quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Doenças ocupacionais: condições a que você está sujeito quando vai bater o seu ponto

Recentemente fui incumbido da tarefa de apresentar uma aula de Medicina do Trabalho para os alunos da faculdade onde trabalho. O grande problema era meu quase total desconhecimento sobre o tema, que me obrigou a realizar uma pesquisa que durou alguns dias. Embora eu admita que torço o nariz para os aspectos legais da Medicina do Trabalho, a pesquisa para a parte final da aula ficou muito mais interessante do que a do começo, porque foi aí que eu mergulhei no MARAVILHOSO MUNDO DAS DOENÇAS OCUPACIONAIS. São uma lista imensa e que eu não conseguiria incluir integralmente na aula, mas achei que fazer uma coletânea com as mais interessantes (e bizarras) renderia um texto legal aqui no blog. Pois bem, lá vai.
O trabalho é uma atividade inerente ao ser humano, e mesmo um grupo de caçadores e coletores nômades do Paleolítico também realizava uma espécie de trabalho ao caçar, pescar e coletar. No entanto, com a vida sedentária e o surgimento de sociedades mais organizadas, o trabalho passou a ser mais especializado. Quando, graças à Revolução Neolítica mais ou menos uns dez mil anos atrás, a produção de alimento por uma parcela menor da população de um vilarejo passou a ser suficiente para alimentar a população toda, o restante das pessoas passou a se dedicar a outras atividades para preencher outras demandas. Em vez de um indivíduo ser agricultor, artesão, tecelão e pescador ao mesmo tempo, cada uma dessas atividades passou a ser exercida por um grupo diferente de pessoas. Uma consequência menos óbvia dessa especialização é o fato de que, em vez de realizar atividades variadas ao longo do dia para preencher suas necessidades (como nossos corpos evoluíram para fazer ao longo de milhões de anos nas florestas e posteriormente nas savanas africanas), agora passávamos várias horas do dia presos a uma única atividade e expostos a riscos associados a essa mesma atividade. Um agricultor, por exemplo, passava o dia sob o sol, capinando, semeando, colhendo e carregando a colheita, em posições que não eram saudáveis para sua coluna (que evoluiu para sustentar um nômade na savana, não um agricultor). Além disso, dependendo do caso (como no cultivo de arroz no leste da Ásia ou nas terras inundáveis do Egito), podia permanecer várias horas do dia em contato com a água e ficar vulnerável a parasitas como os causadores das diferentes formas de esquistossomose. Em terras mais secas também havia risco. A inalação frequente de poeira ao lavrar o campo poderia trazer problemas como a inalação concomitante de esporos de fungos – no Brasil, o exemplo mais comum é a paracoccidioidomicose. Isso para ficar só no exemplo dos agricultores. Outras atividades envolvem outros riscos, alguns deles fazendo parte do que há de mais bizarro – e triste! – na História da relação entre o ser humano e o trabalho. A simples adoção de medidas de segurança ou de equipamentos de proteção eliminaria ou diminuiria esses riscos, mas os primeiros a descrever essas doenças não sabiam disso e, pior ainda, em muitos casos mesmo quando havia provas suficientes da relação entre exposição a um agente e uma doença específica as tais medidas não eram adotadas. Em alguns casos, como veremos mais à frente, há trabalhadores em risco até hoje, em pleno século XXI.

Verruga da fuligem
Embora Hipócrates tenha descrito a relação entre algumas atividades e algumas doenças na Grécia antiga, a história das doenças ocupacionais como uma área de estudo específica remonta ao final do século XVIII, quando o médico inglês Percival Pott descreveu a “verruga da fuligem” em limpadores de chaminé. Pott, que também descreveria uma forma de tuberculose de coluna vertebral que até hoje leva seu nome, notou que os limpadores de chaminé (em sua maioria crianças e adolescentes, já que poucos adultos conseguiam entrar em uma chaminé para limpá-la) desenvolviam uma lesão característica na bolsa escrotal, similar a uma verruga escura e que poderia crescer até matar o indivíduo que a portava. Expostos à fuligem das chaminés por muitas horas do dia, os limpadores de chaminé muitas vezes iniciavam a atividade na infância e, na adolescência ou no início da idade adulta desenvolviam a tal lesão escrotal que era, segundo o próprio Pott, “uma doença do abdome, muito frequentemente causando enduração e dano nas glândulas inguinais e, quando chegava ao interior do abdome, afetava as vísceras e depois se tornava dolorosamente destrutiva”. Logo ficou claro que a tal verruga era um tipo de câncer, o carcinoma testicular, e que as ínguas na virilha dos jovens acometidos eram causadas por metástases, assim como a dor abdominal. A fuligem depositada nas chaminés (e no corpo dos pobres limpadores), repleta de substâncias cancerígenas, cedo ou tarde cobraria seu preço.

Ilustração de uma "verruga de fuligem" pelo médico Horace Benge Dobell. Fonte: https://wellcomeimages.org/indexplus/obf_images/e2/eb/7f348bde8215cab6cd390aa0b829.jpg


Pequenos limpadores de chaminé nos EUA do século XIX. Em sua maioria, órfãos ou crianças cujos pais as entregaram a terceiros porque não tinham condições de cuidar delas. Fonte: https://digitalcollections.nypl.org/search/index?keywords=G92F136_056ZF

O trabalho de Percival Pott ajudou a pressionar a opinião pública e os legisladores para regular o ofício de limpador de chaminé, e em 1788 foi decretada uma lei estabelecendo critérios: idade mínima de oito anos, consentimento dos pais e condições mínimas de vida para as crianças. Infelizmente, a lei só entrou em vigor de fato no fim do século XIX, mais de cem anos depois. 



Mandíbula de fósforo

No fim do século XIX e início do século XX, fábricas de palitos de fósforo utilizavam o chamado fósforo branco para fazer o produto pegar fogo com o atrito. Operários das fábricas de palitos de fósforo - em sua maioria mulheres - trabalhavam por horas com uma exposição excessiva à substância, em especial ao seu vapor. No entanto, o fósforo branco se depositava nos ossos e dentes da mesma forma que o fósforo comum - nos nossos ossos e dentes, o fósforo é um componente muito importante na mineralização juntamente com o cálcio. O fósforo branco, diferentemente do comum, dificulta o remodelamento dos ossos porque prejudica a ação dos osteoclastos, as células responsáveis por destruir tecido ósseo enquanto os osteoblastos produzem osso novo. Por mais que a destruição dos ossos não pareça benéfica, ela é. Os osteoclastos e osteoblastos devem trabalhar em equilíbrio para que os ossos cresçam e se mantenham no formato adequado - em especial na mandíbula, que cresce e muda de formato ao longo da infância e da juventude. Sem a ação adequada dos osteoclastos, as mandíbulas das pessoas acometidas tendiam a se deformar com o passar do tempo. Inicialmente, a deposição do fósforo branco levava a dor nos dentes e formação de abscessos, que depois evoluíam para necrose e morte do tecido ósseo. Isso desfigurava a face, causava perda dentária e gerava dores excruciantes, e a única forma de acabar com elas era removendo a mandíbula. Para deixar o relato ainda mais bizarro, há relatos de que os ossos acometidos pela deposição de fósforo branco emitiam um estranho brilho branco no escuro, mas eu infelizmente não consegui encontrar fotos.

Mandíbula de um indivíduo acometido pelo fósforo branco. Fonte: https://strangeremains.files.wordpress.com/2015/03/phossyjaw.jpg 

Indivíduo acometido pela "mandíbula de fósforo". Fonte: https://snapfoxsafety.com/blogs/news/ghs-hazard-communication-video

O reconhecimento da exposição ao fósforo branco como causa da lesão de mandíbula levou a greves, paralisações e pressão da opinião pública. Leis foram impostas punindo fábricas que usassem fósforo branco, e a substância foi proibida nos EUA, na Inglaterra e em outros países a partir de 1910, substituída pelo fósforo vermelho - inofensivo para os ossos e usado até hoje.


Mandíbula de rádio

No início do século XX, a radioatividade era um fenômeno misterioso. Henri Becquerel, Pierre e Marie Curie haviam começado a elucidar o estranho brilho que algumas substâncias emitiam, sem saber os efeitos e os danos que vinham com esse mesmo brilho (Marie Curie morreu em 1934 de anemia aplásica, consequência direta de uma vida inteira de pesquisa em contato com radioatividade). Mas antes que isso viesse à tona, a radioatividade era chique. Havia gente vendendo água radioativa como se fosse uma panacéia, e havia cremes para a pele feitos de material radioativo que brilhavam no escuro. E havia os visores de relógio que brilhavam no escuro graças à sua tinta que continha rádio. 
Anúncio de visores com tinta feita de rádio - que brilhavam no escuro! Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/c/c6/Undark_%28Radium_Girls%29_advertisement%2C_1921%2C_retouched.png/616px-Undark_%28Radium_Girls%29_advertisement%2C_1921%2C_retouched.png

Os visores eram produzidos em fábricas nos Estados Unidos, e empregavam mulheres na linha de produção. Elas eram as responsáveis por pintar os números nos visores dos relógios, usando pincéis. Para moldar a forma da ponta dos pincéis e tornar o trabalho mais preciso, elas regularmente passavam o pincel na boca e usavam os lábios, para em seguida mergulhar o pincel na tinta radioativa, desenhar mais alguns números e novamente colocar o pincel na boca. Por horas e horas, dias e dias. Havia sido dito a elas que a substância era inofensiva, mas em 1924 os casos de necrose de mandíbula, fraturas e anemia começaram a se acumular a ponto de uma nova entidade clínica, a "mandíbula de rádio", ser descrita. Estima-se que pelo menos 4 mil pessoas trabalharam nas fábricas de visores de relógio com contato direto com tinta contendo rádio até que elas fossem fechadas alguns anos depois. Não se sabe ao certo quantas morreram de anemia aplásica nem quantas posteriormente desenvolveram neoplasias hematológicas. O próprio desenvolvedor da tinta de rádio, Dr. Sabin von Sochocky, morreu em 1928 - até então, era a 16° vítima fatal. O caso resultou em leis mais rígidas sobre segurança dos trabalhadores, indenizações para as famílias das trabalhadoras acometidas e também ajudou a Humanidade a perceber que a radioatividade não era isenta de riscos e deveria ser manejada com muito cuidado.



Síndrome do chapeleiro maluco

No início da Idade Moderna, o uso de chapéus de feltro à base de pelos de animais começou a se popularizar cada vez mais na Europa, graças à sua durabilidade e capacidade de manter a forma original mesmo sob vento e chuva. Na França, alguns huguenotes desenvolveram uma técnica para facilitar o alisamento e a compressão dos pelos formando uma camada compacta, dando origem ao feltro. Essa técnica utilizava uma substância alaranjada chamada nitrato de mercúrio para tornar o alisamento mais fácil. Quando os huguenotes e outros protestantes foram expulsos da França em 1685, acabaram fugindo para a Inglaterra e levando consigo a técnica de produção de feltro usando nitrato de mercúrio, onde ela se popularizou ainda mais.
Infelizmente, os chapéus embebidos em nitrato de mercúrio deixados para secar em ambientes fechados liberavam mercúrio no ar. O mercúrio é um metal pesado, tóxico para o sistema nervoso, causando tremores, fraqueza muscular, surdez, queda de cabelo e sintomas psiquiátricos como irritabilidade, insônia, depressão, excitabilidade excessiva e sonhos vívidos. A intoxicação por mercúrio já havia sido descrita em mineiros e garimpeiros que utilizam o mercúrio na separação do ouro de impurezas, mas diversos relatos a partir do século XIX passaram a associar também o uso de nitrato de mercúrio por chapeleiros a esses sintomas, e a figura do chapeleiro maluco caiu no imaginário popular - na Inglaterra, "louco como um chapeleiro" era uma expressão comum. Os casos de intoxicação por mercúrio em fabricantes de chapéus desapareceram depois que o nitrato de mercúrio foi abandonado e substituído por outras substâncias como a água oxigenada ainda na primeira metade do século XX.
Curiosamente, o chapeleiro maluco da obra de Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, parece ter sido inspirada não na síndrome que acometia chapeleiros, mas sim em um vendedor de móveis com hábitos excêntricos chamado Theophilus Carter, que a princípio não teve contato direto com mercúrio.


Catarata do soprador de vidro

Nas aulas de Física no Ensino Médio, aprendemos que objetos quentes emitem grande quantidade de radiação infravermelha, invisível aos olhos humanos. Isso inclui mesmo aqueles materiais que, de tão quentes, acabam emitindo também luz visível, como é o caso do vidro e de metais como o ferro. Hoje se sabe que a exposição à luz infravermelha por anos e anos a fio, como ocorre com artesãos que produzem vidro e com trabalhadores de usinas metalúrgicas, acaba lesando algumas estruturas dos olhos. Em especial, a radiação chega ao cristalino, a lente transparente que temos dentro do olho e cuja forma se ajusta para garantir que a imagem que enxergamos seja focada exatamente onde está a retina. Pois a exposição prolongada à luz infravermelha faz com que essa lente deixe de ser transparente e adquira uma coloração opaca, esbranquiçada. Inicialmente se apresenta como turvação visual mas, se não tratada (usualmente com a retirada do cristalino e sua substituição por outro material) pode levar à perda da visão.
Hoje, sabendo dos riscos da exposição prolongada à radiação infravermelha, profissionais que lidam diretamente com vidro ou metais incandescentes utilizam (ou deveriam usar) óculos especiais que não permitem que a radiação nociva chegue aos olhos.

Segundo os padrões de segurança atuais, a operária da imagem deveria utilizar óculos de proteção. Infelizmente, em muitos países seu uso ainda não é disseminado. 
Um olho com cristalino opaco (catarata). Fonte: https://media.sciencephoto.com/image/m1550050/800wm


Brucelose

A identificação do micro-organismo causador da brucelose ocorreu quando um médico inglês chamado David Bruce, analisando casos de uma estranha doença febril em militares britânicos estacionados em Malta durante a Guerra da Crimeia, descobriu que o leite e o queijo de cabra estava contaminado com um bacilo Gram-negativo que acabou sendo batizado com seu próprio nome. Assim entrava para os livros de Medicina a bactéria Brucella mellitensis (de mellitus, "mel", já que Malta era conhecida em tempos romanos como Mellita, Ilha do Mel). Posteriormente foram identificadas outras espécies de Brucella, e se descobriu que são relativamente comuns em algumas regiões rurais do planeta. Algumas, como a própria B. mellitensis, podem contaminar queijos não-pasteurizados, enquanto outras colonizam ou infectam alguns animais de rebanho como bois, cavalos e porcos - sendo inclusive implicadas em abortos espontâneos nesses animais. E por que é considerada uma doença ocupacional? Porque fazendeiros podem contrair a doença ao realizar o parto de animais em suas fazendas, ou sofrer uma queda ou trauma em ambiente rural e ter a bactéria inoculada de forma traumática através do ferimento.
Uma vez infectado, o indivíduo pode apresentar febre contínua por longos períodos, sudorese (muitas vezes descrita como tendo cheiro de palha úmida), dores nas articulações e nos músculos, anemia e baixo número de leucócitos no sangue, náuseas, vômitos, aumento do fígado e do baço, diarreia e alterações neurológicas e psiquiátricas sutis como depressão e perda de memória. Por sorte, é uma doença tratável com antibióticos, e que pode ser prevenida por pasteurização do leite e do queijo artesanal e pelo uso de equipamentos de proteção pelos fazendeiros, especialmente ao realizar o parto de animais de fazenda.


Esporotricose

Por falar em inoculação traumática de micro-organismos do ambiente, vale a pena citar os fungos causadores da esporotricose. A espécie mais comum do gênero, o Sporothrix schenckii, vive no ambiente, especialmente em matéria orgânica como madeira e a superfície de pequenas plantas. Os primeiros casos foram descritos no fim do século XIX, e um deles envolveu um menino que havia se ferido com um martelo. O fungo penetra na pele logo após um trauma e começa a crescer, muitas vezes gerando uma úlcera no local onde foi inoculado. Em seguida, pode acabar sendo carregado pela circulação linfática e criando um caminho nítido de vermelhidão e endurecimento sob a pele, e não raro gera outras úlceras no caminho da drenagem linfática. É comum, após uma úlcera por esporotricose na mão, surgir outras úlceras no antebraço, cotovelo, braço ou mesmo perto do ombro, sempre acompanhando o trajeto linfático. Em outras situações, o fungo se mantém apenas na úlcera inicial, não gerando novas lesões.

Lesões por esporotricose. Fonte: https://journals.plos.org/plosntds/article/figure/image?size=medium&id=10.1371/journal.pntd.0006434.g001

A inclusão da esporotricose nessa lista de doenças ocupacionais se justifica porque ela frequentemente acomete pessoas que estão em contato com madeira ou matéria orgânica. A primeira grande epidemia já registrada ocorreu entre 1938 e 1947 em uma mina de ouro da África do Sul. Descobriu-se depois que a madeira utilizada para suportar os túneis da mina estavam repletos de fungos, e os trabalhadores que ocasionalmente esbarravam e se feriam acabavam sendo inoculados - no total, foram  mais de três mil casos em nove anos. Ocasionalmente, a doença é descrita em jardineiros e pessoas que cuidam de plantas em seus quintais, porque o fungo pode ser encontrado também nos espinhos e acúleos de plantas.
Nas últimas décadas, alguns lugares do Brasil (principalmente o Rio de Janeiro) têm assistido a uma epidemia de uma espécie distinta de Sporothrix, o S. brasiliensis, transmitido pela arranhadura de felinos. Eles provavelmente adquirem a doença no ambiente ao arranhar madeira, contaminam suas próprias unhas e, ao brigar entre si, inoculam o fungo em outros gatos. Arranhões em humanos têm resultado em milhares de casos nos últimos 20 anos, em diferentes cidades.


Acidentes de laboratório

Trabalhadores de laboratórios ou de hospitais estão sempre sujeitos a acidentes com materiais biológicos. Em hospitais, os patógenos mais temidos são aqueles mais facilmente transmitidos por agulhas - HIV, hepatite B e hepatite C. Embora a maior parte das pessoas se preocupe mais com a transmissão do HIV por agulhas, ela é a mais difícil das três: em média 0,3% de chance, a depender de fatores como a carga viral da fonte, o calibre e a presença de sangue na agulha, a profundidade do ferimento e o uso de profilaxia pós-exposição (que pode reduzir o risco em 80% se iniciada em até 72h e mantida por 28 dias). A chance de transmissão de hepatite B é muito mais alta (30%, o que dá 1 chance em 3), enquanto a de hepatite C gira entre 1 e 2%. Isso, obviamente, considerando que o paciente-fonte é portador dessas doenças. Por sorte, existe vacina contra hepatite B (efetiva em mais de 95% dos casos, e trabalhadores da saúde devem ser imunizados antes de começar a trabalhar), e nos últimos anos medicamentos muito mais seguros e efetivos contra hepatite C têm sido desenvolvidos.
Mas em algumas situações outros patógenos podem ser transmitidos. Em laboratórios clínicos ou de pequisa, protozoários como o Trypanossoma cruzi - causador da doença de Chagas - podem ser inoculados por acidentes com agulhas ou outros instrumentos. Não é tão comum quanto a ingestão de caldo-de-cana ou açaí contendo barbeiros moídos, nem quanto à picada do próprio barbeiro, mas eu mesmo tive um professor de faculdade que contraiu Chagas em um acidente de laboratório.
Por sorte, Chagas é uma doença que progride lentamente e, até certo ponto, tem cura (desde que as sequelas não avancem muito). Tristes foram os casos de acidentes de laboratório com vírus como o Ebola. Um deles ocorreu na Rússia em 2004, e resultou em um óbito. Em outro caso, ocorrido nos EUA em 1976, o indivíduo que se acidentou contraiu a doença mas conseguiu se recuperar. Outros dois casos não resultaram em doença, mas obrigaram o indivíduo exposto a permanecer em quarentena por 21 dias. É por essa razão, aliás, que os laboratórios de pesquisa são um tanto relutantes em realizar pesquisas com Ebola: um acidente com uma agulha pode ser fatal.


Intoxicação por chumbo

O chumbo é um metal pesado utilizado em diversas indústrias. Pigmentos à base de chumbo na cor branca eram usados na pintura até o início do século XX, e talvez expliquem alguns dos casos de psicose entre pintores ao longo da História. O chumbo também está presente em baterias, munições, alguns tipos de solda usados em encanamentos, aventais e coberturas contra radiação e em processos industriais como produção de borracha e plástico. Por isso, mecânicos, trabalhadores da indústria bélica e química, encanadores e também trabalhadores que lidam diretamente com a mineração do chumbo estão sob risco de intoxicação, que pode resultar em quadros agudos (confusão mental, dor de cabeça, vertigens, tremores, convulsões, dor abdominal intensa, constipação intestinal e picos hipertensivos) ou, mais comumente, crônicos (fadiga, irritabilidade, distúrbios do sono, dor de cabeça, dificuldade de se concentrar, perda de libido, dores abdominais, perda de apetite, náuseas, vômitos, dores nas pernas, insuficiência renal, gota e alterações neurológicas incluindo psicose, depressão e mania).
Embora a legislação na maioria dos países costume ser bem restritiva quanto ao uso do chumbo, não é assim em todos os lugares do planeta, e a grande quantidade de sintomas muitas vezes dificulta o diagnóstico. Trabalhadores dessas indústrias específicas costumam (ou deveriam, pelo menos) passar por exames periódicos para dosar a quantidade de chumbo no sangue e detectar quem está sob maior risco de se intoxicar. Além disso, o uso de equipamentos de proteção é (ou novamente, deveria ser) essencial.


UM MUNDO À PARTE: AS PNEUMOCONIOSES

Dentro das doenças ocupacionais, existe uma categoria enorme que inclui aquelas doenças resultantes da inalação contínua e prolongada de substâncias que, uma vez nos pulmões, podem levar a uma resposta inflamatória resultando em cicatrizes difusas e prejuízo para a função respiratória - dentre outras consequências. São as chamadas pneumoconioses, e podem ser consequência de uma miríade de agentes, sejam eles vegetais, animais ou minerais.

A antracose, ou "pulmão do mineiro de carvão", é uma pneumoconiose bastante conhecida. Fonte: http://www.uq.edu.au/research/impact/stories/breath-of-life/media/coal_workers_pneumoconiosis_-_anthracosilicosis_51878450541440x2560-mr.jpg

Silicose

Trabalhadores da construção civil e da indústria de mármore e granito, jateadores de areia e mineiros estão entre as profissões com grande exposição a micropartículas de sílica suspensas no ar. Quando depositadas nos pulmões por anos a fio, acabam por gerar inflamação e fibrose. Os pulmões, normalmente elásticos e capazes de se expandir e se retrair com os movimentos do diafragma e da parede torácica, acabam ficando rígidos e dificultam as trocas gasosas. Os indivíduos passam a sofrer com falta de ar, principalmente aos esforços, e ficam mais vulneráveis a pneumonias e a doenças como a tuberculose.
Infelizmente, uma vez instalada, a silicose não pode ser curada - no máximo se pode limitar seus danos. A melhor saída é evitar que ela se instale - e isso é feito com o uso de máscaras capazes de reter as micropartículas e evitar que elas cheguem nos pulmões. No Brasil, o jateamento de areia (atividade que consistia em polir superfícies usando um jato de micropartículas de sílica) foi banido devido às suas consequências sobre os pulmões dos jateadores. Ainda assim, antigos jateadores vítimas da silicose continuam a necessitar dos serviços de saúde.

Partículas de sílica formando poeira dentro de uma mina. A mineração é uma das muitas atividades onde há risco de silicose. Fonte: https://www.mining-technology.com/wp-content/uploads/sites/8/2017/10/1-silicosis.jpg
Um pulmão de um mineiro com silicose. Repare na caverna enorme no ápice do pulmão direito - é decorrente da tuberculose. A associação entre pneumoconioses e tuberculose é muito comum, e faz parte de uma condição chamada síndrome de Caplan que também inclui artrite. Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/3/31/8.-_Miner%27s_lung_with_silicosis_and_tuberculosis.jpg/1200px-8.-_Miner%27s_lung_with_silicosis_and_tuberculosis.jpg Basque Museum of the History of Medicine and ScienceSpain


Asbestose

"Asbestos" é o nome usado em inglês e em outros idiomas para se referir ao amianto, utilizado em telhas, caixas d'água e materiais à prova de incêndio. O problema é que o amianto é constituído por fibras minerais microscópicas que ficam suspensas no ambiente e podem ser inaladas. Pessoas que inalam grandes quantidades são aquelas que lidam diretamente com a mineração e com a manufatura de produtos que possuem o amianto como base. Elas podem desenvolver fibrose do tecido pulmonar de forma similar à que acontece na silicose, com falta de ar, vulnerabilidade a infecções e repercussões cardíacas de pulmões lesados.
Exame microscópico de um pulmão com asbestose. As estruturas em marrom escuro similares a cotonetes são anfibolas, as fibras de amianto. Em torno delas, as estruturas avermelhadas são granulomas, uma resposta do nosso organismo para tentar isolar e conter o agente agressor.

No entanto, as fibras de amianto têm uma propriedade ainda mais perversa: elas são cancerígenas. Além das formas mais comuns de câncer de pulmão, a exposição crônica ao amianto também está relacionada a um tipo específico e raro de câncer de pleura, o mesotelioma. Por essa razão, a mineração do amianto foi banida em mais de 40 países desde o fim do século XX. No entanto, o Brasil não está na lista. Por aqui, a mineração de amianto ainda é legal, apesar de todas as evidências de seus danos.


Outras pneumoconioses

Como já vimos, mineradores de carvão estão sujeitos à antracose, ou pulmão preto, devido à inalação crônica de micropartículas de carvão. Os sintomas são similares aos da silicose e da asbestose: falta de ar, vulnerabilidade a infecções, problemas cardíacos, quase sempre em caráter progressivo. Um quadro similar envolve trabalhadores das minas de ferro na siderose.
Da mesma forma, trabalhadores da indústria têxtil estão sujeitos à bissinose, causada pela exposição a exotoxinas de bactérias presentes nas fibras do algodão e de outros têxteis. É chamada ocasionalmente de "síndrome da segunda-feira", porque nos lugares fechados onde os materiais são armazenados não há circulação de ar nos fins-de-semana, e os trabalhadores que adentram o local na segunda-feira seguinte inalam o ar contendo toxinas bacterianas produzidas ao longo do fim-de-semana e podem apresentar falta de ar temporária. Se a exposição persistir, suas repercussões podem ser similares às das outras pneumoconioses.
Além das fibras de produtos têxteis, o mofo, o feno e a palha podem causar reações inicialmente alérgicas e evoluir com repercussões pulmonares crônicas em agricultores, levando ao "pulmão do fazendeiro". O mesmo pode ocorrer com resíduos das fezes e das penas de aves no "pulmão do criador de pombos" e com fibras da cana-de-açúcar na "bagaçose". A curto prazo, podem resultar em reações alérgicas similares à asma acompanhadas de dores de cabeça, mas a longo prazo podem causar doença pulmonar obstrutiva crônica. Mesmo os resíduos de unhas humanas podem causar reações similares, devido à queratina ou à presença de fungos nas unhas, apresentando um risco às profissionais que lidam com a limpeza e o embelezamento das unhas.
Por fim, mesmo que não seja uma pneumoconiose, merece uma menção honrosa a exposição crônica à fumaça de fogão à lenha. Por mais inofensiva que pareça, ela pode levar à doença pulmonar obstrutiva crônica - seja na forma de bronquite ou de enfisema - da mesma forma que em fumantes. Pessoas que estão sob risco são justamente aquelas que cozinham em fogão a lenha, em especial onde a ventilação é precária. O acúmulo de fumaça nesses ambientes é um potencial causador de DPOC, e em muitos lugares do planeta é tão importante quanto o tabagismo. Da mesma forma, o trabalho desprotegido com soldas também libera no ambiente uma quantidade de fumaça que pode levar a DPOC se a atividade não for acompanhada do uso de máscaras adequadas e ventilação no ambiente.


A lista de doenças a que as pessoas estão sujeitas a depender de onde e como estão trabalhando é enorme, e seria impossível cobrir tudo em um único texto. Motoristas estão sujeitos a alterações de coluna e a acidentes de trânsito. Encanadores podem contrair leptospirose se em contato com urina de roedores. Trabalhadores que trabalham com atividades repetitivas e em posições desfavoráveis podem desenvolver lesão por esforço repetitivo / distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho. Mergulhadores podem sofrer perfuração de tímpano ou mesmo embolia gasosa. Veterinários e biólogos podem contrair raiva e uma miríade de infecções após mordidas de animais.
Trabalhar pode ser uma fonte de renda, moldar nossa identidade e até oferecer status em algumas situações, mas também pode nos deixar doentes se o trabalho não for realizado obedecendo a algumas medidas de segurança. Com consequências trágicas, e em alguns casos bizarras, como tentei mostrar aqui.

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