terça-feira, 5 de março de 2019

O "Paciente de Londres" - Será a cura da AIDS?

Neste dia 6 de março de 2019, noticiários do mundo todo anunciaram que um paciente foi curado do HIV após um transplante de células-tronco. Isso é bastante animador, mas não, não significa que encontramos a cura da AIDS. Não em larga escala. Difícil de entender? Aí vai o motivo:
O "paciente de Londres" (como tem sido chamado pela mídia internacional) era portador do HIV desde 2003 e começou a receber terapia antirretroviral em 2012 (nessa época a TARV ainda não era indicada para todos; apenas para quem tinha uma contagem de linfócitos T CD4 menor que 350, ou 500 por decilitro de sangue). Acontece que pouco tempo depois ele foi diagnosticado com um linfoma de Hodgkin em estágio avançado, e precisou de sessões de quimioterapia e, depois disso, ainda passou por dois transplantes de medula óssea.
Transplantes de medula óssea são uma coisa bizarra quando paramos para pensar sobre o que são de verdade. Uma quimioterapia extermina praticamente todas as células da medula óssea do indivíduo, que depois é reposta por células do doador. Importante: doador e receptor devem ser compatíveis (daí os apelos constantes para que pessoas se tornem doadoras de medula óssea - quanto mais gente for doadora em potencial, maior a chance de se encontrar alguém compatível com o possível receptor, ou seja, a pessoa que precisa do transplante). Por sorte, foi encontrado um doador que, além de compatível, tinha uma mutação bastante específica em um de seus genes. O gene da proteína de superfície CCR5, que o HIV utiliza para invadir as células do sistema imunológico e se abrigar no hospedeiro.
Toda célula do corpo é revestida por proteínas de superfície, que servem para inúmeras funções. Algumas servem como ancoradouro para outras células, outras como portas de entrada e saída por onde substâncias entram e saem da célula. A proteína CCR5 é um receptor de citocina, presente em algumas células do sistema imunológico. O que ela faz é, com uma extremidade para fora da membrana plasmática e outra para dentro, tal qual um prego que atravessa um pedaço de madeira, receber um sinal externo de um tipo de hormônio chamado citocina. Uma vez tendo recebido esse sinal pela sua extremidade externa (a cabeça do prego, para fora da célula), ela sinaliza com a parte interna (a ponta) que as proteínas do interior da célula devem realizar alguma função específica - multiplicar-se, ou mover-se até o local onde a célula está sendo requerida. Só que, por acaso, é justamente essa proteína em formato de prego que o HIV usa para se ligar e se fixar à célula-alvo, no caso o linfócito T ou (de forma menos importante) outra célula do sistema imunológico, como o macrófago ou a célula dendrítica.
Pois bem. O indivíduo que doou sua medula tinha uma mutação no gene que codificava a proteína CCR5. Sua proteína tinha um formato diferente, que o HIV era incapaz de reconhecer e, portanto, conseguir se ligar. Sem conseguir se ligar, ele não penetraria na célula. Sem penetrar, jamais a infectaria. Ou seja, o indivíduo que doou a medula óssea era imune ao HIV, e jamais contrairia a doença nem se fosse exposto ao vírus um milhão de vezes. Uma pequena porção de sua medula óssea foi extraída (provavelmente do osso da bacia, mais fácil de ser acessado pela agulha), e preparada em laboratório para ser injetada no receptor, que havia acabado de passar por uma quimioterapia extremamente potente que havia eliminado praticamente todas as células de sua medula óssea. Isso incluía as células neoplásicas do seu linfoma de Hodgkin, e também os linfócitos T e outras células do sistema imunológico capazes de abrigar o HIV. Vazia, a medula óssea do receptor foi colonizada com novas células, livres do vírus e incapazes de ser invadidas por ele. Isso ocorreu em 2016, e desde então o paciente passou 18 meses sem tomar seus antirretrovirais e todos os testes para detectar o HIV no seu sangue deram negativo de lá para cá.
Parece bastante simples, até ficar claro que não é. Essa foi a segunda vez que o procedimento deu certo em um paciente HIV que, além de curado do linfoma, também ficou livre da AIDS. O primeiro caso foi em Berlim, há mais de 10 anos, envolvendo um paciente dos EUA que tinha HIV e leucemia mieloide aguda. Várias outras tentativas foram realizadas de lá para cá em transplantados de medula óssea, sem sucesso. Em 2013, uma criança de 2 anos nos EUA recebeu antirretrovirais por 18 meses após o nascimento e, sem passar por transplante de medula óssea, chegou a ficar 27 meses sem vírus circulando no sangue, até que - para frustração geral - ele voltou a aparecer.
Além disso, existe o risco inerente ao procedimento. E isso não é pouco. O paciente receptor tem sua medula óssea pulverizada por quimioterapia e, durante dias ou semanas, não tem virtualmente nenhuma célula de defesa circulando no sangue, pelo menos até que as células do doador comecem a colonizar a medula óssea e a se multiplicar. Nesse período, qualquer infecção bacteriana, fúngica ou mesmo viral pode ser fatal. Mesmo em pacientes com leucemias ou linfomas agressivos e que não possuem HIV esse é um procedimento extremamente arriscado, que não pode ser feito sem que uma série de precauções sejam tomadas de antemão - incluindo, obviamente, que qualquer foco infeccioso prévio seja controlado com antibióticos. Ainda assim, a mortalidade é bastante elevada. Ou seja, não é algo simples e que qualquer pessoa pode fazer. Exige leitos de hospital com isolamento e serviços adequados, incluindo um filtro poderoso que impeça partículas de mofo de circular no ar respirado pelo paciente (fungos do gênero Aspergillus, que estão em todos os cantos, podem destruir os pulmões de pessoas sem defesas imunológicas adequadas). E mesmo que todas as precauções sejam tomadas, as coisas ainda podem dar muito errado. Medicina não é Matemática, onde 2+2 é sempre 4. Pessoas com HIV que estão em boa saúde, aderentes ao tratamento ainda que seja um incômodo tomar a medicação todos os dias, deveriam saber de todos esses riscos antes de se submeter a um procedimento de tal magnitude e que tem grandes chances de não dar certo (repito, funcionou apenas duas vezes dentre diversas tentativas) e boas chances de dar muito errado. Em resumo: não é algo que pode ser aplicado para todos os cerca de 37 milhões de indivíduos vivendo com HIV no mundo. 
Ou seja, essa não será a cura da AIDS. Não para a grande maioria das pessoas que não têm, além do vírus, uma neoplasia sanguínea que exija um transplante de medula óssea.
Ainda assim, essa é uma boa notícia. Ao estudar por que esse segundo caso de sucesso e o primeiro deram certo, em contraste com os que deram errado, podemos elucidar melhor quais os fatores que podem impedir que o HIV se multiplique nas células hospedeiras, ou quem sabe desenvolver métodos para que as células infectadas sejam reconhecidas e mortas, eliminando o vírus com elas. Com o avanço de técnicas de biologia molecular como edição genética por sequências palindrômicas (CRISPR), em um futuro não muito distante será possível editar genes, retirando sequências indesejadas (digamos, o gene CCR5 selvagem) e substituindo-as por sequências vantajosas (por exemplo, o CCR5 mutante, imune ao HIV). Essa seria uma forma muito mais segura de alterar o código genético, sem varrer as células de defesa do organismo e deixar o indivíduo vulnerável a infecções. Parece ficção científica, e de certa forma é, mas em alguns anos pode ser que não seja mais.
Segue abaixo um vídeo de um canal que eu adoro chamado Kurzgesagt, elucidando o que é a edição genética CRISPR (em inglês, mas é possível ativar legendas).


Como muitos infectologistas, eu comemoro a notícia do "paciente de Londres" com reservas. É uma boa notícia, mas ainda não é a cura. E existe o temor de que alguns indivíduos com HIV alimentem esperanças infundadas de cura utilizando esse método ou (pior ainda) deixem de tomar seus antirretrovirais por acreditar que já chegamos à cura. Não chegamos lá ainda, mas esse é mais um passo para entendermos a doença e como será possível curá-la no futuro.

Influenza: a epidemia de 1918

A gripe é uma experiência universal. Dor de cabeça, febre, tosse, dor de garganta, dor no corpo, congestão nasal, prostração... Todo mundo já passou por isso alguma vez na vida, e sabe que é mais forte do que um resfriado comum. Ainda assim, nós costumamos considerar a gripe uma doença benigna e sazonal, incapaz de gerar maiores problemas ou, mais ainda, de causar a morte de alguém. No entanto, todos os anos pessoas idosas ou com a saúde debilitada são internadas e morrem devido à gripe, e não é por acaso que existe um programa anual de vacinação para evitar que os danos sejam ainda maiores. E ocasionalmente, a depender da variedade de vírus que está circulando, mesmo pessoas jovens e perfeitamente saudáveis podem estar sob risco. 
Foi o que aconteceu há exatamente um século, quando uma pandemia de gripe varreu o mundo e causou mais mortes do que qualquer outra doença epidêmica na História. Na verdade, há quem diga que morreram muito mais pessoas de gripe do que de consequências diretas das duas guerras mundiais. As estatísticas variam entre 50 e 100 milhões de pessoas, algo em torno de 3 a 5% da população mundial na época. Isso é MUITA GENTE. Ela passou para a História com o nome de Gripe Espanhola, mas não se engane: povoados do Alasca e das ilhas do Pacífico foram dizimados, nenhum continente foi poupado e a expectativa de vida nos EUA caiu mais de 10 anos naquele ano de 1918, comparada com o ano anterior. Foi uma catástrofe mundial, e ainda hoje há quem perca o sono temendo que ela se repita nos dias de hoje, com muito mais vítimas. Para entender como ela fez tanto estrago, precisamos entender melhor como é o vírus da gripe e também voltar um pouco no tempo.
O vírus causador da gripe, ou vírus influenza, é um pequeno vírus da família dos ortomixovírus contendo apenas oito genes, codificados em RNA. Esse é um detalhe muito importante, porque o RNA é muito mais vulnerável a mutações do que o DNA que compõe o nosso material genético. Toda vez que ele invade uma célula (no nosso caso, células do aparelho respiratório) e a induz a produzir milhares de cópias de si mesmo, algumas dessas cópias saem diferentes do vírus original. Muitas são tão defeituosas que são incapazes de infectar outras células, mas outras podem ter alguma vantagem e ser mais virulentas e mais fáceis de ser transmitidas. A essa capacidade de acumular mutações seguidamente e se transformar em um vírus um pouco diferente nós chamamos de drift, e é algo que é comum a outros vírus de RNA, como o HIV. No entanto, o vírus influenza possui ainda uma outra maneira de se transformar: se ele estiver infectando uma célula que já está infectada com outro vírus diferente, seja outro vírus influenza ou outro completamente diferente, durante a construção de novas cópias virais as partes dos dois tipos de vírus podem se misturar e dar origem a um vírus "híbrido", com proteínas dos dois vírus que estavam originalmente na célula infectada. Esse processo é chamado de shift, e pode ser responsável por gerar vírus muito diferentes em um período muito curto, sem as dezenas ou centenas de mutações que o drift costuma exigir.
Tamanha capacidade de mutação também significa que existem diversos subtipos de vírus influenza. Os principais que afetam humanos são o A (também encontrados em outros mamíferos e em aves) e o B (restrito a humanos e alguns mamíferos marinhos). Dentro de cada subtipo, os vírus influenza são diferenciados entre si pelas variedades das suas duas proteínas de superfície principais. São elas a hemaglutinina, responsável pela adesão e entrada do vírus na célula hospedeira (seu nome vem justamente da capacidade de se aderir e aglutinar glóbulos vermelhos no tubo de ensaio), e a neuraminidase, responsável pela liberação da cópia viral a partir da membrana plasmática da célula infectada. Por isso classificamos os vírus circulantes como H1N1, H2N2, H3N2, H7N9, etc, de acordo com as proteínas de superfície presentes naquela cepa viral específica. Não existe uma correlação exata entre as variedades de proteína de superfície ou as combinações com maior patogenicidade, mas o fato de elas serem diferentes umas das outras pode fazer com que nosso sistema imunológico seja pego desprevenido. Diferentes tipos de vírus com diferentes combinações de proteínas circulam de forma predominante todos os anos, e de forma um tanto cíclica e um tanto aleatória uma dessas cepas pode causar uma doença mais grave ou mesmo uma epidemia em um ano específico. Essa sucessão errática de anos com e sem gripe fez com que os antigos suspeitassem que algum fator externo influenciasse a existência ou não de uma epidemia - o clima, ou talvez alguma conjunção dos astros. Essa suspeita de que a doença existisse sob uma influência externa maior deu origem ao seu nome em italiano e depois adotado em outros idiomas, como o inglês: influenza. Em inglês coloquial, o termo ainda foi reduzido até conter apenas uma sílaba, flu, como os norte-americanos e os britânicos se referem à doença até hoje.
Descobrir que a gripe era causada por um vírus foi a conclusão de um caminho longo e tortuoso. Seguindo-se à Era de Ouro da Microbiologia do último quarto do século XIX, em que Koch, Pasteur e muitos outros começaram a identificar micro-organismos causadores de doenças como cólera, tuberculose e antraz, na virada do século XIX para o XX um microbiologista alemão chamado Friedreich Johann Pfeiffer havia isolado uma bactéria do trato respiratório de pessoas com sintomas gripais e afirmava com bastante confiança que aquela era a causa da gripe. Não era a influência dos astros ou do clima, e sim um bacilo Gram-negativo curto que crescia muito bem em placas de sangue lisado que era o causador da doença! Pfeiffer batizou assim sua bactéria como Bacillus influenzae, certo de que seu nome era bastante apropriado. Mas muitos outros microbiologistas permaneciam céticos: a bactéria de Pfeiffer podia ser encontrada também em pessoas saudáveis, e inoculá-la nas vias aéreas de animais ou de pessoas saudáveis não causava gripe. Mais alguns anos se passaram até que outros cientistas identificassem que a gripe era causada por um "micro-organismo filtrável", menor que uma bactéria a ponto de ser invisível ao microscópio óptico e capaz de passar pelos poros dos filtros que retinham bactérias. Era provavelmente um vírus, assim como o da febre amarela que havia sido descoberto alguns anos antes. Não era visível, mas estava lá. Só na década de 1930, com a invenção do microscópio eletrônico, foi possível observar o vírus causador da gripe, apropriadamente chamado de vírus influenza. Quanto ao bacilo de Pfeiffer, ele foi depois rebatizado como Haemophilus influenzae, e se descobriu que é uma bactéria comum nas vias aéreas das pessoas, mesmo das saudáveis, ainda que algumas cepas possam causar pneumonias, infecções de ouvido ou mesmo meningites. Uma vacina contra ele foi desenvolvida décadas depois e hoje é administrada a crianças pequenas para evitar essas formas invasivas de infecção, fazendo parte do calendário vacinal brasileiro atual.
Agora sabendo o que é o vírus causador da gripe, resta saber de onde ele vem. A maior parte dos vírus influenza A circula no trato digestivo das aves sem causar grandes problemas, ainda que ocasionalmente mutações gerem uma variedade que é patogênica também para elas. É uma zoonose. Isso quer dizer que é redundante falar em gripe aviária: toda gripe é aviária, no início. Algumas vezes o vírus pode sofrer uma mutação que gera afinidade não só pelas células do intestino das aves, mas também pelas células das vias aéreas dos mamíferos, inclusive as nossas. Ocasionalmente, o vírus influenza pode ser transmitido das aves para animais como os porcos, causando neles sintomas similares aos da gripe e fazendo-os de amplificadores virais antes do salto final para os humanos - e claro, com mutações ocorrendo o tempo todo nas aves, nos suínos e nos humanos. Mas nem sempre o porco é necessário: há relatos de vírus influenza humanos que eram idênticos aos de aves, sem a etapa suína.
Aves, porcos e pessoas. Onde no planeta podemos encontrar essa combinação com mais facilidade? No sul da China, claro. Plantações de arroz atraindo patos e outras aves, criações de porcos ao lado do arroz e das aves, e uma das regiões mais densamente povoadas por humanos em todo o planeta. Não deveria ser surpresa o fato de que praticamente todas as grandes epidemias de gripe tiveram origem exatamente ali: na província de Guangdong, no sul da China, e em Hong Kong, que fica do lado. Provavelmente surtos e pequenas epidemias de gripe têm acontecido na região há muitos séculos ou mesmo milênios, mas os avanços tecnológicos da modernidade encurtaram distâncias e fizeram com que epidemias que antes estariam restritas passassem a se espalhar pelo planeta. Além disso, depois das Guerras do Ópio a cidade de Hong Kong passou a ser domínio britânico, voltando a fazer parte da China apenas em 1997, 150 anos depois. Nesse período, apesar do intercâmbio comercial e de pessoas com a China, Hong Kong estava ainda mais interligada com o restante do então gigantesco império britânico, "onde o sol nunca se põe", como se dizia na época da Rainha Vitória. Do Canadá até a Austrália, da Índia até a África do Sul e a Guiana, uma intensa rede comercial ligava todas essas colônias entre si e à Inglaterra. E Hong Kong passara a ser parte disso em 1847. É possível que a epidemia de 1918 tenha surgido em Hong Kong? Não se sabe ao certo, mas muitas das que vieram em seguida (sem as mesmas proporções cataclísmicas) vieram de lá.
Navios a vapor e a combustão cruzando os mares a uma velocidade muito maior do que seus antecessores a vela, e levando muito mais gente, eram um produto das inovações da Revolução Industrial. A imigração maciça de europeus para os EUA, o Brasil, a Argentina, o Chile e a Austrália só foi possível graças a essas grandes embarcações. No entanto, mais do que ocasionalmente esses navios levavam também pessoas doentes, e uma das atividades mais importantes dos portos desses países era vigiar epidemias entre os recém-chegados e deixá-los de quarentena. Nem sempre funcionava. Mas na época da pandemia de gripe de 1918, havia um ingrediente a mais facilitando a disseminação da doença. Um ingrediente que estava chacoalhando o planeta, matando o século XIX e dando origem ao século XX como conheceríamos a partir de então: a Primeira Guerra Mundial.
A guerra começara em julho de 1914, como consequência direta da rivalidade entre países europeus e sua disputa por colônias. De um lado, franceses, ingleses, russos e, no fim, norte-americanos. De outro, alemães, austríacos e otomanos. No início, ambos os lados estavam tão confiantes que diziam que a guerra acabaria antes do Natal de 1914, e que não haveria nenhuma outra a partir de então - ela era chamada de A Guerra para Acabar com Todas as Guerras. O avanço lento, as metralhadoras e o número obsceno de baixas de ambos os lados fizeram com que os combates se estendessem pelos quatro anos seguintes, com estratégias defensivas baseadas em trincheiras úmidas, lamacentas, sujas e pouco ventiladas. Recrutas se aglomerando em campos de treinamento e nas trincheiras com pouca higiene e, a partir da entrada dos EUA na guerra em 1917, soldados apinhados em navios para cruzar o Atlântico e lutar na França. Não era hora de pensar em quarentena, ou de evitar aglomerações. Era hora de mobilizar tropas e desembarcá-las no local dos combates o mais rápido possível. O cenário perfeito para uma epidemia de gripe se espalhar.
Ninguém sabe ao certo de onde a epidemia veio. Há quem diga que começou no Kansas, no interior dos EUA, enquanto outros dizem que uma doença respiratória muito parecida já circulava na Europa desde 1916, mas a guerra impediu que alguém prestasse atenção nela. No entanto, é possível que a China também seja a origem da epidemia. Em 1917, milhares de trabalhadores chineses atravessaram o Canadá de trem para embarcar rumo à França e ajudar a cavar trincheiras - tudo em segredo, porque a China era oficialmente neutra (na verdade retalhada pelas grandes potências) e ninguém queria que a guerra também se estendesse até a China. Nessa época, há relatos de uma epidemia de gripe ocorrendo em algumas regiões da China. Algum trabalhador chinês doente poderia ter transmitido a gripe a alguém no Canadá ou na França e ter dado origem à epidemia após o vírus passar por sucessivas  mutações, embora um estudo chinês conteste essa hipótese. E claro, como em toda epidemia há fake news: houve quem dissesse que a doença chegara aos EUA através de submarinos alemães que contaminaram deliberadamente os portos, e também quem afirmasse que o vírus na verdade estava escondido em comprimidos de aspirina, que era produzida pela Bayer, dos inimigos alemães.
Seja como for, tendo se iniciado na China, na Europa ou nos EUA, a epidemia alcançou proporções mundiais em março e abril de 1918. Sua capacidade de contágio parecia ser acima da média até para a gripe, e pessoas que tossiam ou espirravam liberavam no ar uma nuvem de centenas de milhares de partículas virais. Muitas pessoas já transmitiam o vírus antes de se sentir doentes, e com a facilidade de transporte por automóvel, trem ou navio, só começavam a se sentir mal quando estavam em outras cidades, a centenas de quilômetros de onde se contagiaram ou contagiaram outras pessoas. Campos de recrutas no interior dos EUA foram acometidos, adiando o embarque deles para a França. Um deles, Fort Riley, teve 522 casos em poucas semanas. No continente europeu, uma ofensiva alemã precisou ser adiada porque muitos soldados estavam doentes e incapazes de lutar. Do lado francês e britânico a situação era parecida. Também a população civil sofria com a dor de cabeça, a prostração, a febre, a tosse e o mal-estar. Os jornais dos países combatentes faziam de tudo para censurar as notícias da gripe e manter o moral das tropas elevado. Ninguém queria que o outro lado achasse que eles estavam debilitados e vulneráveis. A Espanha, neutra, não tinha essa censura nos seus jornais, e as notícias da gripe circulavam mais abertamente, principalmente depois que o próprio rei espanhol foi acometido pela doença. Por essa razão, a epidemia ficou conhecida na época e depois como Gripe Espanhola. Mas apesar da facilidade em se disseminar e dos sintomas debilitantes que deixavam as pessoas de cama, a mortalidade foi muito baixa, similar à da gripe sazonal. Quando ela passou, alguns meses depois, as pessoas acharam que ela já tivesse acabado. Não tinha.

 Cots set up in gymnasium for flu patients
Soldados enfermos em Fort Riley, Kansas, EUA. Fonte: CDC

Não se sabe ao certo o que aconteceu. Pode ter sido um drift após meses sendo transmitido de pessoa para pessoa na Europa e nos EUA. Pode ter sido um shift com outro vírus. Pode ter sido a vulnerabilidade das pessoas por causa da guerra e do estresse associado. Há teorias afirmando até que o gás mostarda, arma química utilizada na guerra e com potencial de causar mutações, pode ter contribuído. O fato é que, a partir de setembro de 1918, o vírus que antes deixava as pessoas de cama começou a matá-las. Se antes ela matava cerca de 0,1% das pessoas acometidas, essa variedade mutante mais agressiva matava 2,5%, chegando a 10 ou 20% de mortalidade em alguns lugares. Considerando que uma em cada quatro ou uma em cada três pessoas da Terra contraiu gripe em algum momento nessa época, o número final é realmente assustador. Mais pessoas morreram nessa epidemia do que de AIDS desde 1981 e, em números absolutos, mais pessoas morreram em um ano do que todas as vítimas da peste bubônica em cem anos na baixa Idade Média. O mais assustador disso tudo? Grande parte das vítimas eram pessoas jovens, perfeitamente saudáveis. Normalmente a gripe mata extremos de idade, como crianças muito pequenos e idosos com doenças crônicas. Esse vírus matava também pessoas de 20, 30 ou 40 anos que não tinham absolutamente nenhum problema de saúde. E matavam rápido. Dois ou três dias eram suficientes, às vezes menos. Há relatos de dez ou doze horas entre o início dos sintomas e o óbito. A febre, a dor de cabeça e o mal-estar começavam por derrubar a pessoa, que em pouco tempo tinha falta de ar e adquiria uma cor azulada na face e na extremidade por causa da falta de oxigênio, o que nos médicos chamamos de cianose. Em tempos onde não havia respiradores, cilindros de oxigênio ou tubos orotraqueais, não havia muito a ser feito. Enfermeiros e médicos se desdobravam para proporcionar um mínimo de conforto, mas as enfermarias ficavam lotadas e existia o medo de que eles próprios contraíssem a doença, o que aconteceu algumas vezes. Pacientes cianóticos e com falta de ar, mas ainda vivos, eram etiquetados pelos enfermeiros para agilizar a remoção para o necrotério e dar lugar mais rapidamente a outros doentes que chegavam. Encontros públicos eram proibidos, pessoas sem máscara de gaze eram impedidas de circular nos bondes, e as pessoas faziam de tudo para se manter em suas casas, a salvo do vírus. 

Red Cross Volunteers- Boston, MA
Voluntários da Cruz Vermelha recrutados às pressas para combater a gripe, porque grande parte das enfermeiras e dos médicos estavam auxiliando as tropas na Europa. Fonte: CDC

Curiosamente, pessoas que haviam sido acometidas pela primeira onda da gripe na primavera de 1918 estavam de alguma forma imunes à segunda onda, muito mais mortal. As outras, por alguma razão provavelmente relacionada ao tipo do vírus, desenvolviam uma resposta inflamatória exacerbada que enchia os pulmões com os seus próprios fluidos, matando-os de hipóxia. Autópsias realizadas na época descrevem pulmões pesados e encharcados, cheios de líquido. Uma teoria bastante plausível diz que os indivíduos jovens e saudáveis eram justamente aqueles que montavam uma resposta imune mais forte contra o vírus, daí os sintomas mais exacerbados e a maior mortalidade. Dentre os adultos jovens, mulheres grávidas também tiveram mortalidade especialmente elevada, um padrão similar ao de outras epidemias de gripe posteriores (por esse motivo, gestantes podem e devem se vacinar contra a gripe, estando entre os grupos prioritários nas campanhas anuais de vacinação).
Estimativas da época falavam em 21 milhões de mortes, mas elas parecem ter subestimado muito o número de vítimas, principalmente fora da Europa e dos EUA. Apenas no Raj Britânico (que viria a se tornar a Índia, o Paquistão e Bangladesh), fala-se hoje em mais de 20 milhões de mortos. Na França, 400 mil vítimas fatais, e na Inglaterra 250 mil. Na Indonésia, então possessão holandesa, 1,5 milhão de mortos, cerca de 5% da população da época. No Irã houve 1 a 2 milhões de mortos, e na Etiópia o futuro imperador Haile Selassie quase morreu, junto com centenas de milhares de outros etíopes. Mahatma Gandhi, na época vivendo como advogado na África do Sul, também ficou gravemente enfermo mas sobreviveu, ao contrário de quase meio milhão de sul-africanos. Esse também foi aproximadamente o mesmo número de vítimas fatais nos EUA, porém a epidemia foi especialmente devastadora para os povos nativos, notadamente no Alasca. Em alguns povoados, 90% da população morreu. Há relatos dramáticos de crianças órfãs resgatadas depois que seus pais haviam morrido, e em outros povoados foram encontrados cães famintos se alimentado dos cadáveres de seus antigos donos, vitimados pela gripe. No Brasil, mais de 300 mil pessoas morreram, incluindo o presidente eleito Rodrigues Alves, que assumiria seu segundo mandato, e grande parte da tripulação de alguns navios da Marinha (chegando a 90% em alguns casos). O único país que ficou livre da epidemia foi a ilha de Samoa Americana, que permaneceu isolada do resto do mundo durante todo o período temendo as consequências da epidemia depois que mais de 20% da população da vizinha Samoa Ocidental foi morta. No total, calcula-se em algo entre 50 e 100 milhões de vítimas, principalmente no outono de 1918.
Análises posteriores identificaram três ondas diferentes da epidemia. A primeira, da primavera, em março e abril, que se disseminou e causou sintomas mas matou pouco. A segunda, a partir de setembro, que foi responsável pela grande maioria das mortes, e por fim uma terceira onda, menos agressiva e letal, entre fevereiro e março de 1919, após o final da guerra (que havia ocorrido em novembro de 1918 deixando a Europa em frangalhos). E há quem afirme que muitos casos de encefalite letárgica na primeira metade da década de 1920 foram na verdade causados pelo vírus influenza epidêmico, mas essa é uma teoria bastante controversa.

As três ondas, identificadas em um gráfico de mortalidade das cidades de Londres, Nova York, Paris e Berlim na época. Fonte: PLOS


Como toda grande epidemia, a de 1918 chegou ao fim quando não havia mais pessoas suscetíveis suficientes para que a doença perpetuasse seu ciclo, fosse porque os suscetíveis haviam morrido ou se recuperado e criado anticorpos. Estranhamente, por muitos anos a epidemia de gripe de 1918 foi encarada como tabu. Ninguém falava sobre ela, ninguém escrevia. Talvez porque fosse uma história horrenda demais, juntamente com a guerra, para merecer ser revivida. Mas todas as histórias, por piores que sejam, merecem ser contadas se não para servir como um alerta. Aconteceu em 1918, e pode acontecer de novo hoje. Por um lado, temos tecnologia para manter vigilância sobre surtos locais e avisar antes que se tornem pandemias. Por outro, a mesma tecnologia que nos ajuda pode facilitar a disseminação mais rápida de um vírus potencialmente letal por meio de aviões, por exemplo.
E temos as vacinas. Ao longo da segunda metade do século XX, nossa capacidade de entender o vírus da gripe e de nos preparar para uma epidemia melhorou muito, apesar de alguns fracassos como a  enorme campanha de vacinação nos EUA em 1976 que acabou se provando consequência de um alarme falso. A verdade é que o vírus influenza, por sua grande capacidade de mutação, tem diversas cepas e subtipos diferentes circulando ao mesmo tempo. A OMS e organizações de saúde locais têm todo ano a tarefa de tentar identificar quais cepas virais mais agressivas deverão circular no ano seguinte, e se preparar produzindo uma vacina contra elas. Na grande maioria das vezes elas acertam, mas ocasionalmente esse trabalho de previsão apresenta falhas. Às vezes as vacinas nos protegem contra as cepas mais perigosas, e as que restam em circulação são mais brandas. Ou seja, por mais que algumas pessoas reclamem que ficaram gripadas mesmo tomando a vacina contra gripe indicada nos meses ou semanas anteriores, provavelmente o vírus que está agindo no momento não é tão perigoso quanto aquele contra o qual foi elaborada a vacina. Além disso, o influenza não é o único vírus capaz de acometer as vias aéreas e causar tosse, coriza, espirros e mal-estar - existem mais de uma centena de vírus que podem causar tais sintomas, incluindo rinovírus, adenovírus, vírus sincicial respiratório, parainfluenza e etc. A maior parte não causa febre, prostração ou dor intensa no corpo, mas essa é uma resposta inespecífica do organismo contra uma enorme quantidade de agentes infecciosos que nem sempre conseguimos identificar. A depender da resposta de cada indivíduo, esses vírus "inocentes" podem sim derrubar uma pessoa. Outros vírus também podem nos causar um mal-estar similar ao da gripe, com mal-estar, como citomegalovírus, vírus Epstein-Barr e até mesmo o HIV em sua fase aguda, e infelizmente nenhum deles pode ser prevenido com a vacina contra a gripe. 
E como o vírus influenza sofre mutações todos os anos, uma nova vacina precisa ser elaborada e administrada todos os anos, em especial àquelas pessoas que estão em grupos de risco: idosos, gestantes, portadores de doenças crônicas (incluindo HIV/AIDS), profissionais de saúde, pessoas vivendo ou trabalhando em ambientes superlotados (orfanatos, presídios, quartéis) e populações indígenas, que entraram em contato com o vírus há muito menos tempo que as pessoas de origem europeia e têm por isso uma desvantagem genética em sua resposta contra ele (vide a alta mortalidade nas ilhas do Pacífico e no Alasca em 1918).
Além disso, foram desenvolvidos medicamentos antivirais específicos para o vírus influenza (e que tendem a se esgotar das prateleiras das farmácias quando uma nova epidemia começa a se espalhar). No entanto, o Oseltamivir (Tamiflu) e o Zanamivir (Relenza, geralmente não encontrado no Brasil) só têm efeito se iniciados até as primeiras 48 horas a partir do início dos sintomas, e não são livres de efeitos colaterais (no meu primeiro mês de residência médica no Emílio Ribas, em março de 2016, apresentei sintomas gripais enquanto estagiava no serviço de Cuidados Paliativos do Hospital das Clínicas da USP; acreditando estar com a cepa agressiva da época e para não me tornar uma bomba assassina de pacientes, pedi afastamento e comecei a tomar Tamiflu, mas tive que interromper o tratamento devido à gastrite, às náuseas e à diarreia que os comprimidos me proporcionaram).
O ano de 2016 foi um tanto atípico porque a gripe chegou ao Brasil mais cedo. Geralmente tendo início no final de abril, em maio ou em junho, coincidindo com o fim do outono e começo do inverno, nesse ano os casos começaram ainda em março, obrigando o Ministério da Saúde a se apressar e a iniciar a campanha de vacinação mais cedo - com toda a histeria e as filas enormes que uma campanha de vacinação ocorrida durante uma epidemia costumam causar. Em anos normais, as pessoas começam a ser vacinadas semanas antes da epidemia ter início, tempo mais do que suficiente para que elas todas se imunizem.
Ou seja, apesar de existir uma medicação eficiente se tomada no período correto, a maneira mais eficaz de se proteger da gripe, em especial para os grupos de risco, é a vacinação. E outras recomendações são bastante válidas, e não só em períodos epidêmicos: higienizar as mãos sempre que possível, proteger o nariz e a boca ao espirrar e evitar aglomerações se estiver com sintomas gripais. Essas recomendações não precisavam estar em cartazes ou em outros veículos de comunicação pública, porque são medidas básicas! Infelizmente as pessoas só costumam se lembrar delas quando há o medo de se contagiar com algum vírus como o influenza. Na verdade, durante epidemias de gripe a quantidade de casos de diarreia aguda caem bastante, simplesmente porque as pessoas começam a lavar as mãos com maior frequência.
E para os serviços de saúde e Epidemiologia ao redor do mundo (em especial no sudeste e leste da Ásia), a melhor maneira de evitar uma nova epidemia é a vigilância constante de novos casos. Uma vez identificado um surto, é essencial a identificação do subtipo de vírus influenza que o causou e a produção rápida e eficiente de vacinas no mundo todo capazes de proteger as pessoas dessa nova ameaça antes que ela alcance níveis globais como ocorreu em 1918.

VACINAS CONTRA COVID-19 VERSUS HIV: A "POLÊMICA" DESNECESSÁRIA DE HOJE

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