segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Coronavírus: além do pânico e da histeria

Desde o fim de dezembro de 2019, notícias sobre uma nova doença surgida na região central da China têm causado preocupação em todo o planeta. O seu causador é o SARS-CoV-2, chamado por muitos veículos de comunicação simplesmente de “coronavírus”. Como em toda epidemia, especialmente quando ela é causada por um agente novo, junto com as notícias verdadeiras tem corrido todo tipo de informação desencontrada e de boato. Dúvidas geram incertezas e incertezas geram pânico. Não sabemos muito sobre esse novo vírus, mas estamos aprendendo mais a cada dia que passa, a cada boletim epidemiológico ou experimento publicado. E mesmo o pouco que sabemos pode nos ajudar muito a quebrar cadeias de transmissão, postular formas de curar a doença e evitar o pânico que as manchetes sensacionalistas costumam alimentar.

O coronavírus, visto através de um microscópio eletrônico. Na imagem colorida artificialmente, pode-se ver a coroa que dá nome ao vírus, em azul. Fonte: https://www.niaid.nih.gov/news-events/novel-coronavirus-sarscov2-images

Comecemos do começo: “coronavírus” não é um único vírus, mas sim uma família inteira. Tal como os flavivírus, que compreendem os vírus causadores da dengue, zika e da febre amarela, ou os retrovírus, que incluem o HIV e o HTLV, os coronavírus são uma família extensa com representantes causando doenças em diversos animais diferentes, incluindo aves e mamíferos. Em comum, possuem um envelope viral que ao microscópio eletrônico dá a eles o aspecto de uma coroa, daí resultando seu nome (corona, em latim). Existem coronavírus humanos, que costumam causar doenças brandas – e inclusive estão entre os mais de cem diferentes vírus causadores de resfriado comum. No entanto, as epidemias recentes causadas por coronavírus mais ameaçadores aos humanos foram causadas por membros da família que vieram de morcegos, e não de humanos.

Os morcegos estão entre os mais críticos hospedeiros de vírus patogênicos, e existem muitos motivos para isso. Alguns deles se alimentam de sangue de outros animais (e eventualmente do nosso), por isso a grande maioria das pessoas os associa à transmissão da raiva. No entanto, os morcegos, mesmo aqueles que não são hematófagos, possuem um conjunto de características que fazem deles excelentes transmissores de muitos outros patógenos, inclusive os vírus Hendra, Nipah e possivelmente Ebola e Marburg. Os vírus Hendra e Nipah, por exemplo, são transmitidos por secreções, principalmente saliva e fezes, de morcegos do sul e sudeste da Ásia e da Oceania que se alimentam de frutas. A primeira dessas características é o enorme número de espécies, mais de 900 (o que significa que, basicamente, uma a cada cinco espécies de mamífero é um morcego), e cada uma delas carrega seu próprio conjunto de micro-organismos associados, principalmente vírus. Além disso, morcegos voam. Pode parecer óbvio, mas esse fato tem grandes implicações: morcegos podem se deslocar por grandes distâncias em um único dia, inclusive tridimensionalmente, coisa que um roedor, um ruminante ou um primata é incapaz de fazer. Outra característica: muitas espécies de morcego são sociáveis, e seus membros dividem o teto das cavernas com outros milhares ou mesmo milhões, chegando a densidades populacionais muito maiores do que qualquer aglomeração humana. Tantos indivíduos confinados em um mesmo ambiente, respirando juntos, trocando secreções (e vírus) formam o cenário perfeito para a disseminação de um patógeno. Agora some isso ao fato de que morcegos voam: indivíduos migram entre uma caverna e outra, percorrendo às vezes dezenas ou centenas de quilômetros, e ocasionalmente levando e trazendo vírus novos de um lugar para outro. Como se não bastasse, algumas espécies de morcego podem viver até vinte ou trinta anos, o que significa que podem entrar em contato com (e transmitir) muitos tipos de vírus diferentes ao longo da vida. Boa parte dessa vida eles passam hibernando, e há indícios de que nesse período o seu sistema imunológico pode não ser capaz de controlar a replicação viral, fazendo que os vírus circulem no sangue durante o período de hibernação. Na realidade, sabe-se muito pouco sobre a imunologia dos morcegos (considerando este parágrafo, provavelmente é um tema mais relevante e interessante do que a imunologia dos porquinhos-da-índia ou das baleias, por exemplo). Quão parecida é a resposta imune dos morcegos contra vírus em relação à nossa? Teriam eles um limiar de atividade imunológica mais elevado, permitindo que vírus se repliquem em seu corpo sem que haja uma resposta inflamatória? Todas as espécies de morcego têm o mesmo padrão de resposta? 

Análise filogenética da família dos coronavírus, mostrando o SARS-CoV e o MERS-CoV em azul, e o coronavírus encontrado em Wuhan, em laranja. A "árvore genealógica" mostra que seus parentes mais próximos são dois coronavírus de morcegos. A imagem está nesse artigo.

Apesar de sua origem nos morcegos, os coronavírus responsáveis pelas epidemias registradas desde o início do século XXI tiveram cada um seu hospedeiro intermediário capaz de funcionar como “amplificador”, e a partir dele a doença “saltou” para os humanos. Foi assim na SARS, surgida no sul da China em 2002, quando o vírus saltou do morcego para a civeta, o mamífero asiático parecido com um gambá de cujas fezes é extraído o valioso kopi luwak. E foi assim na Arábia Saudita em 2012, quando o vírus responsável pela MERS (Middle-East Respiratory Syndrome) saltou do morcego para o dromedário, e dele para humanos. E provavelmente foi assim nos arredores da cidade chinesa de Wuhan no final de 2019, quando um novo coronavírus saltou do morcego para o pangolim, outro mamífero asiático que por sua vez parece uma mistura de tatu com tamanduá cheio de escamas e que está em extinção devido à caça ilegal. O vírus encontrado no pangolim tem um genoma 90% idêntico ao coronavírus responsável pela atual epidemia.
Obs.: na versão anterior deste texto eu havia mencionado que a similaridade do genoma do coronavírus de 2019 com o vírus encontrado no pangolim é de 99%. No entanto, parece que houve equívoco de comunicação dos autores do artigo original. A similaridade de 99% é de um dos trechos do genoma viral. O RNA completo tem similaridade de 90%. O pangolim continua a ser o candidato mais provável a hospedeiro intermediário do SARS-CoV-2, mas a questão se tornou um pouco mais nebulosa.
Mas como esse salto acontece? Ele tem tudo a ver com encaixes. Os vírus são seres extremamente simples, que alguns cientistas inclusive se recusam a classificar como vivos. Isso porque eles são incapazes de se multiplicar sozinhos: precisam invadir uma célula para “sequestrá-la” e usar seus ribossomos para sintetizar novas proteínas virais e material genético para depois juntar os pedaços em vírus novos. Em resumo: um vírus transforma a célula que ele invade em uma fábrica de novos vírus. Só que cada vírus é extremamente específico quanto ao tipo de célula que ele invade. O vírus da gripe só consegue invadir e se multiplicar nas células das vias aéreas, o rotavírus só invade e se multiplica nas células do intestino, e o HIV só invade e se multiplica nos linfócitos T, por exemplo. E além da especificidade quanto ao tipo de célula, existe também especificidade quanto ao hospedeiro. Um vírus que invade as células intestinais humanas geralmente não consegue invadir células intestinais de uma galinha, de um sapo, ou de um peixe, por exemplo. Essa especificidade acontece porque cada célula de cada espécie possui em sua superfície proteínas diferentes com diferentes formatos, e são justamente essas proteínas que os vírus usam para se ancorar, se fixar e invadir as células hospedeiras. As proteínas da superfície de uma célula da mucosa respiratória inferior humana são diferentes das proteínas da superfície de uma célula da mucosa respiratória inferior de outros animais. E essa diferença é maior conforme nos separamos mais dos outros seres vivos na “árvore genealógica” da vida: as proteínas de superfície das nossas células são mais parecidas com as dos macacos do que com as dos camundongos, que são mais parecidas do que as dos répteis, que são mais parecidas do que as das formigas, que são mais parecidas do que as das plantas.
E essas diferenças importam. Isso porque, quando os vírus fazem cópias, nem sempre elas saem perfeitas. Algumas vezes os vírus sofrem mutações, o que é mais comum naqueles vírus cujo material genético é feito de RNA como é o caso do HIV, do vírus da gripe e (adivinhe!) dos coronavírus. A maior parte desses erros de cópia torna os novos vírus incapazes de invadir e se multiplicar em outras células, mas em alguns casos essas mutações podem fazer com que os vírus consigam se encaixar em proteínas um pouquinho diferentes daquelas nas quais eles normalmente se encaixariam. Além de se encaixar e invadir células das vias aéreas de um morcego, uma cópia mutante desse vírus pode invadir também as células das vias aéreas de uma civeta. Ou um dromedário. Ou um pangolim. Uma vez nesse novo hospedeiro, o novo vírus começa a se multiplicar e pode ou não causar doença. Pode ser que nesse novo hospedeiro a quantidade de vírus circulando no corpo (e na saliva, nas fezes e nas outras secreções) seja muito maior do que aquela existente no hospedeiro original, no caso o morcego. Daí esses hospedeiros considerados intermediários – e que costumam ter mais contato com humanos do que os originais – podem acabar agindo como amplificadores do vírus. Pode ter sido esse o caso dos porcos no sul da China quando eclodiu a epidemia da chamada gripe suína: o vírus saltou de aves migratórias para porcos, e deles para os humanos. E pode ter sido o caso da SARS, da MERS e da 2019-CoViD.
Sim, esse é oficialmente o nome da doença, ao menos segundo a OMS desde meados de fevereiro. Significa “2019-Coronavirus-disease”, ou “doença do coronavírus de 2019”. A mudança faz sentido. Antes os artigos se referiam a ela como “doença pelo novo coronavírus”, um nome que pode ficar desatualizado se, digamos, amanhã identificarem um coronavírus ainda mais novo causando doença em outra região do planeta. Também se usava o termo “coronavírus de Wuhan”, mas a Organização Mundial da Saúde tem evitado termos com referências a lugares, a animais ou a grupos de pessoas. Primeiro porque essa denominação pode estar simplesmente errada e amanhã se descobrir, por exemplo, que o vírus que se imaginava ter surgido em Wuhan tenha vindo na verdade de outro lugar (ou o caso da Gripe Espanhola, que não tinha nada de espanhola e só ganhou esse nome porque a Espanha foi o primeiro país a reconhecer que sofria da epidemia, enquanto o resto da Europa suprimia as notícias para que o moral das tropas não se abalasse em plena Primeira Guerra Mundial). Em segundo lugar, uma denominação pode ser estigmatizante e afetar o turismo local por muito tempo, mesmo que já não haja mais novos focos da doença por ali ou se novos focos surgirem em outros lugares.
Obs.: enquanto a doença recebeu o nome de 2019-CoViD, o vírus foi batizado de SARS-CoV-2, que significa “coronavírus da síndrome respiratória aguda grave número 2”, já que a número 1 aconteceu em Hong Kong e nos seus arredores em 2002. 
Em algum momento de 2019, os caminhos de um humano e do SARS-CoV-2 se cruzaram. Como os noticiários propagaram recentemente, esse encontro pode ter ocorrido no mercado de frutos-do-mar de Wuhan, que além de animais aquáticos vendia também outros tipos de animais encontrados dentro e fora da China. E embora as autoridades sanitárias não tenham encontrado nenhum pangolim em seus viveiros, isso pode ser explicado pelo fato de que o animal provavelmente estava muito bem escondido, porque os chineses têm combatido duramente o tráfico desses animais. Ser pego com um pangolim na China pode resultar em dez anos de prisão. Mas isso não detém os contrabandistas, só deixa a carne e as escamas (usadas na medicina tradicional) muito mais caras. No entanto, como veremos mais à frente, o padrão de transmissão do vírus não parece indicar que o seu salto dos morcegos para os pangolins e finalmente para nós humanos ocorreu apenas no mês de dezembro de 2019. O mercado de frutos-do-mar de Wuhan pode ter sido palco de um surto, mas não necessariamente foi a origem da doença.
O anúncio de que os primeiros casos da doença em humanos estavam relacionados ao mercado de Wuhan levou a todo tipo de comentários e reportagens em tom xenofóbico sobre os hábitos alimentares supostamente bizarros dos chineses. Circularam imagens de uma suposta sopa de morcego (que no fim se acabou descobrindo que eram fake news), de um mercado vendendo cobras vivas (que fica na verdade na Indonésia) e mais uma enxurrada de notícias falsas e que alimentaram em alguns casos xenofobia e violência contra chineses e outros asiáticos em diversos lugares do mundo. É verdade que a China volta e meia aparece nos noticiários do Ocidente pelos hábitos alimentares considerados exóticos de alguns de seus cidadãos endinheirados, mas todas as culturas tendem a classificar como exóticos os hábitos alimentares de outros povos. É bom lembrar que considerar a carne de animais exóticos como uma iguaria não é de forma nenhuma uma exclusividade dos chineses. Mesmo no Brasil, a carne de capivara, paca, cotia, tatu ou jacaré é consumida em alguns círculos, e há pessoas que pagam caro para obtê-la, mesmo que (e principalmente se) por meios ilegais. Comer coração e moela de frango ou uma feijoada com orelha, focinho e rabo de porco é corriqueiro por aqui, mas pode chocar pessoas de outras regiões do mundo. Em alguns lugares do Brasil, comer tanajuras (rainhas das formigas saúva) é um hábito comum. No México, grilos fazem parte da culinária local. Na França, restaurantes caros servem lesmas, e na Sardenha come-se queijo coberto com larvas. O conceito de “exótico”, “estranho” ou “nojento” varia muito de lugar para lugar, e tende a incluir apenas aquilo que não é consumido pela população local.

O consumo de animais de caça, em qualquer lugar do mundo, pode colocar humanos em contato com vírus de outras espécies. Cada manipulação de carne ou vísceras de um animal, mesmo doméstico ou de rebanho, é uma oportunidade para um salto de um vírus a partir de uma espécie para o organismo humano. Um pequeno corte na pele pode deixar o patógeno em contato com o nosso sangue e dar origem a uma nova infecção (no meu texto sobre a origem da AIDS, citei essa como a via mais provável de contato inicial entre o vírus da imunodeficiência símia dos chimpanzés e mangabeus e os humanos, dando origem às diferentes linhagens de HIV). No caso dos animais selvagens, a chance de que carreguem consigo uma variedade maior de vírus, ou mesmo que tenham entrado em contato com vírus de outras espécies, é maior.
É pouco provável que o salto do vírus de um pangolim para um humano tenha ocorrido no mercado de Wuhan. No entanto, é possível que algum funcionário do mercado tenha entrado em contato previamente com outra pessoa infectada e tenha ido trabalhar no mercado depois de se infectar. O mercado de animais aquáticos de Wuhan está de fato ligado a um surto (uma pequena epidemia contida em uma área delimitada), e muitos dos primeiros casos registrados tiveram alguma relação com o local. Isso motivou o fechamento do estabelecimento pelas autoridades chinesas no início de janeiro, mas tudo indica que o salto para humanos não aconteceu ali. Segundo um artigo publicado no Lancet, há pelo menos um caso em que os sintomas se iniciaram em 1° de dezembro de 2019 (dez dias antes do primeiro caso surgir no mercado), e que não tem vínculo epidemiológico nenhum com o local - ou seja, não visitou nem consumiu animais vendidos lá.
É possível que tanto o paciente de 1° de dezembro quanto o paciente do mercado tenham entrado em contato com uma pessoa, talvez assintomática. Se continuarmos indo para trás, provavelmente chegaremos ao caso-índice, ou seja, a pessoa que primeiro se infectou - talvez com o contato com um pangolim, não se sabe. No organismo dessa pessoa, o vírus pode ter começado a se replicar e algumas de suas cópias podem ter sofrido mutações que se adaptaram à fisiologia das células humanas. Capazes de se encaixar em receptores das células das vias aéreas (e talvez também do trato gastrointestinal) de seres humanos, essas novas cópias virais passaram a ser transmitidas de uma pessoa para outra. Já não era preciso ter mais pangolins para passar o vírus de novo para as pessoas: o vírus agora conseguia ser transmitido entre seres humanos. Esse é um passo crucial na evolução de uma epidemia, e no caso do SARS-CoV-2 parece ter ocorrido ainda em 2019.
Os primeiros casos dentro de Wuhan podem ter ocorrido de forma silenciosa. Durante o inverno, uma profusão de vírus respiratórios (incluindo os causadores de resfriados e da gripe) costuma acometer as pessoas, o que torna difícil perceber se há algo mais grave acontecendo. Aparentemente, um médico de Wuhan havia percebido um padrão incomum nos casos de síndrome respiratória na cidade no fim de 2019, e reportou o fato para as autoridades. Foi reprimido e perseguido, acusado de alarmismo e de provocar pânico - e posteriormente morreu vítima do próprio coronavírus. Com o passar dos dias, as autoridades sanitárias chinesas perceberam que realmente havia uma nova doença circulando na região de Hubei, especialmente na sua capital Wuhan, uma cidade com 11 milhões de habitantes que fica exatamente na intersecção entre uma linha imaginária vertical traçada a partir de Hong Kong e uma horizontal a partir de Xangai.
Provavelmente o início insidioso da doença permitiu que ela se espalhasse sem chamar tanto a atenção e assim chegasse a outras cidades chinesas, embora a esmagadora maioria dos casos continuasse em Wuhan. As autoridades chinesas provavelmente tentaram esconder ou minimizar a existência dessa nova doença tal como tentaram fazer com a SARS em 2002 (algo bastante típico de regimes autoritários sejam eles de qualquer matiz político-ideológico – a ditadura militar brasileira tentou fazer a mesma coisa com a epidemia de meningite que ocorreu em São Paulo na década de 1970). Afinal de contas, notícias sobre uma nova doença contagiosa prejudicariam muito o comércio internacional, o turismo e as relações econômicas da China – como de fato o fizeram. Mas não deu certo. Quando as autoridades sanitárias chinesas se deram conta de que realmente havia uma nova doença circulando no país e que ela poderia ter efeitos iguais ou ainda maiores que a SARS de 2002, mudaram para o outro extremo: de negar e tentar suprimir as notícias, colocaram a cidade de Wuhan em quarentena. Nada entraria ou sairia da cidade. Houve quem acusasse os chineses de extremo autoritarismo, e houve quem aplaudisse a coragem e a determinação de colocar em quarentena uma cidade de 11 milhões de habitantes. Ambos os lados possuem bons argumentos.
Aos olhos dos chineses, a medida parecia justificável, porque alguns dias depois da eclosão da epidemia ocorreria o Ano Novo Chinês. E o Ano Novo Chinês é simplesmente o maior evento de migração sazonal do planeta, muito maior do que o Hajj muçulmano ou qualquer evento na Índia. Centenas de milhões de chineses viajam no período de festividades para encontrar seus familiares. Pessoas saem de Pequim para Xangai, de Xangai para Macau, de Macau para Xian, de Xian para Tianjin, de Tianjin para Pequim... Se pessoas saíssem em massa de Wuhan rumo às outras cidades da China, a epidemia seria muito mais difícil de ser contida.
Além de isolar a província de Hubei e sua capital Wuhan, os chineses tomaram outra medida drástica que pode ser interpretada como um misto de engenhosidade, audácia e preocupação: ergueram um hospital inteiro, com mil leitos, em dez dias -  usando materiais pré-fabricados e toda a infraestrutura que um gigante como a China tem à sua disposição.
No entanto, só colocar Wuhan em quarentena e construir hospitais não seria suficiente, visto que novos casos já haviam sido detectados em outras cidades chinesas. E se o vírus chegasse a outros países? Por mais gigantesca que fosse a China, ela talvez fosse incapaz de controlar a epidemia sozinha. Por isso, ao contrário do que ocorreu com a SARS em 2002, dessa vez os chineses não ocultaram informações. Todos os boletins epidemiológicos e todas as novas descobertas sobre o vírus têm sido divulgados de forma transparente para o resto do planeta. E não só a China tem adotado essa postura. Todos os trabalhos científicos sobre o SARS-CoV-2 de todos os cantos do planeta estão sendo disponibilizados gratuitamente pelas companhias de publicação científica, em um esforço para difundir e aumentar o conhecimento sobre o novo vírus. Um pequeno lembrete sobre a ciência: ela depende do livre fluxo de informações e do compartilhamento de descobertas sem barreiras ideológicas ou comerciais, porque os cientistas se apoiam uns nos ombros dos outros. 


Foi graças a esse fluxo intenso de informações que conseguimos aprender algumas coisas importantes sobre a nova doença. A primeira delas, que é uma boa notícia, é que ela nem de longe parece ser tão mortal quanto a SARS de 2002. A taxa de mortalidade gira em torno de 2%, embora provavelmente  esse número seja bem menor visto que só pesquisamos a doença nos indivíduos que possuem sintomas, reduzindo muito o denominador da fração. Para efeito de comparação, a SARS matava cerca de 10% das vítimas, e o Ebola pode passar de 50% de mortalidade, tendo chegado a 90% em alguns surtos isolados.
Se a nova SARS parece ser bem menos letal que a primeira, por outro lado ela parece se disseminar com mais facilidade. Pode inclusive ser transmitida enquanto ainda não há sintomas respiratórios, ao contrário do que ocorria com a primeira SARS e a MERS. Acredita-se que ela tenha um R0 em torno de 2 (um número que pode mudar com novos dados). O R0 é basicamente o número de pessoas, em média, que uma pessoa com uma determinada doença acaba infectando. Para efeito de comparação, o sarampo tem um R0 que pode chegar a 18, sendo a doença mais contagiosa que conhecemos, seguida de perto pela coqueluche.

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Uma compilação de dados de letalidade e transmissibilidade (R0) de diversos vírus, feita pelo @vaccinologist no início da epidemia. Naquela época, os dados ainda apontavam para uma mortalidade de 4%, o dobro da que vemos hoje. Os dados da tabela podem ser encontrados em publicações específicas sobre esses diferentes vírus, mas o Dr Melvin Sanicas @vaccinologist fez um belo trabalho em compilar tudo em uma tabela só. Uma tabela com dados semelhantes, mas focada nos coronavírus, pode ser encontrada aqui.

No entanto, esse número sozinho não representa muita coisa. Um R0 de 2 pode significar que cem pessoas transmitem a doença para outras duas pessoas chegando a duzentos casos, ou que dessas cem pessoas noventa e nove não transmitam para ninguém e uma única pessoa, por algum motivo, transmita para outras cem. Na epidemia de SARS em 2002, foram notórios os casos de pacientes atendidos em hospitais e que transmitiram a doença para dezenas de profissionais de saúde. Além disso, o R0 não diz se a transmissão é maior no período assintomático ou nos primeiros cinco dias de sintomas, se é maior entre crianças, adultos ou idosos, etc. Em suma, é um número vazio quando tirado de contexto. Isso não impediu que um epidemiologista de Harvard escrevesse no twitter que "nunca havia visto um R0 de tamanha magnitude" - o que gerou uma onda de alarde e histeria. O post foi retweetado mais de quinze mil vezes em poucos dias.
A facilidade com que o vírus é transmitido sugere que ele já circula entre humanos há mas tempo, possivelmente semanas ou meses do surto no mercado de animais aquáticos de Wuhan. Vírus que saltaram recentemente de animais para humanos têm maior dificuldade de ser transmitidos de uma pessoa para outra, porque não estão tão adaptados às proteínas de superfície das células humanas - seu "encaixe" ocorre com mais dificuldade. Nesses casos, a transmissão do vírus de animais para humanos costuma ter um papel mais importante do que na epidemia que estamos observando agora. Ou seja, não há novos casos sendo adquiridos a partir de pangolins, morcegos ou outros animais. Só houve um único salto para humanos, e ele deve ter ocorrido em uma localidade distante dos grandes centros - caso contrário, veríamos um vírus muito menos adaptado à transmissão entre humanos se espalhando. É possível que o SARS-CoV-2 já tenha circulado em pequenos grupos humanos no interior da China ou em alguma outra região da Ásia, talvez em pessoas que caçam e manipulam pangolins, e que tenha sofrido pequenas mutações pontuais quando saltava de um indivíduo para o outro, tornando-se cada vez mais adaptado ao organismo humano. Uma pessoa infectada pode ter levado esse vírus para os arredores do mercado, ou mesmo para dentro dele. Talvez não houvesse nenhum pangolim no mercado de Wuhan em dezembro de 2019. Uma pessoa infectada com o vírus que saltou para ela a partir de outra pessoa, que o adquiriu de outra pessoa no interior, que o adquiriu de outra pessoa pode ter sido suficiente para iniciar o surto, desde que a primeira pessoa da cadeia tivesse tido contato com um pangolim. Um vírus que sofria mutações e se adaptava à transmissão entre humanos pode muito bem ter sido notado apenas quando chegou a um grande centro onde teve oportunidade de ser transmitido para uma quantidade muito maior de pessoas - pra de lá irradiar pelo mundo em mutações que resultariam em diversas variedades.
A exemplo da SARS e da MERS, a 2019-CoViD é transmitida por via respiratória através de gotículas, o que significa que apenas pessoas que estão em um raio de 2 metros de uma pessoa doente ou em um mesmo ambiente fechado estão sob risco - assim como aquelas que tocarem superfícies contaminadas com secreções ou gotículas. Mas ao contrário de outras doenças virais transmitidas pelas vias aéreas como a gripe, a 2019-CoViD não provoca espirros ou coriza na maioria das pessoas. Seus principais sintomas incluem febre, tosse seca, mal-estar e falta de ar; em alguns casos, eles vêm acompanhados de diarreia e perda de apetite. O vírus parece ter uma preferência apenas pelas células da porção inferior das nossas vias aéreas - ou seja, os pulmões, poupando nariz e garganta. Algumas evidências sugerem que o vírus também tenha afinidade pelas células dos nossos intestinos e seja eliminado nas fezes, fazendo com que o uso de latrinas com jatos de descarga que lançam aerossóis no ambiente seja uma potencial via de contaminação, tanto em locais públicos quanto em domicílios em que uma pessoa tem o vírus, mesmo sem manifestar sintomas. É mais um motivo para lavar as mãos após ir ao banheiro, visto que essas partículas de aerossol podem se depositar sobre superfícies.
Ainda que seja transmitido pelo ar, o vírus não parece sobreviver muito tempo no ambiente. É óbvio que pode sim permanecer em um corrimão ou em uma maçaneta, assim como na pele das mãos de pessoas que acabaram de espirrar ou tossir, tal como outros tantos vírus. Mas não sobrevive por semanas no ambiente, a ponto de ser necessária alguma preocupação com encomendas que vieram da China. Tudo indica que, tal como outros coronavírus associados à SARS, o SARS-CoV-2 sobrevive no ambiente por até 96 horas. No nosso corpo, o período de incubação (o intervalo entre a pessoa adquirir o vírus e desenvolver os primeiros sintomas) parece ser em média 6,4 dias, variando de 2 a 11 - uma informação importante para os muitos países que têm deixado em quarentena aquelas pessoas que vieram recentemente das regiões afetadas.

O quão perigoso é o coronavírus de 2019? Uma análise de todos os casos na província de Hubei (incluindo Wuhan e arredores) até o dia 11 de fevereiro indica que, de 44 mil casos confirmados (total de 72 mil, incluindo suspeitos e diagnosticados clinicamente sem comprovação molecular ou sorológica), houve 1023 mortes, o que dá aproximadamente 2,3% de mortalidade geral. No entanto, esse número variou muito de acordo com a faixa etária e aumentando progressivamente com a idade, com apenas um óbito entre as 965 vítimas de até 19 anos e 208 óbitos entre as 1408 vítimas com mais de 80 anos (o que dá 14,8% de mortalidade nessa faixa etária específica). Em números absolutos, a maior parte dos casos (mais de 80%) ocorreu em pessoas entre 30 e 79 anos. Mais de 90% dos óbitos ocorreram na população acima dos 50 anos. Fatores de risco importante para o óbito foram doenças subjacentes, como diabetes e doenças cardiovasculares, indicando que pessoas com a saúde mais debilitada sofrem mais impacto ao contrair o vírus. Isso contrasta com outros vírus como o da gripe espanhola, que matava preferencialmente adultos jovens e saudáveis.
Quanto à severidade da doença, 80,9% dos casos foram classificados como leves, enquanto 13,8% foram considerados graves e 4,7% foram considerados críticos. Provavelmente um número enorme de pacientes sem sintomas não entrou na conta, mas tudo indica que esses podem transmitir a doença para outros. O número de pacientes graves e críticos pode parecer baixo, mas em uma cidade de 10 milhões de habitantes (considerando o improvável pior cenário, em que todos contraiam o vírus) isso significaria quase 2 milhões de pessoas necessitando de internação hospitalar ou mesmo de um leito de UTI. Nossos hospitais andam já no limite (ou além dele) e não dariam conta de absorver tanta gente, mesmo se considerarmos que esses pacientes não adoecerão todos ao mesmo tempo. Outras epidemias sazonais, como as de gripe, não costumam exigir tanto dos hospitais e do restante do sistema de saúde.
A análise dos casos ao longo do tempo sugere que a epidemia na China está sendo contida, e que as medidas de quarentena e controle estão dando resultado. Nos dias anteriores a 11 de fevereiro, tem havido uma queda importante no número de casos novos. No entanto, a proximidade com o retorno das atividades após o Ano Novo põe a China em alerta, porque a curva pode voltar a ficar ascendente com a maior circulação de pessoas.

Gráfico analisando a evolução do número de novos casos na China ao longo do tempo. Fonte: https://drive.google.com/file/d/1CbsG_zfvOmTWK8rCzr7XM2vSfSV7MpUM/view

Ao mesmo tempo, começaram a surgir novos focos da doença fora da China. Durante todo o mês de janeiro, pouquíssimos casos haviam sido registrados além das fronteiras chinesas, e a maior parte era de chineses ou de pessoas que haviam viajado a Wuhan ou tido contato com pessoas de lá. O primeiro caso no Japão, por exemplo, foi de um guia turístico que havia acompanhado um grupo de chineses vindo de Wuhan. A vigilância nos portos e aeroportos foi redobrada ao redor do planeta. Em relação aos chineses, o restante do mundo tinha uma vantagem: já sabia que havia um vírus novo circulando e poderia tomar medidas preventivas de forma mais eficiente e precoce - compare com os chineses, que quando se deram conta de que havia uma doença nova circulando ela já estava fazendo novas vítimas na casa das centenas em Wuhan e se espalhando para outras cidades.
Só que isso tem mudado nos últimos dias. Novos surtos da doença (pequenas epidemias contidas em uma região limitada) têm ocorrido em países como Japão, Tailândia e Singapura, e recentemente também na Coreia do Sul, na Itália e no Irã, com dezenas ou centenas de casos (a Coreia do Sul já contabiliza mais de mil). Passageiros de um navio de cruzeiro rumo ao Japão começaram a apresentar sintomas e, apesar de o navio ter sido colocado em quarentena com todos os passageiros confinados em seus quartos, o navio já tem registradas quase setecentas pessoas com o vírus - com três óbitos. Por sorte, os números nesse navio têm se mantido estáveis nos últimos dias, sem novos casos.
A Organização Mundial da Saúde elevou o nível de alerta em relação ao SARS-CoV-2, o que simplesmente quer dizer que a situação deve ser analisada com atenção, tal como a epidemia de zika em 2015 e a do sarampo em 2018/2019. Você pode acompanhar em tempo real o número de casos registrados de doença pelo coronavírus de 2019 aqui.
Embora a OMS não tenha ainda declarado que estamos diante de uma pandemia (definida pela transmissão sustentada da doença em diferentes continentes), tudo indica que isso ocorrerá em breve. O aumento no número de casos no norte da Itália indica que já há um foco de transmissão sustentada na Europa - ou seja, independente de pessoas vindo da China. O que mudará com a declaração da OMS dizendo que há uma pandemia de 2019-CoViD? Na prática, pouquíssima coisa. As medidas de rastreio e vigilância nos portos e aeroportos permanecerão as mesmas e serão estendidas para outros países, como já tem sido recomendado). O crescimento da lista de países com transmissão local na definição de caso suspeito obviamente torna o rastreio mais difícil, porque uma quantidade maior de aviões e navios precisa ser monitorada e rastreada. Assim que a OMS declarar que estamos testemunhando uma pandemia, os jornais lançarão manchetes apocalípticas de todos os tipos, mas é bom lembrar que também tivemos pandemias recentes de influenza H1N1 (2009) e zika (2015). Sobrevivemos a todas e continuamos aqui, firmes e fortes. A pandemia desse coronavírus não terá sido a primeira, e tampouco será a última.
Nos casos fora da China, chama a atenção a mortalidade sensivelmente mais baixa do que no país de origem da epidemia. No Japão e na Coreia do Sul, a mortalidade não chega a 1%. Um número proporcionalmente elevado de óbitos tem ocorrido no Irã (139 casos com 19 óbitos, dados de 26/02), mas provavelmente os iranianos estão deixando passar muitos casos. Singapura e Tailândia têm dezenas de casos, mas ainda não registraram óbitos. É possível que a letalidade da doença seja realmente menor que 1% e que muitos casos na China não tenham sido contabilizados porque as pessoas contraíram formas leves ou mesmo assintomáticas da doença e se recuperaram rapidamente. Contabilizar esses casos - como tem ocorrido nos outros países em relação a cidadãos que voltam das regiões afetadas dentro e fora da China - acaba aumentando o denominador da fração e portanto diminuindo a proporção de óbitos. Quantos casos assintomáticos ocorreram sem ser detectados na China, no entanto, é algo que só pode ser discutido por especulação. Também é possível que esse número baixo reflita uma mortalidade menor nos primeiros dias de sintomas, e que ela aumente com a progressão da doença. Caso isso seja verdade, veremos um aumento no número de óbitos nesses países nos próximos dias. Estudos anteriores indicam que, em média, o intervalo entre o início dos sintomas e a necessidade de admissão da pessoa na UTI por piora clínica é de 10,5 dias.

Devemos ficar preocupados com o coronavírus de 2019? Sim. É uma doença que, como tudo indica, circula entre humanos há relativamente pouco tempo e ainda é pouco conhecida. A vigilância nos portos e aeroportos sobre as pessoas vindo dos países afetados e de seus contactantes é justificada pelo potencial de transmissão da doença, principalmente em pessoas que ainda não desenvolveram sintomas.
Devemos entrar em pânico, estocar mantimentos, saquear lojas e proclamar que é o fim da Humanidade (como alguns temem e provavelmente outros desejam)? Não. Apesar do potencial de transmissão do vírus e das consequências que uma pandemia pode trazer (dificuldade para realizar viagens internacionais, proibição de eventos que envolvam grandes aglomerações), a mortalidade da doença é baixa - 2% no máximo, talvez menos de 1%. A grande preocupação é se os nossos serviços de saúde darão conta da demanda.
No dia 25 de fevereiro foi anunciado o primeiro caso da doença no Brasil, em um brasileiro de 61 anos que esteve no norte da Itália e retornou no dia 21. Procurou o Hospital Israelita Albert Einstein queixando-se de febre, coriza, tosse seca e dor de garganta. O segundo exame confirmando a positividade foi liberado pelo Instituto Adolfo Lutz na manhã do dia 26. O paciente está em bom estado geral, sem necessidade de internação, e foi orientado a permanecer em casa. Os serviços de vigilância epidemiológica agora tentam contatar as pessoas com quem ele esteve em contato ou de quem esteve próximo no voo de volta e após chegar ao Brasil. O que isso muda nas nossas orientações? Nada. Os cuidados que devemos ter a partir de agora são os mesmos que já tínhamos que manter antes, e a vigilância nos portos e aeroportos continuará a trabalhar para que outros casos sejam identificados e isolados a tempo. O grande objetivo é evitar que haja transmissão sustentada do vírus dentro do Brasil, como tem ocorrido na Itália, na Coreia do Sul e no Irã. Caso isso aconteça, é possível que atividades escolares e universitárias sejam suspensas e algumas empresas adotem modalidades de trabalho domiciliar. Pode ser que a vida sofra alguns transtornos, mas nem de longe essa epidemia tem potencial para colocar fim à espécie humana.
Além disso, quando focamos muito nossa atenção no coronavírus de 2019, esquecemos que há outras ameaças que nos rondam, algumas delas tão ou mais sérias do que o vírus que se espalha a partir da China. No ano de 2019, segundo a OPAS, a América Latina teve 2,7 milhões de casos de dengue, sendo que 2 milhões foram no Brasil. O Ministério da Saúde contabiliza um número menor, cerca de 1,5 milhão, mas que ainda assim apresenta um aumento de quase seis vezes em relação a 2018. O número de mortes também aumentou, e tudo indica que 2020 deverá ter números iguais ou até maiores que os de 2019. O mesmo vale para outros países. Até o momento (26/02/2020), os EUA possuem 57 casos confirmados de 2019-CoViD, e nenhum óbito. Mas tiveram algo entre 29 e 41 milhões de casos de gripe, com algo entre 13 e 19 milhões de visitas a unidades de saúde, 300 a 500 mil internações e 16 a 41 mil óbitos. Isso tudo considerando que existe uma vacina para gripe, embora ela tenha como objetivo proteger as pessoas apenas das variedades potencialmente mais graves.

Um dos motivos que traz preocupação para a maioria das pessoas em relação ao coronavírus de 2019 é o fato de que ainda não dispomos de vacinas nem de um tratamento eficaz contra ele. É claro que diversos laboratórios e hospitais pelo mundo estão correndo atrás disso nesse exato momento, mas muito provavelmente não teremos uma solução imediatamente. A companhia farmacêutica Gilead está realizando experimentos com uma medicação chamada Remdesvir, que teve sucesso em evitar a replicação viral em macacos com MERS (embora tenha feito o mesmo em macacos com Ebola mas isso não se traduziu em melhora clínica em humanos). Outros arriscam tratamentos com medicações  antivirais já existentes, testando se possuem efeito sobre o novo vírus. Protocolos de diferentes hospitais incluem o uso (isoladamente ou em combinação) de drogas como Ribavirina, um antiviral com ação sobre diversas variedades de vírus incluindo o da hepatite C; Oseltamivir (Tamiflu), a droga mais usada para tratamento de gripe; e Lopinavir-Ritonavir (Kaletra), um antirretroviral que até pouco tempo atrás fazia parte dos esquemas de tratamento do HIV. Todos esses vírus têm algo em comum com os coronavírus: possuem material genético feito de RNA, o que pode significar que algumas dessas medicações realmente tenham efeito sobre ele. Alguns afirmam que até mesmo drogas contra o protozoário causador da malária, como a Cloroquina, podem ter algum efeito sobre o vírus. Médicos de um hospital na Tailândia afirmam que conseguiram melhorar sensivelmente a condição clínica de uma paciente chinesa com o uso de Kaletra e Tamiflu em altas doses, mas ainda não temos estudos maiores comprovando a eficácia desse esquema. Ou seja, ainda não podemos dizer que foi encontrada uma cura.
Qualquer outro esquema propagado como "cura" para o coronavírus deve ser encarado com uma boa dose de ceticismo, visto que nem os laboratórios mais à frente nas pesquisas apresentaram uma droga ou combinação de drogas com resultados convincentes. Especialmente quando esses esquemas proclamarem que "melhoram a imunidade" com vitaminas ou algo parecido. Muito provavelmente, quem adquirir alguma dessas "fórmulas milagrosas" estará jogando dinheiro fora. A imunidade é algo complexo demais para ser reduzida a fenômenos como "aumentar" ou "diminuir". Existem de fato situações em que a imunidade de um indivíduo está realmente baixa, como nas pessoas com AIDS, naquelas que receberam quimioterapia ou transplantes ou nas que precisam usar altas doses de anti-inflamatórios como corticoides por causa de doenças auto-imunes. Para essas pessoas, temos medidas para aumentar a imunidade. Para todas as outras, alcançamos resultados muito melhores orientando boa alimentação, sono regular e adequado e atividades que reduzam o estresse do que por meio de medicamentos ou vitaminas.
Quanto ao desenvolvimento de uma vacina, o primeiro passo já foi dado. Cientistas na Austrália e no Japão conseguiram isolar o vírus e agora correm atrás de uma vacina. Entretanto, as próximas etapas não podem ser feitas de modo apressado e atropelado. Uma vez desenvolvida uma vacina, ela precisa ser testada - primeiro em pequenos grupos de voluntários, depois em grupos maiores. O objetivo é tentar responder a algumas perguntas muito importantes: é realmente eficaz? Qual a dose da vacina que é suficiente para proteger um indivíduo? Pode ser aplicada de uma única vez ou precisa de reforços após alguns meses? Tem efeitos colaterais? É segura em crianças, gestantes e pessoas com imunidade muito baixa? Protege por quanto tempo? Só depois de responder a essas perguntas a produção da vacina pode atingir escalas maiores e finalmente chegar à população. Isso exige pelo menos alguns meses de pesquisa, o que significa que só em meados do segundo semestre teremos uma vacina disponível, no mínimo.

Até lá, o que podemos fazer para nos proteger do coronavírus? As recomendações são as mesmas em relação a quaisquer outros vírus de transmissão respiratória: higiene e cuidados pessoais. Proteger as mãos com um lenço descartável ao tossir e espirrar, ou usar a fossa cubital (a dobra do cotovelo). Higienizar bem as mãos sempre (com água e sabão ou álcool gel), principalmente após ir ao banheiro, tocar superfícies ou as mãos de outras pessoas e antes de comer. Higienizar também os celulares, algo que muita gente esquece, porque sua superfície pode carregar vírus (e bactérias, e outras coisas). Evitar levar as mãos aos olhos, nariz e boca, já que são mucosas nas quais o vírus pode penetrar e infectar. Evitar o contato com aglomerações e contato próximo com pessoas doentes. Aglomerações devem ser evitadas principalmente se você estiver doente. Esses cuidados com a higiene devem ser redobrados nos aeroportos, e viajar para as regiões mais afetadas pode não ser uma boa ideia. O uso de máscaras não é recomendado para se proteger do coronavírus - mas é importante que ela seja usada se você estiver doente (para não transmitir para os outros) e principalmente se você for um profissional de saúde, potencialmente exposto a pessoas portando o vírus. Segundo o Ministério da Saúde, pode ser a máscara cirúrgica, embora para procedimentos que envolvam aerossolização (intubação orotraqueal, escarro induzido) os profissionais de saúde envolvidos devam utilizar máscara N95.
Outra medida importante é a vacinação contra outras doenças respiratórias. No Hemisfério Norte é inverno, e doenças respiratórias são mais comuns nessa época. Muitas delas, como a gripe e os resfriados, podem causar sintomas indistinguíveis daqueles relacionados ao coronavírus. Doenças respiratórias preveníveis através de vacinas, como a gripe e o sarampo, podem sobrecarregar o sistema de saúde e dificultar o atendimento a pessoas com a 2019-CoViD. Além disso, precisar ir ao pronto-socorro por causa de uma gripe ou de sarampo pode não ser uma boa ideia em plena epidemia de coronavírus, porque prontos-socorros são aglomerações e o paciente sentado do seu lado pode transmitir o vírus para você. Ou seja, quanto mais protegido contra outras doenças você estiver, menos exposto você estará.

Outra medida importante é ficar atento às notícias e evitar consumir materiais sensacionalistas ou alarmistas. A mídia tradicional não tem feito um bom trabalho na hora de noticiar a epidemia e frequentemente usa termos como "vírus mortal" para se referir ao SARS-CoV-2. Ele não é tão mortal quanto muitos outros vírus, e manchetes assim só contribuem para disseminar o medo. Mas algumas fontes têm propositalmente difundido fake news, tanto para conseguir views quanto por servir a propósitos conspiracionistas mesmo. Correram histórias de que o novo coronavírus tinha sido desenvolvido em laboratório e a prova disso era que havia em sua superfície proteínas similares às do HIV. Fato desmentido porque as tais proteínas eram similares às de diversos outros vírus inclusive o da SARS e o da MERS (ou seja, seria como dizer que nós humanos somos parentes próximos das aves porque temos sangue quente, ignorando nossa proximidade ainda maior com o restante dos mamíferos). As análises filogenéticas de seu RNA permitem que o encaixemos muito bem na família dos coronavírus e afirmemos com segurança que ele surgiu de outro coronavírus de forma natural, sem nenhuma intervenção humana. E convenhamos: um indivíduo que tem o objetivo de acabar com a espécie humana e para isso desenvolve um vírus que tem menos de 2% de mortalidade deve ser bastante incompetente.
Em tempos de redes sociais, a higiene da informação é tão importante quanto a higiene física de lavar as mãos e evitar tocar nas próprias mucosas. Informe-se através de fontes confiáveis, e mesmo assim desconfie se uma informação veiculada for bombástica demais. Cheque as fontes, confira se determinada notícia está sendo veiculada em diferentes portais de notícias, de preferência internacionais. Para dados mais específicos sobre o vírus, dê preferência para publicações e artigos de revistas como a Nature e a Science (para dados moleculares) e o JAMA, British Medical Journal, New England Journal of Medicine e Lancet pra publicações médicas. Ao escrever este texto, tentei me restringir a publicações dessas fontes e de outras confiáveis como o CDC, o Ministério da Saúde e o site da Johns Hopkins que monitora os casos em tempo real, lançando mão de notícias de portais da grande mídia apenas quando não havia outra alternativa. É importante tomar cuidado com as redes sociais para não se deixar levar pelo hype do medo e da histeria para os quais somos direcionados o tempo todo. Precisamos pensar duas vezes antes de clicar em compartilhar ou retweetar as informações que chegam até nós. Mais uma vez: precisamos nos preocupar com o coronavírus, mas da mesma forma com que nos preocupamos com a dengue, a gripe ou o sarampo. Não precisamos cancelar compras internacionais só porque vieram da China e muito menos agir de forma hostil com chineses e outros asiáticos, como já ocorreu aqui no Brasil. Há 1,3 bilhão de pessoas na China, e apenas 78 mil casos incluindo confirmados e suspeitos. Isso representa 0,006% dos chineses, e você pode dobrar esse número pensando nos assintomáticos que mesmo assim a proporção continuará ínfima. E se surgirem outros casos de transmissão em outros países? Trataremos com hostilidade também os italianos, coreanos, iranianos e japoneses? Rastreio e vigilância são coisas completamente diferentes de hostilidade e xenofobia, é bom esclarecer. Uma coisa não justifica a outra.
Por ora, o que podemos fazer é seguir as recomendações já descritas e ficar atentos às notícias das fontes confiáveis. Tudo indica que a quantidade de novos casos na China está de fato caindo, o que é animador. Por outro lado, os novos números no Irã, na Itália e na Coreia do Sul trazem preocupação. É possível que a doença se espalhe por outros países e que novos casos cheguem ao Brasil. Agora que a doença chegou em terras brasileiras, devemos estar preparados. E não só para identificar e isolar contactantes e para adotar e incorporar aquelas medidas simples de higiene e biossegurança em nossas vidas (como lavar e higienizar as mãos com frequência, usar lenços descartáveis e evitar tocar mucosas), mas também para evitar que o pânico e a histeria com um vírus que tem menos de 2% de mortalidade causem muito mais impacto sobre as nossas vidas do que ele próprio.

Em tempo: este texto foi escrito em 24 de fevereiro de 2020, muito antes do desenrolar de importantes eventos ligados à epidemia. Meu texto mais recente sobre o assunto foi escrito 3 semanas depois: http://papirosgermesefoguetes.blogspot.com/2020/03/com-o-avanco-da-doenca-desde-o-final-de.html

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