quarta-feira, 24 de julho de 2019

Sobre sarampo e desinformação

Uma criança com sarampo. Fonte: https://www.cdc.gov/measles/

Se alguém em 2009 dissesse que em dez anos o sarampo voltaria aos noticiários no mundo todo, seria considerado ousado, talvez desinformado ou, na pior das hipóteses, louco. Apesar de surtos ocasionais em um ou outro país, a incidência global da doença estava diminuindo. No ano 2000 os EUA se declararam livres da transmissão do sarampo, e o último caso de sarampo ocorrido de forma autóctone nas Américas havia ocorrido em 2002. Ou seja, os único casos ocorridos a partir de então tiveram origem no exterior e haviam sido trazidos para o continente americano por viajantes. Outros países estavam caminhando para sua eliminação, e já se falava em erradicar a doença nas décadas seguintes. Mas algo deu muito errado no meio do caminho, e cá estamos nós, em 2019, testemunhando uma epidemia de sarampo na maior cidade do Brasil - depois de episódios similares em cidades de Roraima, Amazonas e Pará. A história do ressurgimento do sarampo no mundo é uma parábola do nosso fracasso como civilização. Fracasso em realizar um esforço global para eliminar uma doença que só existe em humanos. Fracasso em manter uma cobertura vacinal adequada em regiões que já não possuem casos da doença. E fracasso em conter a disseminação de outra epidemia, a da mentira e da desinformação nos tempos atuais em que a notícia (incluindo a mentirosa) avança mais rápido do que nosso raciocínio e nosso senso crítico podem dar conta. Pois comecemos do começo: o que é o sarampo, de onde ele veio e o que ele faz?
O sarampo é causado por um vírus da família dos paramixovírus, cujo material genético é feito de RNA. A cepa ou variedade de sarampo que circula nos dias de hoje é um parente próximo do vírus da peste bovina (Rinderpest, uma doença que foi erradicada no início do século XXI graças à vacinação do gado), e relógios moleculares indicam que a separação entre as duas linhagens provavelmente ocorreu há cerca de mil anos. Nesse período, a circulação do vírus que daria origem ao sarampo entre humanos favoreceu mutações que o tornaram mais especializado, a ponto de ele perder sua afinidade com o gado e circular apenas entre seres humanos. Considerando uma margem de erro de alguns séculos, essa datação condiz com a primeira descrição do sarampo como doença distinta da varíola e da catapora, feita pelo médico persa Rhazes em Bagdá por volta de 910 d.C. É possível que outras cepas do ancestral do sarampo e da peste bovina tenham sido transmitidas para humanos ou até mesmo circulado de um humano para outro diversas vezes nos séculos ou milênios anteriores, mas nesses casos o surto não foi à frente porque acometeu populações isoladas e minguou antes que um desses indivíduos doentes transmitisse o vírus para outras pessoas. A variedade atual de sarampo se espalhou com facilidade graças à maior densidade populacional existente no Oriente Médio e depois na Europa, no norte da África e no restante do planeta naquela época, bem como à rede comercial e de estradas que permitia o deslocamento relativamente rápido entre vilarejos. Colaborou para isso também o fato de o sarampo ser uma doença altamente contagiosa e poder ser transmitida pelo ar até mesmo três a cinco dias antes de o indivíduo doente iniciar os sintomas. Em um ambiente fechado, o vírus pode permanecer suspenso no ar por até duas horas. Dessa forma, um indivíduo com sarampo consegue transmitir a doença para até dezoito pessoas, e quando ele começar a manifestar os sintomas outras pessoas já entraram em contato com o vírus. É uma das doenças mais contagiosas que a Humanidade conhece.
E que sintomas são esses? O sarampo é ao mesmo tempo uma doença respiratória (como a gripe e o resfriado) e exantemática (ou seja, causadora de lesões avermelhadas na pele, como a rubéola e a catapora). Os primeiros sintomas são febre (geralmente alta, acima de 39°C), tosse, coriza, irritação nasal e conjuntivite - ou seja, vermelhidão nos olhos. Nessa fase da doença podem surgir lesões esbranquiçadas na face interna das bochechas, visíveis ao exame da cavidade oral, chamadas manchas de Koplik e que são consideradas patognomônicas do sarampo - ou seja, nenhuma outra doença conhecida é capaz de causar o mesmo sinal. 
Resultado de imagem para koplik spots
Manchas de Koplik na mucosa oral. Fonte: https://medlineplus.gov/ency/imagepages/2558.htm


Em alguns dias surgem lesões avermelhadas na pele, inicialmente na cabeça e se espalhando depois para o tronco e os membros. O aspecto é similar ao de outras doenças exantemáticas, ou ao de uma reação alérgica. Outros sintomas mais atípicos podem surgir em alguns pacientes, como infecções de ouvido ou diarreia. Em geral, eles ocorrem mais em crianças pequenas, com menos de 2 anos de idade.
Exantema causado pelo sarampo. Fonte: https://www.cdc.gov/measles/images/people_measles7.jpg


Na grande maioria dos casos a pessoa - geralmente uma criança - se recupera sem sequelas. No entanto, 1 a cada 5 pessoas com sarampo precisa de internação (nos EUA, embora seja possível que no Brasil as estatísticas também girem em torno disso). 1 em cada 1000 crianças pode desenvolver encefalite (acometimento do cérebro pelo sarampo), que pode ser fatal ou resultar em sequelas para o resto da vida. Pneumonias, sejam causadas pelo próprio sarampo ou por bactérias que aproveitam a mucosa respiratória já lesada para causar infecção, ocorrem em 1 a cada 20 pacientes com sarampo, e podem também levar à morte. 1 a 3 em cada 1000 crianças acaba morrendo de complicações respiratórias ou neurológicas - um número que chegava a 30% quando ainda não havia antibióticos. E existe uma entidade clínica mais rara chamada pancencefalite esclerosante subaguda, que pode acometer crianças anos após o contato com o vírus e levar a distúrbios cognitivos e de comportamento, degeneração neurológica e óbito. 
Em geral, o sarampo é mais grave em crianças menores de 5 anos, adultos com mais de 20 anos, gestantes, pessoas desnutridas (principalmente aquelas com baixos níveis de vitamina A) e pessoas com imunidade baixa - incluindo pacientes com AIDS com quantidades de linfócitos CD4 menores que 200, segundo o CDC. Em crianças desnutridas, a mortalidade do sarampo pode chegar a assustadores 10%. 
Por essa facilidade de se disseminar e causar surtos e epidemias e pela possibilidade de levar a uma pneumonia ou a uma inflamação no sistema nervoso central, o sarampo foi durante muitos séculos uma doença mortal, especialmente em crianças. É bom lembrar que, embora pareçam pequenos, esses números (1 caso de encefalite a cada 1000 pacientes, 1 a 3 óbitos a cada 1000 pacientes...) ficam muito altos em termos absolutos quando estamos falando de populações maiores. Uma cidade com 1 milhão de habitantes terá 1 a 3 mil óbitos por sarampo se a mortalidade permanecer dentro dessa estatística.
Infelizmente não existe uma medicação capaz de curar o sarampo. Diversos antivirais já foram testados, mas nenhum se mostrou capaz de conter o vírus ou suas consequências. Devido à correlação entre deficiência de vitamina A e casos mais graves, tem sido comum ofertar vitamina A para os pacientes com sarampo. De resto, o que se pode fazer é oferecer suporte: conter a febre, tratar pneumonias bacterianas e aguardar a recuperação.
A única medida efetiva contra o sarampo é a vacina. A primeira versão surgiu na década de 1960, e desde então ela tem sido adotada no mundo todo. Seu sucesso em conter epidemias e surtos é inegável. A versão atual utilizada no Brasil é composta por vírus atenuados (ou seja, viáveis porém fracos o suficiente para não causar doença a não ser que a pessoa esteja com a imunidade muito debilitada). Em geral, vacinas de vírus atenuados tendem a garantir uma imunidade maior e mais prolongada do que aquelas causadas por vírus mortos. É administrada juntamente com as vacinas de caxumba e rubéola na mesma ampola - daí seu nome MMR - sigla em inglês para Mumps (caxumba), Measles (sarampo) and Rubella (rubéola). No Brasil, a mortalidade despencou de 5% para zero no último quartil do século XX. A última epidemia de sarampo havia ocorrido em 1997, e os casos da doença caíram dramaticamente desde então. Declaramos que o país estava livre da doença, e que novos casos só ocorreriam se viessem de fora do país. Em todo o mundo, as mortes anuais por sarampo caíram de 1,2 milhão em 1985 para menos de 100 mil em 2016 graças às campanhas de vacinação. Falava-se em erradicar a doença nas décadas seguintes, assim que conseguíssemos fazer os esforços mundiais penetrarem nos rincões da Ásia e da África. O sarampo (e talvez a poliomielite) se juntariam à varíola e à peste bovina, as duas outras doenças que conseguimos eliminar da face da Terra. O clima era de otimismo.
No entanto, começamos a relaxar. A cobertura vacinal caiu. Parte da culpa foi dos governos e das autoridades de saúde locais, que não aplicaram as duas doses recomendadas (idealmente aos 12 e aos 15 meses de vida) como deveriam aplicar. Por que se preocupar, já que é uma doença que está desaparecendo? Mas parte da culpa também era das pessoas. Para que vacinar meus filhos contra uma doença que está desaparecendo? Por que vacinar se o meu vizinho já se vacinou e não vai transmitir para mim nem para meus filhos? As gerações mais novas já não sabiam o que era sarampo. Já não se importavam. E com isso, a estratégia de sucesso do controle do sarampo pela vacina, o efeito rebanho, se tornou insustentável.
Explico-me: como o sarampo é uma doença extremamente contagiosa, uma pessoa com a doença disseminará o vírus para todos aqueles em volta desde três a cinco dias antes do início dos sintomas até quatro dias depois do surgimento das lesões de pele, em média. Para evitar que essas pessoas em volta contraiam a doença, é preciso que elas estejam vacinadas. No entanto, existem alguns grupos de pessoas que não podem receber a vacina, porque seu sistema imunológico está debilitado demais para lidar com o vírus atenuado que ela contém. Gestantes (não por si mesmas, mas pelo feto que não possui sistema imunológico maduro), bebês até 6 meses de idade e pessoas com doenças que afetam a imunidade (AIDS com CD4 menor que 200, receptores de transplantes, pessoas com neoplasias como leucemia ou que têm alguma doença genética que resulta em baixa imunidade) não podem ser vacinadas, e por isso estão em risco de adoecer se entrarem em contato com alguém com a doença. Agora imagine um bairro com cem casas, cada uma habitada por uma pessoa. Em uma ponta do bairro vive uma pessoa com sarampo. Em outra mora uma pessoa que não pode tomar a vacina - digamos, uma pessoa que trata uma leucemia. É pouco provável que a pessoa com sarampo interaja com o indivíduo com leucemia a ponto de transmitir a doença para ele, portanto a transmissão será muito mais fácil de ocorrer se "saltar" de uma pessoa para outra. Ou seja, se o indivíduo com sarampo transmitir a doença para um de seus vizinhos mais próximos, e esse adoecer e transmitir para outro, que transmitirá para outro, e assim por diante até que o vizinho do lado do paciente com leucemia também esteja com a doença. É o que aconteceria se nenhum dos moradores se vacinasse. No entanto, se todas as outras 98 pessoas do bairro tiverem sido vacinadas (excetuando o paciente com sarampo e o com leucemia), nenhuma delas contrairá a doença e portanto não poderá transmitir o vírus adiante. Porém, se 50% delas não tiver sido vacinada, a transmissão ainda será muito provável. Modelos matemáticos indicam que é preciso que pelo menos 95% das pessoas estejam imunizadas para que o risco de transmissão seja desprezível, e essa era a meta das campanhas de vacinação: vacinar 95% das pessoas. 95% das pessoas imunizadas no bairro, no metrô, no elevador do prédio de escritórios, no shopping... Se essa proporção fosse garantida, jamais teríamos novas epidemias de sarampo. Mesmo que por azar uma pessoa transmitisse a doença para outra que não estivesse vacinada, a chance de que uma das duas vítimas transmitisse para uma terceira suscetível ao redor era quase nula.
No entanto, vacinar 95% das pessoas não é uma tarefa fácil. Exige um esforço intenso e contínuo para correr atrás inclusive daquelas que não procuraram as unidades de saúde. É caro e demanda esforço, recursos e vontade do poder público. Nem sempre temos os três juntos. E com a diminuição no número de casos, a cobertura vacinal começou a minguar. Para ser justo, no Brasil dificilmente chegou aos 95%, mas se manteve em torno dos 90% em grande parte do território. Mas depois caiu para menos de 90%. Depois para menos de 80%. Depois para menos de 70% em algumas regiões. No entanto, não se pode culpar apenas a negligência do poder público, porque casos novos de sarampo começaram a ressurgir em outros lugares do mundo. Nesse caso, foi por culpa de outra epidemia: a da ignorância.
Em 1998, um médico britânico chamado Andrew Wakefield publicou um estudo com 12 pacientes em que dizia ter encontrado uma relação entre a vacina MMR e o autismo. Segundo ele, o vírus vacinal permanecia nos tecidos linfoides do intestino, deflagrava uma resposta imunológica anormal e isso resultava em autismo. Apesar da pequena amostra (12 pacientes é um número muito pequeno para se tirar conclusões, na grande maioria das vezes) e de outras inconsistências, o artigo foi aceito e publicado no Lancet, uma das revistas médicas mais conceituadas do mundo. O que Wakefield não revelou foi que ele recebera financiamento de advogados que tinham como objetivo processar os produtores de vacinas em nome de seus clientes - pais cujos filhos haviam sido diagnosticados como autistas pouco tempo depois de receber a vacina. Também não revelou que ele próprio estava patenteando uma vacina própria que, segundo ele, não causaria autismo. Ou seja, havia conflito de interesses na publicação de Wakefield, que aparentemente esperava lucrar com a informação contida em seu estudo, tanto com o patrocínio de advogados quanto com a patente da vacina nova. Novos estudos foram realizados, com um número muito maior de participantes, e nenhum deles encontrou absolutamente nenhuma relação entre a vacina MMR e o autismo. Descobriu-se depois que alguns daqueles 12 pacientes do estudo já exibiam sinais sugestivos de autismo antes de tomar a vacina, e outros haviam sido diagnosticados de forma errada. No fim das contas, a publicação de Andrew Wakefield ficou caracterizada como fraude, e o Lancet a retirou de sua revista após 12 anos (o mais intrigante é como e por que motivo ele conseguiu ser publicado, evidenciando que não é porque um artigo está em uma revista bem-conceituada que ele necessariamente é confiável). Wakefield perdeu o direito de exercer a Medicina no Reino Unido e nos EUA, onde vive hoje.
No entanto, o estrago estava feito. A notícia falsa aparece na manchete, e a retratação dizendo que ela é mesmo falsa aparece na página seis. Explicações fáceis e simples chamam muito mais atenção e atraem muito mais pessoas, especialmente quando estamos falando de uma doença cuja causa é até hoje desconhecida. Sabe-se que o autismo tem algum componente genético e algum ambiental, mas ainda não está clara a influência de cada um nem quais são esses componentes especificamente - o que se pode afirmar, com segurança, é que a vacina não está entre eles. O transtorno de espectro autista (porque vai desde quadros leves como a síndrome de Asperger até casos em que a pessoa é incapaz de falar) parece ter início nos primeiros meses após o nascimento ou mesmo intraútero, mas seus sinais começam a ficar mais claros após o primeiro ano de vida quando a criança começa a falar e a interagir mais socialmente - e justamente na mesma época em que as crianças recebem a vacina MMR. Mas nada disso conseguia convencer milhares ou milhões de pais de crianças autistas, ansiosos por um culpado para a dificuldade de interação social dos seus filhos. Culpar a vacina e dizer que Wakefield era vítima de uma conspiração global era muito mais fácil do que se conformar com o fato de que ainda não sabemos o que causa o transtorno de espectro autista. Desde a publicação fraudulenta de Wakefield, a procura pela MMR mesmo em países desenvolvidos despencou. Bairros de Los Angeles, Nova York e Londres passaram a ter proporcionalmente menos crianças vacinadas contra o sarampo do que comunidades isoladas no interior da África. Culpou-se o timerosal, o conservante à base de mercúrio adicionado a algumas vacinas (mas não à MMR) que fazia com que durassem mais tempo - e que também estava presente no Merthiolate até sua fórmula mudar. Mesmo que uma dose de vacina com timerosal tivesse menos mercúrio do que uma lata de atum em conserva, o timerosal foi banido - e levar vacinas às regiões remotas ficou mais caro. Depois, quando ficou provado que o timerosal não era o culpado, culparam o alumínio, presente em pequenas doses das vacinas, que novamente se descobriu que não tinha nenhuma relação com autismo. Os negadores da ciência continuam em busca de um culpado pelo autismo, e vão se agarrar ao primeiro que for apontado por um charlatão qualquer. Wakefield pode não ser autorizado a praticar a Medicina nos EUA, mas está ganhando rios de dinheiro com o movimento antivacinas, graças a seus seguidores descerebrados.
Com a queda na procura pela vacina, novos casos de sarampo voltaram a surgir no mundo todo. Alguns foram motivados pela desconfiança semeada por Wakefield sobre a vacina, como em muitos lugares da Europa e dos EUA. Outros, pelo colapso de sistemas de saúde locais devido a guerras ou crises econômicas, como na Ucrânia e na Venezuela. E outros também pela recusa em vacinar, mas vindo de grupos religiosos ultraortodoxos que proíbem vacinas entre seus pares.
O Brasil, livre do sarampo por anos, estava despreparado para o retorno do vírus. Com o colapso econômico da Venezuela sob Nicolás Maduro, a cobertura vacinal no país despencou, e teve início uma epidemia no país a partir de 2017. Com a crise econômica, milhares de venezuelanos fugiram do país. Um pequeno número veio para o Brasil (alguns milhares, mas nada comparável ao número de refugiados na Colômbia ou no Peru, por exemplo), e com o vírus circulando inicialmente entre os venezuelanos, não tardou para que fosse transmitido também para os brasileiros. Surtos irromperam em Boa Vista, Manaus e Belém a partir do início de 2018. Importante destacar: não se pode fugir da responsabilidade e culpar os venezuelanos pela epidemia de sarampo entre os brasileiros. Se tivéssemos nossa cobertura vacinal nos 95% recomendados, a epidemia vista no Norte do Brasil jamais teria acontecido. Com vacinação de bloqueio em todos aqueles que tiveram contato com casos, a epidemia foi contida - não sem antes causar mais de dez mil vítimas, com doze óbitos, a maior parte no Amazonas e em Roraima.
No entanto, vivemos agora outra epidemia, por casos originados não na Venezuela, mas sim em países da Europa e em Israel. No caso do indivíduo que trouxe o vírus de Israel, provavelmente há ligação com um surto da doença no país iniciada em comunidades de judeus ultraortodoxos que se recusam a se vacinar e a vacinar seus filhos. Não por acaso, um surto em Nova York também envolveu uma comunidade de judeus ortodoxos. São Paulo apresenta o maior número de casos: são quase 500, 75% deles concentrados na capital. Minas Gerais e Rio de janeiro também registraram casos, bem como o Pará, cujos casos ainda parecem derivar da epidemia que acometeu o norte do Brasil vindo da Venezuela. Os dados mais recentes disponíveis são do dia 12 de julho, e provavelmente mudarão com o avançar da epidemia. Novamente, vale aqui o que valia para o Norte do Brasil em 2018: a epidemia dificilmente estaria ocorrendo se a cobertura vacinal estivesse nos 95% recomendados.
A principal recomendação para controle da epidemia é e continuará sendo a vacinação. Todas as pessoas com mais de 1 ano e menos de 30 anos devem tomar 2 doses da vacina. Geralmente a primeira dose é dada aos 12 meses e a segunda aos 15, mas caso o indivíduo não tenha sido vacinado nessa época ele pode receber a vacina em qualquer idade até os 30 anos, em duas doses separadas por pelo menos 30 dias. Pessoas entre 30 e 49 anos teoricamente entraram em contato com o vírus ou receberam uma dose da vacina em algum momento da vida, então teoricamente só precisam de uma nova dose. Pessoas com 50 anos ou mais em tese já entraram em contato com o vírus do sarampo uma vez na vida e, graças à memória imunológica, não precisam se vacinar. No estado de São Paulo, devido ao crescente número de casos, esse limite entre precisar de uma dose da vacina e não precisar se vacinar foi estabelecido como 60 anos, e não 50. Pessoas que entraram em contato com alguém com suspeita de sarampo devem tomar a vacina preferencialmente em até 72 horas, independentemente de estado vacinal prévio. Ou seja, mesmo se já receberam duas doses - essa estratégia é conhecida como vacinação de bloqueio. Em indivíduos sem contraindicações, tomar uma terceira dose não causará nenhum mal - na dúvida entre vacinar e não vacinar, vacine. As contraindicações continuam as mesmas: gestantes, menores de 6 meses, imunossuprimidos e também pessoas que possuem alergia à vacina. Pessoas que comprovadamente já tiveram sarampo estão imunizadas e não precisam ser vacinadas. Bebês entre 6 e 12 meses de idade podem tomar a vacina para se proteger temporariamente, mas não há garantia de que a imunidade de memória esteja madura a ponto de proteger para o resto da vida. Assim, essa dose feita antes dos 12 meses não contará na carteirinha de vacinação, e eles deverão tomar as duas doses regulares aos 12 e aos 15 meses. Nos casos em que o indivíduo entrou em contato com alguém com sarampo e possui alguma contraindicação à vacina, a recomendação é a aplicação de imunoglobulinas - anticorpos externos que neutralizam o vírus antes que eles tenham efeito sobre o organismo. A distribuição de imunoglobulinas para a população geral é fortemente desencorajada porque elas são muito caras, difíceis de obter e, se aplicadas em massa, podem faltar para aqueles contactantes que realmente precisarem delas. Como medida de proteção coletiva, a vacina é o instrumento recomendado.
As recomendações mudam constantemente, assim como os números da epidemia. Por isso é recomendado acompanhar os informes e as publicações mais recentes. Pode ser que nos próximos dias tudo o que está escrito no parágrafo anterior mude. Também é possível que consigamos conter essa epidemia, ou que ela se espalhe por outros estados. Uma pessoa em um avião fechado em um voo de 3 horas pode transmitir o vírus para praticamente todos os suscetíveis que estavam no mesmo voo, levando o vírus para outros estados e outras cidades. Um indivíduo vindo de São Paulo passou por duas cidades no Espírito Santo a caminho de outra cidade em Minas Gerais, e obrigou a vigilância epidemiológica local a realizar vacinações de bloqueio em todos os contactantes. Outras localidades certamente têm e terão situações similares. Pode ser que consigamos conter essa epidemia, mas que no mês, semestre ou ano seguinte outra pessoa, vindo de outro lugar do planeta, traga outro vírus e dê início a outro surto ou outra epidemia. Em tempos de viagens internacionais que duram horas, a única forma de estar preparado é garantir que a população do destino esteja imunizada. Repetindo o que já escrevi no começo do texto: o sarampo é uma doença extremamente contagiosa e que pode matar.
O sarampo tem como único hospedeiro o ser humano, sobrevive algumas horas no ambiente e quem já teve a doença  ou recebeu as doses adequadas da vacina já está imunizado. Eliminá-lo não é impossível, mas depende de esforços conjuntos e da consciência de que, se eu não me vacino, posso prejudicar o vizinho que não pode se vacinar. Acima de tudo, a luta que estamos perdendo contra o sarampo evidencia que a nossa ignorância e nossa inclinação a acreditar em charlatães são a nossa ruína. Só o combate à desinformação pode impedir que cometamos atos de sabotagem contra nós mesmos e nossos filhos, expondo-os a males que já poderiam ser eliminados da face da Terra. A julgar pelo número crescente não só de anti-vaxxers, mas também de terraplanistas e negacionistas climáticos, estamos perdendo feio essa briga.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Nomes


Dar nomes às coisas é algo que a espécie humana tem feito desde muito antes do início das civilizações. Nomes carregam significado, e ajudam a explicar a origem, ou pelo menos a origem mitológica, daquilo que é nomeado. Todas as culturas humanas tinham nomes para aquilo que lhes era mais familiar: plantas, animais, montanhas, lagos, mares, o fogo, a chuva, a neve. E nesse grupo estavam também os corpos celestes. Não apenas o Sol e a Lua, adorados como entidades divinas por seu poder sobre os ciclos de dias e noites, estações do ano e marés. Os outros corpos celestes também tinham uma participação muito importante na vida das pessoas até que a modernidade ofuscasse o céu noturno com suas lâmpadas a gás ou a luz elétrica, e as pessoas se tornassem ocupadas demais para olhar para cima. As estrelas recebiam nomes individuais, e cada cultura enxergava suas próprias figuras e seus próprios padrões nos aglomerados de pontos brilhantes que viam no céu. 
Aqueles pontos que pareciam se mover com o passar dos dias e dos meses, que mais tarde se revelariam planetas, tinham nomes e significados especiais para as culturas que os batizavam. O planeta mais brilhante, que anunciava a aurora, era Inanna para os sumérios, Qi-ming para os chineses, Vênus para os romanos. O avermelhado, da cor do fogo ou do sangue, era Nirgal para os sumérios, Kasei para os japoneses, Marte para os romanos. Aquele que parecia ter o movimento mais rápido por entre as estrelas era Nabu para os babilônios, Budha para os hindus, Odin para os nórdicos, Mercúrio para os romanos. 
Quando os corpos celestes começaram a ser observados com mais detalhes, graças às lunetas e aos telescópios, as pessoas não tardaram a dar nomes àqueles acidentes geográficos, inevitavelmente comparando-os aos que existiam no único mundo que conheciam. As manchas escuras na Lua só podiam ser mares, imaginaram elas, e assim foram batizadas: Mare Serenitatis, Mare Tranquillitatis, Mare Imbrium, Oceanus Procellarum... As áreas mais claras, em contraste, eram continentes: Terra Vitae, Terra Sterilitatis, Terra Fertilitatis... As muitas crateras que pontilhavam a superfície lunar foram batizadas em homenagem a ilustres astrônomos, muitos dos quais estudaram a fundo a superfície lunar: Tycho, Kepler, Copérnico, Aristarco, Grimaldi, Riccioli. O mesmo aconteceu com Marte: toda a sua superfície havia sido mapeada e batizada com uma miríade de nomes pouco tempo após existirem telescópios apontados para aquele mundo vermelho e vizinho da Terra. O Monte Olimpo e os Montes Tharsis, Chryse Planitia, Arabia Terra, Hellas Montes, Vastitas Borealis, Acidalia Planitia, Vale Marineris... Mesmo uma rede de canais que existia apenas na mente fértil de observadores como Giovanni Schiaparelli e Percival Lowell tinha seus próprios nomes. 
Quando as lentes dos telescópios foram apontadas para Mercúrio, cada uma das crateras visíveis recebeu o nome de alguma ilustre personalidade da Terra: Shakespeare, Goethe, Tólstoi, Rembrandt, Hesíodo, Camões, Brunelleschi, Beethoven... Ganímedes, Europa, Callisto e Io, as quatro luas galileanas, assim chamadas por ter sido observadas orbitando Júpiter pela primeira vez através de uma lente por Galileu Galilei, receberam nomes de amantes de Zeus, o equivalente de Júpiter na mitologia grega. A descoberta de um novo planeta no Sistema Solar sempre vinha acompanhada de referências à mitologia e à cultura de cada época. Quando o primeiro deles foi descoberto por William Herschel em 1781, recebeu após muito debate o nome de Urano, pai do titã Saturno na mitologia romana, que por sua vez era pai de Júpiter. Herschel queria dar ao novo planeta o nome de George, em homenagem ao rei da Inglaterra mas destoando completamente do resto dos nomes dos planetas. Mas Urano não ficou livre da influência de nomes britânicos, porque suas luas – Titânia, Oberon, Ariel, Umbriel, Miranda – receberam nomes de personagens das obras de Wiliam Shakespeare e Alexander Pope. 
Em 1846 um novo planeta foi descoberto, e o seu nome não poderia ser mais apropriado: Netuno, o equivalente romano de Poseidon, deus dos mares, tão azuis quanto a superfície do planeta recém-descoberto. Suas luas foram batizadas em referência a entidades mitológicas greco-romanas associadas ao mar – Tritão, Nereida, Proteus, Talassa... O planeta-anão Ceres, o maior dos objetos no cinturão de asteroides entre Marte e Júpiter, foi assim batizado graças à deusa romana da agricultura, e suas crateras têm nomes de divindades ligadas à agricultura, à chuva e à fertilidade de diversas culturas ao redor do mundo. 
Em 1930, quando se descobriu um novo e pequeno corpo celeste para além da órbita de Netuno, ele recebeu o nome do deus romano do mundo dos mortos, Plutão, equivalente a Hades na mitologia grega. Sua lua, quase tão grande quanto o planeta em torno do qual orbitava, foi batizada como Caronte, o barqueiro que conduzia as almas ao mundo dos mortos. No início do século XX, após ter sido rebaixado a planeta-anão, uma sonda foi enviada para estudar Plutão e quatro novas luas foram descobertas, todas apropriadamente batizadas com referência a entidades do mundo dos mortos: Cérbero, Hidra, Styx e Nix. As montanhas, crateras e outras formações na superfície de Plutão foram batizadas com nomes de exploradores, como as escarpas de Costeau, Leif Eriksson e Piri Reis e os montes Zheng He, ou espaçonaves como a Planície Sputnik, as Terras Voyager, Pioneer e Venera, e as Soyuz, Columbia e Challenger Colles. Entidades da ficção e da mitologia que viviam ou já visitaram o escuro mundo dos mortos também foram homenageadas, como Dionísio e Xanthias, Virgílio e Beatriz, Sleipnir, Cthulhu, Balrog e Morgoth. 
E por fim, quando a superfície de Caronte foi revelada pela mesma sonda que visitou Plutão, os cientistas também batizaram os muitos acidentes geográficos de acordo com referências mitológicas. No caso, da mitologia do século XX. Dessa forma, Caronte tinha a partir de então em sua superfície a Terra de Oz, a Mácula de Mordor, os montes Clarke e Kubrick, o planalto Vulcan, os chasmas Tardis e Nostromo, e as crateras Nemo, Alice, Kirk, Spock, Ripley, Skywalker, Organa e Vader.

Sangue, suor e mosquitos: as origens da malária e como ela afetou a evolução da nossa espécie


Embora a espécie humana tenha passado por diversas epidemias nos últimos milênios, nenhum micro-organismo teve o impacto que teve um em especial. Sem sombra de dúvida, o prêmio de maior flagelo da Humanidade pertence a alguns protozoários minúsculos que continuam sendo um fardo para milhões de pessoas nas regiões tropicais e subtropicais de todo o planeta: os plasmódios, causadores da malária. Provavelmente cruzaram nosso caminho pela primeira vez há alguns milhões de anos, muito antes do surgimento dos hominídeos e talvez antes mesmo do surgimento dos primatas – embora saltos interespécie mais recentes provavelmente tenham ocorrido e continuem a ocorrer até os dias de hoje e sejam responsáveis pelas espécies de plasmódio atuais que afetam os seres humanos, como veremos a seguir. Diversas espécies de mamíferos, répteis e de aves têm seus próprios plasmódios causadores de malária. Talvez alguns dinossauros tivessem tido malária ou alguma doença semelhante causada por um protozoário ancestral, como sugere a descoberta de um mosquito preservado em âmbar com oocistos em seu abdome – ainda que alegações de que ela tenha sido a responsável pela sua extinção no fim do Cretáceo pareçam um tanto exagerados. Mas a história evolutiva dos plasmódios começa ainda antes dos dinossauros, e em um lugar surpreendente: o fundo do mar.
Os plasmódios são protozoários classificados no filo dos Apicomplexa, que possuem em comum uma estrutura chamada plastídeo, uma pequena organela incolor localizada em uma extremidade do núcleo de suas células e que por isso dá nome ao grupo. O plastídeo tem DNA próprio e sua sequência se assemelha muito à de algumas bactérias capazes de realizar fotossíntese. Também possui grande semelhança com os cloroplastos de algumas algas como os dinoflagelados, que formam parte do fitoplâncton. Um parentesco improvável, visto que um protozoário transita entre o tubo digestivo de mosquitos e o sangue de vertebrados e o outro faz fotossíntese nas camadas do oceano perto da superfície. O elo entre as duas criaturas parece ter sido encontrado com a descoberta de protozoários fotossintetizantes do filo Apicomplexa vivendo como simbiontes no interior de corais. É provável que um ancestral dos protozoários do filo Apicomplexa tenha sido um simbionte que entrava no interior das células dos corais e, em uma relação mutuamente benéfica, oferecia energia por meio de fotossíntese e em troca recebia proteção por estar no citoplasma de uma célula animal, muito maior. Porém, em algum momento essa relação se tornou unilateral, com os protozoários perdendo a capacidade de realizar fotossíntese mas ainda assim vivendo dentro das células animais. Possivelmente vieram daí os mecanismos utilizados pelos protozoários do filo Apicomplexa para invadir as células de diferentes espécies de animais, embora o tipo específico de receptor utilizado para a entrada varie de hospedeiro para hospedeiro.
Algumas teorias indicam que os ancestrais dos plasmódios eram parasitas intestinais, porque grande parte dos membros do filo Apicomplexa conhecidos hoje (como o Cryptosporidium e o Toxoplasma) parasita intestinos – sendo que o Toxoplasma alterna o intestino de um hospedeiro felino com os tecidos de outro vertebrado, seja mamífero ou ave. A origem intestinal do ancestral do Plasmodium poderia explicar sua capacidade de penetrar em células do fígado, como veremos a seguir, e também sua reprodução sexuada no intestino dos mosquitos. Em algum momento da história evolutiva, os protozoários conseguiram se adaptar a mais de um hospedeiro animal, e com a abundância de artrópodes se alimentando do sangue de animais maiores, passaram a utilizá-los como meio de transporte entre um animal e outro. No caso dos plasmódios, os insetos tornaram-se cruciais para o sucesso do ciclo, pois é no seu intestino que ocorre a reprodução sexuada dos protozoários – ou seja, a troca de material genético entre diferentes células. Nos vertebrados, a reprodução é sempre assexuada, ou seja, apenas divisão celular sem intercâmbio de material genético.
Obs.: está aí outra questão controversa. Há quem afirme que os ancestrais dos plasmódios surgiram primeiro como parasitas dos insetos e só depois se tornaram capazes de realizar parte do seu ciclo de desenvolvimento em vertebrados. Um dos argumentos para essa teoria é que os ancestrais dos plasmódios provavelmente são mais antigos do que os próprios vertebrados.
Em linhas gerais, o que a malária faz no organismo dos vertebrados não difere muito de uma espécie de plasmódio para outra. Assim que o protozoário é inoculado na circulação do seu hospedeiro intermediário, ele invade de forma transitória as células do fígado e se multiplica gerando muitas cópias, que caem na circulação novamente. Esse estágio inicial geralmente dura poucos dias, embora o P. vivax e o P. ovale sejam capazes de manter alguns parasitas dormentes no fígado por meses ou mesmo anos sob a forma de hipnozoítos, possibilitando recaídas muito tempo depois que a infecção inicial tiver sido curada. Novamente circulando no sangue após passar pelo fígado, os plasmódios invadem as hemácias, os glóbulos vermelhos do sangue responsáveis por carregar oxigênio para os tecidos do corpo. Vários plasmódios invadem as hemácias ao mesmo tempo, e passam por mais um ciclo de multiplicação que liberará mais parasitas. Esse ciclo nas hemácias possui uma duração fixa, que é de dois dias em algumas espécies e três dias em outras (pelo menos quando consideramos as espécies que causam doença em humanos). Quando esse ciclo se completa, os plasmódios que invadiram as hemácias simultaneamente rompem essas mesmas hemácias também simultaneamente, para invadir outras hemácias em mais um ciclo de maturação e ruptura. Quando rompidas, as hemácias liberam na circulação seu conteúdo interno, cheio de citocinas e outras substâncias que induzem o famoso acesso malárico, com febre alta, tremores e suor abundante. O indivíduo permanece assintomático dali em diante até que um novo ciclo se complete e mais hemácias sejam rompidas. Cronicamente, esse ciclo pode levar à anemia e, em crianças, atrapalhar o crescimento e o desenvolvimento; no caso do P. falciparum, que veremos mais à frente, as repercussões tendem a ser mais graves. Por fim, durante esses ciclos que ocorrem nos glóbulos vermelhos, alguns plasmódios se diferenciam em gametócitos, formas reprodutivas masculina e feminina que, se sugadas por um mosquito, permitirão a reprodução com troca de material genético dentro de seu intestino e gerarão formas capazes de infectar outros vertebrados.
Se a origem dos plasmódios era envolta em mistério até pouco tempo atrás com a descoberta de seus ancestrais marinhos, a evolução das espécies que hoje afetam os seres humanos, em especial o Plasmodium vivax e o Plasmodium falciparum, também era. Durante muitos anos se acreditou que o Plasmodium vivax tinha origem em espécies de plasmódio que afetavam primatas das florestas do Sudeste Asiático, porque as análises de DNA indicavam que as espécies de plasmódio mais parecidas com o P. vivax eram as que infectavam esses animais. No entanto, essa teoria era baseada em um pequeno número de amostras de sangue coletadas de primatas asiáticos. E havia uma evidência que não se encaixava nessa teoria. A grande maioria da população da África possui uma mutação em um receptor existente na superfície das hemácias chamado Duffy, que é justamente o receptor que o P. vivax utiliza para se ligar às hemácias humanas e invadi-las. Sem esse receptor, a hemácia não pode ser invadida. O restante da população mundial não possui essa mutação, indicando que ela ocorreu após a migração do Homo sapiens para fora do continente africano. É bastante razoável que ela tenha sido favorecida pela seleção natural ao longo de muitas e muitas gerações, já que indivíduos imunes à malária possuem uma vantagem evolutiva. No entanto, essa teoria só faria sentido se o P. vivax tivesse vitimado os seres humanos inicialmente na África, e não na Ásia. Havia um impasse: o genes dos humanos contavam uma história, os genes dos plasmódios contavam outra.
A dúvida persistiu até que os cientistas desenvolvessem uma nova técnica para analisar amostras de primatas em busca de traços de plasmódios. Se antigamente era preciso colher sangue de primatas selvagens para obter amostras (o que não é exatamente um procedimento fácil, porque a maior parte deles vive isolada dos humanos e não aceita de boa vontade que se extraia sangue de suas veias), com os avanços em biologia molecular foi possível detectar traços de parasitas também nas fezes, um material mais fácil de ser analisado e que não depende da presença dos primatas no local da coleta no momento da análise, apesar de não possuir uma sensibilidade tão boa quando a análise do sangue. Foi dessa maneira que espécies ainda mais próximas ao P. vivax doque as asiáticas e até então desconhecidas foram identificadas em símios como chimpanzés, bonobos e gorilas que viviam no interior da África. A análise do DNA de diferentes exemplares de P. vivax colhidos de populações humanas indicam que essa transição do parasita de símios para humanos provavelmente ocorreu há cerca de 400 mil anos atrás, muito antes da diáspora promovida pelo Homo sapiens que ocorreu nos últimos 70 mil anos. A teoria da origem asiática do P. vivax foi derrubada, e hoje se considera que a prevalência mais alta de P. vivax fora da África se deva a populações suscetíveis que carregaram o parasita para o Sudeste Asiático antes que a mutação do receptor Duffy se tornasse prevalente na África.
O P. falciparum também tinha uma origem duvidosa até poucos anos atrás, e foi preciso utilizar a mesma técnica de pesquisa de material genético de plasmódios nas fezes de símios para elucidar sua história evolutiva. Tudo indica que sua origem está nos gorilas, e não nos chimpanzés como se acreditava antes. Se anteriormente a espécie mais próxima do P. falciparum era a espécie P. reichenowi, que causa malária em chimpanzés, a análise das fezes de símios recolhidas nas florestas africanas evidenciou a existência de plasmódios praticamente idênticos ao P. falciparum em gorilas. E a análise do DNA das diferentes amostras de P. falciparum obtidas em sangue humano mostram uma variedade muito menor do que aquela encontrada entre os parasitas de gorilas, sugerindo que a infecção de um ser humano pelo ancestral do P. falciparum oriundo de um gorila foi um evento que provavelmente ocorreu apenas uma vez, e a infecção de outros humanos ocorreu a partir desse indivíduo inicial. A julgar pela proximidade genética, o P. reichenowi também deve ter origem nos plasmódios de gorilas que sobreviveram à inoculação no sangue de chimpanzés, a exemplo do que ocorreu em humanos.
No entanto, uma dúvida ainda persiste: quando ocorreu essa infecção inicial de um humano pelo P. falciparum? Tudo indica que ela é muito mais recente do que a infecção pelo P. vivax (e pelo P. malariae e P. ovale, espécies de menor importância mas que também possuem ciclos envolvendo humanos). Como vimos, o P. vivax e o P. ovale possuem formas dormentes no fígado, os hipnozoítos, que podem ser reativadas após meses ou anos, emergir do fígado e realizar ciclos de desenvolvimento nas hemácias. O P. malariae, embora não seja capaz de formar hipnozoítos, consegue manter parasitemias baixas por um período mais arrastado, podendo assim se manter transmissível a médio prazo. Isso significa que pequenos grupos nômades com uma densidade populacional muito baixa, como os que vagavam pelas savanas durante o Paleolítico, poderiam sustentar a transmissão do parasita por muito tempo, e até mesmo carregá-lo para fora da África. Além disso, o P. vivax e o P. malariae só parasitam hemácias com uma determinada idade (hemácias jovens e mais velhas, respectivamente), o que garante que a quantidade de hemácias parasitadas em um determinado momento seja bastante baixa – algo em torno de 2%. Embora esse número seja suficiente para causar sintomas, dificilmente um indivíduo adulto acabaria morrendo em decorrência de malária se ela fosse causada por essas espécies.
Com o Plasmodium falciparum a história é outra. Não há hipnozoítos, então a infecção dura semanas ou meses até evoluir para cura espontânea – ou para óbito. Isso diminui muito a chance de transmissão em um ambiente com densidade populacional baixa, como era o caso do Paleolítico. Além disso, o P. falciparum não tem preferência de idade na hora de parasitar as hemácias, o que faz com que sua parasitemia seja geralmente muito alta – 10, 20, 50 ou em casos dramáticos até 80% das hemácias parasitadas. A anemia induzida pelo parasita, nesse caso, é muito mais grave. E ele lança mão de outras estratégias adaptativas para sobreviver mais tempo no hospedeiro. Como as hemácias parasitadas geralmente são destruídas ao passar pelo baço, o P. falciparum consegue evitar essa destruição induzindo a aderência das hemácias onde ele está se desenvolvendo à parede dos vasos sanguíneos. Se estão grudadas na parede dos vasos, não circulam. Se não circulam, não são destruídas pelo baço. O problema é que essa aderência obstrui a circulação de sangue nos tecidos do corpo, inclusive em órgãos importantes como os pulmões, os rins e o cérebro. Não é raro que indivíduos com malária por P. falciparum entrem em coma devido a problemas na circulação cerebral. Por esse mecanismo de obstrução dos vasos microscópicos pelo corpo, que está ausente nas formas de malária induzidas por outras espécies de plasmódios, o P. falciparum pode levar – e frequentemente leva – seu hospedeiro a óbito.
A ausência de hipnozoítos e a alta letalidade indicam que o P. falciparum necessitaria de uma densidade populacional elevada para infectar comunidades humanas de forma sustentada. É possível que pequenas comunidades nômades do Paleolítico tenham sido infectadas pelo P. falciparum mas a infecção não tenha ido à frente porque boa parte das vítimas morreu e não havia uma quantidade suficiente de novos hospedeiros nas proximidades para manter a infecção em humanos. Essa densidade populacional suficientemente alta só seria alcançada em períodos mais recentes, com o surgimento da agricultura no período que conhecemos como Neolítico. Ou seja, há no máximo dez ou doze mil anos, embora por ter sido gradual é possível que esse processo tenha sido iniciado alguns milênios antes. Em um processo similar ao que aconteceu no Oriente Médio e em outras regiões do planeta, mudanças climáticas ocorridas a curto prazo forçaram grupos de caçadores e coletores a utilizar novas técnicas para lidar com as frutas, os grãos e os outros alimentos adquiridos nas vizinhanças dos assentamentos e que se tornavam mais e mais escassos, em um processo gradual que culminou na agricultura e nas comunidades sedentárias. A população desses assentamentos cresceu exponencialmente, porque uma área cultivada era capaz de sustentar muito mais pessoas do que a mesma área utilizada para caça e coleta. Mesmo comunidades que ainda não haviam desenvolvido agricultura propriamente dita utilizavam técnicas para melhorar a produtividade de suas atividades extrativistas. Nas regiões tropicais africanas, por exemplo, isso envolvia a limpeza do solo e a remoção de ervas daninhas do entorno das árvores frutíferas e dos locais onde cresciam tubérculos como o inhame.
A explosão populacional proporcionada pelas técnicas de cultivo e as alterações no ambiente em torno dos assentamentos humanos proporcionaram as condições ideais para que o Plasmodium falciparum pudesse ser transmitido de pessoa para pessoa através de mosquitos, visto que mais pessoas significavam mais alvos em potencial. Além disso, técnicas de cultivo que envolviam a retirada do húmus e a derrubada de outras árvores em torno das áreas de cultivo alteravam o solo e facilitavam a criação de poças d’água após as chuvas, aumentando assim a quantidade de mosquitos. Ainda que a quantidade de gametócitos circulando no sangue de um indivíduo com malária seja pequena, diminuindo assim a chance de que um mosquito se infecte ao sugar seu sangue e seja capaz de transmitir malária a outros humanos, quando a quantidade de pessoas suscetíveis e de mosquitos no ambiente é muito grande a chance de isso ocorrer aumenta vertiginosamente. E a chance de transmissão do P. falciparum se tornou ainda maior com o surgimento, mais ou menos nessa época, de uma espécie de mosquito perfeitamente adaptada ao ambiente repleto de água parada das comunidades agrícolas ou semiagrícolas da África tropical, capaz de gerar grandes quantidades de plasmódios em seu intestino e com uma preferência incomum por sangue humano: o Anopheles gambiae. Os mosquitos transmissores da malária pertencem ao gênero Anopheles, mas cada região do planeta tem uma espécie predominante, e elas variam muito em capacidade de transmitir malária. Algumas são menos suscetíveis à infecção ou à multiplicação de plasmódios em seu tubo digestivo por alguma razão metabólica ou genética, outras têm uma grande variedade de alvos – humanos, bovinos, aves – e isso dificulta a transmissão de plasmódios entre membros de uma mesma espécie. A maior parte das espécies de Anopheles se alimenta de sangue humano em cerca de 10 a 20% das vezes, no máximo. O A. gambiae faz isso em 80 a 100% das vezes. E por que isso é importante? Porque um mosquito adulto não vive mais do que três semanas, na maioria das vezes, e o tempo de desenvolvimento do P. falciparum no seu intestino dura em média 2 semanas. Ou seja, um mosquito que não tem preferência por sangue humano, como o A. darlingi da América do Sul ou o A. culifacies da Índia, dificilmente entrará em contato com um humano com malária nos primeiros dias e permanecerá com o protozoário por menos de uma semana, dividindo seus repastos entre humanos e outros animais que as comunidades humanas eventualmente criarem em torno de seus assentamentos. Entrando em contato com poucos humanos nesse breve intervalo entre a infecção e a morte, a chance de essa espécie de mosquito promover uma epidemia é bem menor. Por outro lado, um mosquito como o A. gambiae entrará em contato com muito mais pessoas em seu curto período infectivo, potencializando as chances de adquirir o plasmódio e infectar outros seres humanos com ele.
Assim como ocorreu com o antígeno Duffy no P. vivax, o surgimento e a disseminação do P. falciparum entre seres humanos graças ao A. gambiae criaram uma pressão evolutiva para que genes que oferecessem algum tipo de proteção contra essa variedade mais grave e mortal de malária fossem selecionados e aumentassem sua prevalência na população geral. E como o P. falciparum se disseminou entre humanos muito mais recentemente do que o P. vivax, as adaptações também surgiram muito mais recentemente – e de forma mais dramática.
Como as hemácias são as células que os plasmódios invadem durante seu ciclo de desenvolvimento, não é coincidência que as principais adaptações ocorram na forma de alterações estruturais ou metabólicas no interior das hemácias, causadas por alterações genéticas. Vamos analisar mais a fundo três delas: a anemia falciforme, a talassemia e a deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase.
A anemia falciforme é uma doença genética que acomete a hemoglobina, a proteína responsável por carregar o oxigênio para os tecidos do corpo, e cujas moléculas ficam no interior das nossas hemácias. A molécula de hemoglobina é formada por quatro partes diferentes chamadas globinas ligadas entre si como as arestas de um quadrado – sendo duas de um tipo que chamaremos de alfa e duas ligeiramente diferentes, que chamaremos de beta. No interior desse quadrado, quatro estruturas moleculares menores contendo um átomo de ferro cada chamadas heme se ligam ao oxigênio. Quando oxigenada, a molécula de hemoglobina se “abre”, com as globinas se afastando levemente umas das outras. Quando a molécula entrega seu oxigênio para os tecidos que necessitam, ela se “fecha” novamente. Ao longo de um dia, com as hemácias carregando oxigênio para os tecidos e voltando desoxigenadas para os pulmões incessantemente, cada uma das milhares de moléculas de hemoglobina em uma hemácia alterna os estados “aberto” e “fechado” centenas de vezes. Com sua hemoglobina perfeitamente construída, uma hemácia consegue passar 120 dias realizando esse transporte de oxigênio para os tecidos. O problema é quando essa hemoglobina vem com um defeito de fábrica.
Pode ter acontecido diversas vezes ao longo da nossa História evolutiva. Por um pequeno erro na hora de duplicar o DNA exatamente no gene que codifica as instruções para a formação do componente beta da hemoglobina, localizado no cromossomo 11, uma sequência guanina-adenina-guanina é trocada por guanina-timina-guanina. Essa mutação aparentemente insignificante faz com que o sétimo aminoácido a ser transcrito a partir do RNA baseado nessa cópia errada do DNA seja não o glutamato, mas sim a valina. E o que essa pequena diferença faz? Ela altera ligeiramente o formato da molécula de hemoglobina e, em sua forma desoxigenada, uma ponta do componente beta da molécula se liga à mesma extremidade do componente beta da molécula vizinha de hemoglobina. Isso dá origem a uma reação em cadeia que polimeriza irreversivelmente as moléculas de hemoglobina dentro de uma hemácia, e o que era para ser um monte de moléculas abrindo e fechando de forma harmônica com a entrada e saída de oxigênio vira um emaranhado disforme de proteínas grudadas umas às outras. Embora naquelas pessoas que possuem uma cópia do gene que codifica a hemoglobina normal e outra que codifica a hemoglobina defeituosa essa polimerização seja rara e em pequena quantidade, nas pessoas que receberam dos pais duas cópias do gene que forma a hemoglobina alterada esse processo deforma as hemácias de tal forma e em tal quantidade que elas se tornam incapazes de circular por entre os vasos mais estreitos, levando a infartos microscópicos em diversos tecidos. O nome falciforme vem justamente do formato de foice que essas hemácias podem assumir, bem diferente da forma usual de disco bicôncavo. Em situações e em lugares do corpo onde há falta de oxigênio, as hemácias de indivíduos com anemia falciforme podem sofrer deformidade em grande quantidade, causando obstrução de pequenos vasos em vários lugares do corpo ao mesmo tempo e levando a dores terríveis por causa da falta de oxigênio nesses tecidos – uma condição que conhecemos como crise falciforme. Mesmo fora dos momentos de crise, uma parte das hemácias circulantes está sempre deformada, e isso faz com que percam elasticidade e sejam destruídas muito antes do prazo de 120 dias que uma hemácia normal costuma durar. Além disso, uma pessoa com anemia falciforme perde uma proteção importante contra infecções, porque até os cinco anos de idade o seu baço deixa de funcionar por causa dos microinfartos que o destroem aos poucos. Embora hoje seja possível conter crises de dor, diminuir a vulnerabilidade imunológica causada pela falta do baço através de vacinas e aumentar a expectativa de vida dos pacientes portadores de anemia falciforme, durante grande parte da História esses recursos não estavam disponíveis, e era difícil encontrar pessoas com a doença que sobrevivessem além dos vinte ou trinta anos.
A talassemia também é uma doença genética que leva a alterações estruturais na molécula de hemoglobina, e é comum entre povos de origem mediterrânea como gregos, italianos, espanhóis, judeus, egípcios e berberes (seu nome vem de thalassa, palavra grega para mar – o Mediterrâneo, no caso). Diferentemente da anemia falciforme, que leva a uma deformidade das cadeias beta da hemoglobina, a talassemia simplesmente faz com que duas das quatro cadeias da hemoglobina – alfa ou beta – simplesmente não sejam produzidas. Formas mais brandas conseguem produzir uma quantidade maior de moléculas de hemoglobina normais ou com pequenos defeitos, mas nos casos graves a principal molécula transportadora de oxigênio para os tecidos só existe pela metade. Além da óbvia dificuldade para oxigenar os tecidos, as hemácias também ficam mais frágeis (embora não deformadas) e são destruídas com mais rapidez pelo baço, e o ferro presente na hemoglobina dessas células pode se acumular em órgãos como fígado e pâncreas até alcançar níveis tóxicos. A anemia severa repercute nos tecidos e, em resposta, a medula óssea começa a produzir novos glóbulos vermelhos – com hemoglobina defeituosa – em um ritmo ainda mais frenético. Como resultado, ela pode aumentar muito de tamanho a ponto de deformar ossos longos e chatos, inclusive os ossos da calota craniana. Sem os cuidados adequados, pessoas com talassemia major – a forma mais grave da doença – têm uma expectativa de vida tão reduzida quanto os portadores de anemia falciforme.
A terceira doença que afeta as hemácias, a deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase, é na verdade um distúrbio metabólico, não estrutural. Uma mutação impede que a enzima com esse nome complicado seja produzida corretamente ou em níveis adequados. Essa enzima atua no interior dos glóbulos vermelhos fazendo parte de uma cadeia de reações que diminuem os níveis de radicais livres dentro da célula. Radicais livres são moléculas instáveis que contêm oxigênio e podem danificar outras estruturas como proteínas lipídios de membranas e DNA. O próprio metabolismo normal pode produzi-los em pequenas quantidades, e é provável que essa produção residual seja (pelo menos em parte) responsável pelo nosso envelhecimento. No entanto, nós eucariontes possuímos mecanismos para lidar com esses radicais livres e reduzir seus danos ao mínimo possível. Um desses mecanismos é a cadeia metabólica da qual faz parte a glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD). Indivíduos que não possuem essa enzima ou que possuem uma variedade defeituosa não conseguem lidar com quantidades maiores de radicais livres, como as que são liberadas após contato com alguns alimentos ou medicamentos. Durante a maior parte do tempo essas pessoas não apresentam sintomas, mas o contato com uma substância deflagradora pode levar a uma destruição maciça de hemácias. Além da anemia aguda decorrente dessa destruição, o fragmento heme da hemoglobina é metabolizado em bilirrubina, uma substância de cor amarela que acaba se impregnando na pele, na esclera – a camada externa e branca dos globos oculares – e em outros tecidos do corpo.
Essas substâncias deflagradoras podem ser itens corriqueiros de uso doméstico como a naftalina, medicações como a aspirina e as sulfas e até mesmo (bizarramente) drogas contra malária – alguns antimaláricos como o quinino e seus derivados matam os plasmódios por meio de radicais livres, e as hemácias onde eles se desenvolvem são poupadas quando a G6PD funciona normalmente. Assim como a talassemia, a prevalência de pessoas com deficiência de G6PD é elevada em populações do Mediterrâneo incluindo os gregos, e provavelmente o matemático e filósofo Pitágoras e/ou pessoas próximas a ele eram portadores dessa mutação. Ele estabeleceu que para fazer parte de sua comunidade de seguidores, os Pitagóricos, era necessário abdicar de se alimentar de feijões-de-fava para o resto da vida, assim como ele próprio o fizera. Por todo o Mediterrâneo, havia comunidades onde o consumo de feijões-de-fava era considerado tabu, especialmente entre sacerdotes. Embora haja algumas teorias sobre por que Pitágoras e seus seguidores teriam abdicado de se alimentar dos grãos dessa nutritiva leguminosa comum em todo o Mediterrâneo e por que era um tabu comê-la, sabe-se que os feijões-fava são deflagradores de hemólise em indivíduos com deficiência de G6PD. É bem possível que, além de Pitágoras e outras pessoas próximas, tantas outras pessoas nas gerações anteriores naquela região tenham apresentado anemia hemolítica após ingerir feijões-de-fava que a associação ficou no imaginário popular, mesmo que a população da época não soubesse exatamente o motivo.
Nenhuma dessas três mutações associadas a doenças genéticas – anemia falciforme, talassemia ou deficiência de G6PD – é benéfica em condições normais. Não traz uma vantagem intrínseca que facilite a sobrevivência. Pelo contrário: a anemia falciforme e a talassemia podem reduzir muito a expectativa e a qualidade de vida de um indivíduo, e a deficiência de G6PD pode ser uma ameaça à vida se o indivíduo em questão entrar em contato com quantidades elevadas de uma substância deflagradora. Se ocorressem espontaneamente na natureza, a seleção natural trataria de eliminar os portadores dessas mutações porque eles teriam menos chances de gerar descendentes do que aqueles que não são portadores. A única explicação para que essas três mutações genéticas sejam tão prevalentes em determinadas populações, mesmo com toda a repercussão que podem ter sobre a saúde dos indivíduos portadores desses genes, é que em algum contexto elas podem ser ou ter sido vantajosas, oferecendo a seus portadores algum benefício na competição por recursos ou na sobrevivência a fatores ambientais. E a malária causada pelo P. falciparum oferece esse contexto.
Primeiro, a evidência geográfica: a anemia falciforme tem uma elevada prevalência nas regiões tropicais da África, especialmente nas regiões correspondentes à bacia do rio Congo e aos territórios atuais de Nigéria e Camarões, e está ausente apenas no extremo norte e no extremo sul do continente. Nas áreas onde é mais comum, a prevalência do gene chega a mais de 15% da população geral (essa proporção inclui as pessoas que possuem um gene normal e um falciforme, apenas com o traço falciforme, que são maioria; os indivíduos com anemia falciforme, ou seja, com os dois genes falciforme, são em número menor). Além do continente africano, a anemia falciforme tem moderada prevalência em áreas da península arábica e do subcontinente indiano, além de regiões das Américas para onde foram levadas populações africanas escravizadas. Como vimos, a talassemia e a deficiência de G6PD têm alta prevalência em populações do Mediterrâneo (e também em seus descendentes ao redor do mundo). Se observarmos as regiões do planeta onde existe transmissão de malária por P. falciparum, chegamos à conclusão de que os mapas se sobrepõem perfeitamente. As únicas regiões onde há transmissão de malária por P. falciparum e não há alta prevalência de anemia falciforme são justamente as regiões onde predominam a talassemia e a deficiência de G6PD.
Agora, a evidência genética: o portador da anemia falciforme verdadeira carrega dois genes que codificam a hemoglobina defeituosa (dois alelos), um herdado do pai e outro da mãe. Em Genética, chamamos ele de homozigoto. Ele tem uma expectativa de vida reduzida devido à própria doença genética. No entanto, em um ambiente onde há elevada transmissão de malária por P. falciparum (e por isso uma razoável possibilidade de um indivíduo jovem e em idade reprodutiva morrer de malária), aqueles que não possuíam a mutação que causa a anemia falciforme também tinham uma expectativa de vida reduzida. Só que os indivíduos heterozigotos, ou seja, aqueles que possuíam uma cópia do gene que codificava a hemoglobina normal e uma que codificava a hemoglobina falciforme, possuíam uma ligeira vantagem. Eles até possuíam algumas hemácias deformadas, mas eram muito poucas e dificilmente levariam a microinfartos em seus órgãos ou a crises de dor – uma condição que chamamos de traço falcêmico. Por outro lado, a discreta polimerização da hemoglobina dentro das suas hemácias dificultava a formação dos plasmódios que as infectavam. Não se pode dizer que eram imunes à malária, mas a chance de morrer da doença era consideravelmente mais baixa. Esse fenômeno, chamado seleção do heterozigoto, ajuda a explicar por que um gene que pode levar a uma doença tão grave quando em homozigose pode ser tão presente em uma população. Na lógica indiferente da natureza, alguns homozigotos morrendo de anemia falciforme são um preço pequeno a pagar para que uma parcela maior da população geral, a que é portadora de apenas uma cópia do gene, consiga sobreviver e perpetuar a espécie.
Algo muito parecido provavelmente ocorreu com a talassemia no Mediterrâneo. A forma homozigota ou talassemia major, mais grave e frequentemente fatal, teve sua prevalência na população mediterrânea aumentada porque os indivíduos heterozigotos também tinham uma vantagem em relação àqueles que não possuíam nenhuma cópia do gene que induzia a talassemia em um ambiente onde a malária grave era comum. Esses indivíduos, portadores da chamada talassemia minor, também não são imunes à malária, mas tendem a desenvolver uma forma mais branda e que raramente é fatal. E a talassemia minor é bem mais leve do que a sua variante mais grave, causando pouco ou nenhum impacto na expectativa de vida e permitindo que seus portadores se reproduzam e transmitam o alelo responsável pela talassemia para seus descendentes.
Também a deficiência de G6PD pode se mostrar vantajosa em um ambiente onde há muitos casos de malária. Mesmo se um indivíduo com essa variação genética não apresentar nenhum sintoma, os níveis de radicais livres nas suas hemácias são um pouco mais elevados do que os de um indivíduo sem essa mutação, e embora a hemácia consiga tolerar esses níveis um pouco mais altos, o Plasmodium falciparum é muito mais sensível. Da mesma forma que a anemia falciforme e a talassemia, mas por um mecanismo diferente, a deficiência de G6PD oferece alguma proteção contra a malária grave por P. falciparum. Em vez de sofrer com uma parasitemia maciça e capaz de ameaçar a vida, o portador da deficiência de G6PD involuntariamente faz com que suas hemácias sejam um ambiente hostil aos plasmódios, diminuindo seu número e, em consequência, as repercussões que a infecção tem sobre o seu corpo.
As estimativas baseadas em análise de DNA indicam que a mutação genética que deu origem ao alelo responsável pela anemia falciforme surgiu há 259 gerações, ou algo em torno de 7.300 anos, em algum lugar onde hoje é o deserto do Saara – que na época ainda era uma savana. Essa data, embora possa variar entre 3.400 e 11.100 anos dependendo de quanto tempo você considere que dura uma geração, coincide quase perfeitamente com a origem do Plasmodium falciparum e do Anopheles gambiae. É provável que essa mesma mutação tenha surgido outras vezes ao longo da nossa História evolutiva, mas seus portadores não tenham tido nenhuma vantagem competitiva e por isso ela tenha desaparecido. No entanto, nesse período de 3 a 11 mil anos atrás, havia uma pressão evolutiva grande para que os portadores dessa mutação se tornassem proporcionalmente mais numerosos. Tão grande que fez com que essa mutação estivesse presente em uma ou duas cópias no DNA de uma parcela significativa da população de uma área extensa do planeta, e tudo isso em alguns poucos milênios.
“Pressão evolutiva” é um nome engraçado porque transmite um ar de frieza e neutralidade a uma verdadeira tragédia, daquelas que só a indiferença da natureza é capaz de proporcionar. Imagine-se voltando no tempo até a África de sete mil anos atrás. Você encontra uma comunidade pequena de agricultores nas franjas da floresta tropical africana, que tira a maior parte do seu sustento da extração de frutas e tubérculos. Suas oito ou dez cabanas em uma clareira na floresta são moradias permanentes, cercadas de áreas de protoagricultura cobertas pela copa das árvores e de onde são extraídas as frutas e o inhame. O solo, remexido, está livre de ervas daninhas e da camada de húmus e folhas secas que normalmente recobre o chão da floresta. Uma ou outra poça de água da chuva se acumula nos arredores. Dentro delas, larvas de mosquito se contorcem de forma frenética. Larvas de Anopheles gambiae. Na aldeia, mosquitos adultos se abrigam por entre as fibras vegetais que formam as paredes e o teto das cabanas onde vivem os humanos. Ao entardecer, as fêmeas formarão um enxame que sugará o sangue dessas pessoas para nutrir os ovos de mosquito que ainda serão postos na superfície da água. Algumas delas se infectarão com os gametócitos de P. falciparum circulando no sangue dos humanos com malária. Outras, já com o protozoário em seu intestino, vão inocula-lo na circulação periférica de membros dessa comunidade que ainda estão livres da doença. Em uma dessas cabanas, uma mãe chora a morte do filho que sucumbiu à malária com apenas três anos. Na cabana do lado, outra mãe ainda está de luto pela filha, que também morreu de malária com cinco anos de idade há poucos dias. Seu companheiro está febril e doente, também com a doença. Em outra cabana, um jovem adulto e sob outros aspectos saudável está em coma, sofrendo as repercussões da malária no seu cérebro, e estará morto em poucos dias. Mas na cabana vizinha, não há ninguém morrendo de malária. Uma criança pequena grita de dor, suas mucosas estão pálidas e suas articulações aparentam estar inchadas. Os pais tentam em vão reverter mais uma crise dolorosa como a que a pobre criança teve há menos de uma semana, enquanto seus irmãos observam assustados e sem entender por que ela grita tanto. Ela tem anemia falciforme, e provavelmente morrerá antes da puberdade. Mas seus pais e seus irmãos, portadores apenas do traço falciforme, sobreviverão e terão outros filhos. Protegidos das consequências da malária grave, continuarão a povoar a aldeia enquanto os outros, vitimados pelos plasmódios, morrerão mais cedo e deixarão menos descendentes. Agora imagine que essa cena se repete em outras pequenas aldeias nas redondezas. E em toda a região tropical da África. E nas comunidades de pastoreio das savanas. E que no Mediterrâneo as famílias que possuem em seu DNA as mutações que levam à talassemia e à deficiência de G6PD também prevaleçam após cada novo surto de malária. Isso é pressão evolutiva. É a seleção natural agindo em sua forma mais pura e simples.
É claro que o cenário acima é um tanto exagerado. A malária, mesmo em sua forma grave causada pelo P. falciparum, dificilmente seria capaz de infectar e eliminar todos os habitantes de uma aldeia que não possuem traço falciforme, ou talassemia minor, ou deficiência de G6PD. Às vezes a diferença de mortalidade entre quem tem esses genes e quem não tem é de 10, ou 5, ou mesmo 1%. Não parece muita coisa, mas considere que a anemia falciforme surgiu há mais ou menos 259 gerações. Uma pequena vantagem na sobrevivência, ao longo de alguns milênios, pode gerar resultados assombrosos. Mesmo a mutação no antígeno Duffy, que provavelmente significou uma pressão evolutiva muito menor (já que a malária por P. vivax é muito mais branda do que a pelo P. falciparum), está hoje presente em assombrosos 97% da população da África central e ocidental, porque essa mínima vantagem que ela proporcionava se manteve presente ao longo das dezenas de milhares de anos desde o seu surgimento.
A malária deixou sua marca para sempre no DNA e na trajetória da espécie humana, e teve grande impacto em muitos outros momentos da nossa História, como veremos mais à frente. Embora a Humanidade tenha testemunhado (e sobrevivido a) diversas epidemias que ceifaram milhões de vidas, nenhuma outra doença infecciosa nos impactou tanto – economicamente, socialmente, geneticamente e em número de vítimas fatais – de forma sustentada como a malária o fez ao longo dos milênios. Ainda hoje, há mais de 200 milhões de casos de malária por ano em todo o planeta, com cerca de meio milhão de mortes. É a terceira maior causa isolada de morte entre as doenças infecciosas hoje, perdendo apenas para a AIDS e a tuberculose. Em sua esmagadora maioria, são crianças vitimadas por P. falciparum na África. Fora do continente africano, especialmente na Ásia e nas Américas, o P. vivax (e em muito menor extensão o P. ovale e o P. malariae) acometem pouco menos de 10 milhões de pessoas todos os anos, e esse número aparentemente vem caindo graças a estratégias de prevenção e a esforços locais, nacionais e internacionais. Nas florestas tropicais do sudeste asiático, uma espécie de plasmódio que acomete primatas locais chamada P. knowlesi conseguiu se adaptar ao corpo humano e hoje é responsável por alguns milhares de casos na região. Muito raramente, espécies de plasmódio de macacos como o P. cynomolgi e o P. simium podem acidentalmente ser transmitidas para humanos e provocar malária, embora sejam incapazes de produzir gametócitos viáveis em quantidade suficiente para sustentar um ciclo entre humanos e mosquitos.

VACINAS CONTRA COVID-19 VERSUS HIV: A "POLÊMICA" DESNECESSÁRIA DE HOJE

Um estudo de 2008 identificou que células infectadas in vitro por um adenovírus humano (Ad5) expressavam mais receptores CCR5, as portas de ...