias com as quais os Targaryen tivessem laços de casamento pudessem clamar o direito ao trino para si. Por mais estranho que possa parecer, os egípcios fizeram isso por milênios, com o mesmo objetivo. E quando o general Ptolomeu assumiu o poder no Egito após a morte de Alexandre, o Grande, sua dinastia continuou a adotar o mesmo costume, e por isso a linhagem real ptolomaica continuava sendo 100% grega/macedônica mesmo após séculos governando o Egito. Cleópatra, que era da dinastia ptolomaica, era grega (e branca), enquanto os egípcios nativos - incluindo as dinastias do Antigo, Médio e Novo Impérios (com faraós como Tutmés, Quéops, Hatshepsut, Ankhenaton, Tutankhamon, Nefertiti e Ramsés) - eram de um tom de pele bem mais escuro. A própria Cleópatra, aliás, era casada com seu irmão Ptolomeu XII até Júlio César chegar e ambos conspirarem para assassinar o jovem faraó.
Além dos egípcios e da dinastia ptolomaica, o incesto era encorajado também pelo zoroastrismo, religião predominante entre os persas até a chegada do islã. Em especial, a relação entre primos - algumas vertentes condenavam a relação entre irmãos ou entre pais e filhos. Tanto nobres quanto sacerdotes e mesmo a população geral costumavam encorajar o casamento entre primos, e havia quem considerasse que os fluidos corporais de um casal de primos tinha caráter sagrado. Casar com alguém de fora da família era algo pouco usual entre os zorostristas.


-Fogovivo
Em vários momentos na série  nos livros, os personagens lançaram mão de uma substância mágica, altamente inflamável e volátil chamada fogovivo, que queima com uma chama verde e é capaz de penetrar até em madeira, aço e couro, queimando por longo tempo mesmo se tentarem apagar com água. Dizia-se inclusive que Aerys II Targaryen, o Rei Louco, havia armazenado uma enorme quantidade de fogovivo sob Porto Real e certamente mandaria a cidade pelos ares se Jaime Lannister não o tivesse assassinado. Parece coisa de ficção.

Fogovivo sendo usado na Batalha da Baía da Água Negra

Pois bem, os bizantinos tinham uma substância muito parecida. O famoso fogo grego não queimava verde, mas era uma substância líquida que não podia ser extinta pela água, apenas por areia, vinagre forte ou urina. Havia navios bizantinos equipados com sifões, verdadeiros lança-chamas capazes de incendiar outros navios, e graças a eles o Império Romano do Oriente conseguiu resistir por muito tempo às incursões dos árabes e dos turcos seljúcidas. Também havia granadas incendiárias e projéteis de catapulta cheios de fogo grego. A receita para a substância era mantida em segredo absoluto, tanto que ela se perdeu com a tomada de Constantinopla - historiadores tentam chegar em um acordo sobre a sua composição, e a maioria acredita que um dos seus componentes tenha sido o petróleo. 

Representação de um navio bizantino lançando fogo grego sobre um inimigo

-Dragões
Não. Apesar de presentes em muitas culturas, da Europa à China, não há registros de dragões em nosso mundo, infelizmente.


-"O inverno está chegando"
No mundo das Crônicas de Gelo e Fogo, as estações tem um período variável que pode durar muitos e muitos anos. Até hoje (ou seja, até o quinto livro e o fim da sétima temporada), George R. R. Martin ainda não explicou por que isso acontece, embora muitos fãs acreditem que haja alguma razão ligada à magia.
Comparado à série, o clima da Terra é relativamente estável, mas já teve seus solavancos. Entre os séculos XVII e XIX, três pequenas "eras do gelo" ocorreram na Europa, e em algumas delas alguns dos principais rios chegaram a congelar. Explicações para esses eventos levam em consideração alterações na salinidade dos oceanos, vulcões lançando cinzas na atmosfera e alterações breves no eixo de rotação da Terra, entre outros fenômenos. Uma "pequena era do gelo" similar conhecida como Dryas Recente, provocada possivelmente por alteração na salinidade das correntes marítimas do Atlântico Norte onze mil anos atrás, causou a desertificação do Oriente Médio e provavelmente impulsionou a Humanidade para o desenvolvimento da agricultura.
Oscilações mais longas, conhecidas como glaciações, ocorrem periodicamente na História da Terra. a última tendo durado de 115 mil até 11 mil anos atrás, terminando justamente com o Dryas Recente. Essas glaciações são atribuídas a alterações no eixo de rotação da Terra. Nosso planeta não gira totalmente paralelo ao Sol, mas sim com uma inclinação de 23,5°, que permite as estações do ano, inclusive. No entanto, esse ângulo pode se alterar - e costuma se alterar de vez em quando - com repercussões sobre o clima global. Não se sabe exatamente o que provoca essas alterações, talvez uma mudança no campo magnético da Terra.
E sim, temos também o efeito antrópico - ou seja, o lançamento de gás carbônico na atmosfera pelas atividades humanas. Gases sabidamente capazes de reter calor, como o gás carbônico e o metano, que em excesso podem transformar a Terra em Vênus e em quantidade muito pequena nos fariam parecidos com Marte, estão sendo lançados continuamente na atmosfera. O gás carbônico, que manteve sua concentração entre 200 e 300 partes por milhão no último milhão de anos segundo as amostras de ar presas no gelo da Antártida, saltou nos últimos dois séculos para 400 partes por milhão, com as temperaturas globais acompanhando a trajetória para cima. Todo o carbono aprisionado na crosta terrestre no último bilhão de anos sob a forma de carvão e petróleo está voltando para a atmosfera rapidamente, e as repercussões de uma mudança tão drástica na composição atmosférica certamente não são boas - e já começam a ser sentidas.
Inclusive, o próprio George R. R Martin já afirmou em uma entrevista ao New York Times que a história das Crônicas de Gelo e Fogo tem um paralelo com a questão das mudanças climáticas no mundo real.
"As pessoas em Westeros estão lutando suas próprias batalhas individuais por poder, status e riqueza. E estão tão distraídas que ignoram a ameaça de que 'o inverno está chegando', que tem o potencial de destruir todos eles e destruir o mundo deles. E existe um grande paralelo lá, eu imagino, com o que vejo neste planeta aqui, onde estamos lutando nossas próprias batalhas. Estamos lutando por questões, questões importantes, é bom lembrar - política interna, política externa, direitos civis, responsabilidade social, justiça social. Todas essas coisas são importantes, mas enquanto estamos nos digladiando sobre elas e gastando tanta energia, existe essa ameaça das mudanças climáticas que, para mim, é conclusivamente provada pela maioria dos dados e por 99,9% da comunidade científica. E realmente tem o potencial de destruir nosso mundo. E estamos ignorando isso enquanto nos preocupamos com a próxima eleição e com questões como empregos. Claro, empregos são uma questão muito importante, todas essas questões são importantes. Mas nenhuma delas é importante se estivermos mortos e nossas cidades estiverem debaixo do oceano. Então realmente, as mudanças climáticas devem ser uma prioridade número um para qualquer político capaz de enxergar além da próxima eleição. Mas infelizmente só há um punhado deles. Gastamos dez vezes mais energia, intelecto e debate em questões como se jogadores da NFL devem se levantar para o hino nacional do que para essa ameaça que irá destruir o mundo."


É claro que existem muitos, muitos outros paralelos entre As Crônicas de Gelo e Fogo e nossa História e nosso mundo, mas citar todos seria impossível (e renderia um texto ainda maior). Os paralelos entre Brunilda e Cersei, por exemplo. Ou Tyrion e Ricardo III. Nada disso diminui o valor da série e dos livros - pelo contrário! Eu acho particularmente fascinante uma obra pegar um evento histórico, transformá-lo e explorar outras facetas ou alternativas que não ocorreram na realidade mas poderiam ter acontecido. As Crônicas de Gelo e Fogo e Game of Thrones fazem isso, e colocando dragões no meio!
Agora, vamos acompanhar a última temporada da série e esperar que algumas das grandes questões que permanecem desde o começo sejam reveladas. Se nem tudo ficar claro, aguardemos os últimos dois livros.
Quem viver verá.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Uma fábula sobre coelhos


Em meados do século XIX, a Austrália passava por um novo ciclo de colonização. O território, que inicialmente era uma colônia penal, começava a receber mais e mais cidadãos ingleses, escoceses e irlandeses, em parte devido à descoberta de ouro e em parte pela expansão da criação de gado até o interior australiano. Um desses colonizadores britânicos era Thomas Austin, um apaixonado por caça cujo hobby vinha desde a juventude na Inglaterra. Em dezembro de 1859 ele levou para a Austrália doze casais de coelhos europeus (Oryctolagus cuniculus) para que servissem como caça e dessem um clima mais “europeu” à sua propriedade australiana. Que mal poderia acontecer, não é mesmo? Outros colonos fizeram a mesma coisa nos anos seguintes, soltando mais coelhos em suas fazendas. Os pequenos animais já haviam sido introduzidos antes na Austrália, mas para servir de alimento e, na maior parte das vezes, criados em cativeiro, e por isso sua população se manteve estável. Depois de Thomas Austin, não mais. Sem predadores naturais e se reproduzindo livremente no ritmo pelo qual os coelhos são famosos por se reproduzir, logo sua população explodiu. Dizer que a situação “saiu do controle” é eufemismo. Em menos de um século, eles já eram mais de meio bilhão, tornando-se provavelmente o caso mais dramático de uma espécie invasora em toda a História. Viraram uma verdadeira praga. Competiam com os marsupiais nativos por alimento, destruíam a vegetação expondo o solo à erosão, devastavam plantações e pastagens para o gado... A ameaça chegava até mesmo à acácia, a planta-símbolo da Austrália (e o motivo pelo qual o verde e o amarelo estão em todos os uniformes de atletas australianos, mesmo que essas cores não estejam na bandeira do país): os coelhos comiam os brotos dos espécimes mais jovens e não permitiam que eles se desenvolvessem.
Era preciso conter os coelhos antes que eles acabassem com a Austrália. Tentou-se de tudo: armadilhas, veneno, cercas de contenção... Nada funcionou, ou pelo menos não funcionou bem o suficiente para evitar que a praga se alastrasse ainda mais. Foi então que alguns cientistas, liderados por um microbiologista australiano chamado Frank Fenner, tiveram uma ideia digna de filme de apocalipse zumbi: liberar um vírus altamente letal, capaz de eliminar todos (ou quase todos) os coelhos que infestavam a Austrália. E não só a Austrália: a Inglaterra e outros países da Europa também enfrentavam problemas causados por explosões populacionais de coelhos. Vieram buscar no Brasil um vírus que tinha como hospedeiro natural uma espécie de coelho nativa do cerrado brasileiro (Sylvilagus brasiliensis), o mixomavírus. Embora não causasse praticamente nenhum sintoma nos coelhos sul-americanos (o que era de se esperar para um organismo que é o reservatório natural do vírus), era devastador contra os coelhos europeus, dando origem a nódulos gelatinosos – chamados mixomas –  que se abriam em úlceras na pele, nas mucosas e nos órgãos internos, levando à morte em até duas semanas. Projeções baseadas em estudos de laboratório falavam em 99% de letalidade. Além disso, o vírus era transmitido através da picada de mosquitos, o que significava que poderia chegar a populações de coelhos sem precisar de contato direto entre cada um deles. A introdução dos mosquitos contendo o vírus foi debatida e considerada polêmica na época, mas ainda assim foi tentada repetidas vezes na primeira metade do século XX. Por razões provavelmente ligadas ao clima e à quantidade de mosquitos, a circulação do mixomavírus na Austrália só ocorreu de fato a partir do início da década de 1950 – e se mantém até hoje. Mais ou menos na mesma época, também foi introduzido na Europa. Foi um sucesso estrondoso: na Austrália, a letalidade chegou a 99,8% no primeiro ano, e em determinados locais mais de 90% dos coelhos morreram (ou seja, com raríssimas exceções, aqueles que sobreviveram foram os que por algum motivo não tiveram contato com o vírus). Estima-se que essa primeira introdução com sucesso do vírus na Austrália, o número de coelhos caiu de 600 milhões para algo como 100 milhões. No entanto, nos anos seguintes a letalidade do mixomavírus foi diminuindo. A cada ano que passava, uma proporção cada vez menor de coelhos morria em decorrência do vírus liberado para controlá-los. Alguma forma de resistência genética ao mixomavírus havia surgido entre os coelhos e se tornado mais comum por um mecanismo de seleção natural, pensaram os cientistas. Ou seja, ao longo dos anos os coelhos resistentes sobreviviam e se multiplicavam, tomando o lugar dos suscetíveis que morriam em massa. Era o que se poderia esperar de uma adaptação entre um hospedeiro e um micro-organismo, certo?
Análises posteriores indicaram que a causa dessa queda inicial na taxa de letalidade do vírus realmente estava ligada à seleção natural. Mas não dos coelhos, e sim do mixomavírus. Os pesquisadores que acompanhavam a epidemia descobriram que o vírus inicial havia dado origem a cinco cepas diferentes, que foram denominadas de I a V baseadas em sua letalidade. A cepa I era a mais agressiva e tinha uma letalidade de 100%, matando em menos de 13 dias. A cepa II tinha mortalidade entre 95 e 99%, levando à morte entre 13 e 16 dias. A cepa III, de letalidade mais moderada, matava entre 70 e 95% dos coelhos, e o fazia entre 17 e 28 dias após o início da infecção. A cepa IV tinha letalidade entre 50 e 70%, e as mortes ocorriam de 29 a 50 dias depois do contato com o vírus. Por fim, a cepa V era a mais branda, com letalidade menor de 50% e sem um período específico para as mortes (não se engane, leitor: 50% de letalidade ainda é muita coisa, e poucas epidemias na História da espécie humana já chegaram a esse ponto; mas para um vírus introduzido especificamente para eliminar ou controlar uma espécie, é possível dizer que 50% de letalidade significa uma letalidade branda). E embora a circulação da cepa I tenha diminuído com o passar do tempo, não houve aumento da cepa V – pelo contrário, eles circulavam cada vez menos ao longo dos anos. Contrariando as previsões daqueles que acreditavam que o vírus diminuiria cada vez mais de letalidade, a cepa mais prevalente, e que se tornou ainda mais comum durante o período de estudo, foi a cepa III, seguida da IV. Por que? Coelhos com as cepas I e II, a mais agressivas, morriam muito rápido – tão rápido que o período em que conseguiam infectar um mosquito para que ele transmitisse o vírus a outros coelhos era muito curto. Por outro lado, coelhos da cepa V viviam bastante tempo, mas suas lesões eram muito pequenas e não havia uma quantidade suficiente de vírus circulando em seu organismo para que um mosquito se infectasse e transmitisse a outros coelhos. As cepas III e IV, que ficavam no meio do caminho, mantinham uma quantidade alta de vírus (não tão alta quanto no caso das cepas I e II, mas suficientemente altas) circulando por tempo suficiente para que o mixomavírus chegasse a mais coelhos. Em resumo, a seleção natural escolheu as cepas mais eficientes em se multiplicar, e não as mais brandas. E isso não ocorreu apenas na Austrália: na Europa a emergência de cepas do mixomavírus seguiu um padrão muito semelhante.
Obviamente, após dez ou vinte anos, a seleção natural também começou a agir nos coelhos, e aqueles que tinham alguma característica genética que conferia resistência ao vírus foram substituindo os mais suscetíveis, e a sua população voltou a aumentar – passando de 100 milhões para algo entre 200 e 300 milhões, embora caça, veneno e cercas de contenção tenham ajudado a controlar a população de lagomorfos também (sim, leitor, essa é uma revelação bombástica: os coelhos não são roedores, são lagomorfos!). Enfim, a relação entre micro-organismos e hospedeiros seguiu seu curso natural e um lado “aprendeu” a tolerar o outro, não é mesmo? Não. A “corrida armamentista” deu uma verdadeira reviravolta e entrou em uma nova fase a partir da década de 1990. Mutações no código genético do mixomavírus deram origem a uma cepa que era incapaz de formar mixomas, mas que conseguia diminuir absurdamente a resposta inflamatória dos coelhos infectados. Uma ótima forma de escapar do sistema imunológico e continuar se proliferando no organismo do hospedeiro sem a resposta esperada por parte das células de defesa. Só que, ao diminuir a resposta inflamatória, o vírus prejudicava também a atividade do sistema imunológico contra outros micro-organismos, incluindo as bactérias da pele, das vias aéreas e da microbiota intestinal. Os coelhos começaram a morrer por causa de uma imunodeficiência grave, com uma queda dramática no número de linfócitos no baço e nos linfonodos, e com focos de infecção em órgãos como pulmões, fígado, baço, rins e coração, além de necrose nos linfonodos em torno do intestino. Sofriam um colapso rápido sob a forma de choque séptico, e apesar da infecção não desenvolviam febre – o que é compatível com um sistema imunológico tão fraco que é incapaz de promover uma resposta inflamatória. O mais curioso (ou bizarro) foi que isso começou a acontecer de forma independente nos coelhos europeus e nos australianos.
E esse provavelmente não é o fim da história. Nada impede que alguns dos coelhos tenham alguma característica genética que dificulte ou compense essa imunossupressão grave causada por essa nova cepa de mixomavírus, e que sobrevivam a ela voltando a povoar o interior da Austrália e os campos da Europa – pelo menos até a próxima etapa dessa corrida armamentista cheia de reviravoltas. No fundo, tanto os coelhos quanto o vírus estão tentando seguir à risca o que fazem todos os seres vivos deste planeta: sobreviver, gerar descendentes e perpetuar sua linhagem.

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