Vocês se lembram do meu post anterior sobre a importância da
imunidade celular contra o SARS-CoV-2? Pois bem, pesquisadores do mundo todo
começaram a fazer experimentos para estudar a resposta dos nossos linfócitos T
contra o vírus. Pegaram linfócitos T de pessoas que já tinham tido CoViD-19 e
de pessoas que nunca tiveram a doença para comparar como as células desses 2
grupos de pessoas se comportam na presença do SARS-CoV-2.
Como era de se esperar, os linfócitos T de quem tinha tido
CoViD-19 antes reconheceram o vírus, do jeito que o estudo da semana passada
previu e indicando uma imunidade celular forte. Só que quando foram avaliar os
linfócitos T dos indivíduos que nunca tinham tido CoViD-19, perceberam que em algo
em torno de 20 a 50% das pessoas os linfócitos T também respondiam ao vírus de
forma vigorosa, como se já se lembrassem dele. Mas como, se nunca tinham se
deparado com ele antes?
Uma hipótese: será que os linfócitos T dessas pessoas
estavam respondendo ao SARS-CoV-2 porque ele se parecia com algum outro vírus
com o qual elas já haviam entrado em contato?
Os coronavírus são uma família. 3 deles já causaram
epidemias: SARS-CoV em 2002-2003, MERS-CoV em 2012 e agora SARS-CoV-2. Mas além
deles, temos outros 4 que causam resfriado: OC43, 229E, NL63 e HKU1. Até 2002
esses 4 eram os únicos coronavírus conhecidos capazes de afetar humanos, e não
passavam de curiosidade médica. Figuravam entre as mais de uma centena de
possíveis agentes do resfriado comum, ao lado do vírus sincicial respiratório,
parainfluenza, rinovírus, adenovírus, metapneumovírus e outros tantos. Eram tão
insignificantes que ninguém jamais se preocupou em dar a eles um nome decente.
Devido ao seu parentesco, esses 4 vírus possuem algumas proteínas
muito parecidas com as do SARS-CoV-2. E esse estudo indicou que quanto maior a
semelhança entre essas proteínas, maior a chance de um linfócito T reconhecer e
atacar. É como se o linfócito T que já entrou em contato com um desses 4
coronavírus olhasse para a proteína da superfície do SARS-CoV-2, pensasse “eu
já vi isso antes e é um invasor” e montasse uma resposta celular mais forte e
mais rápida. Aparentemente, esse tipo de reação cruzada ocorre com muito menos
frequência com anticorpos (resposta humoral), porque eles são muito mais
específicos.
Se o linfócito T ataca rápido ainda na primeira fase da
CoViD-19 (a fase de replicação viral), vai ter menos vírus sobrando para
induzir uma resposta inflamatória mais intensa na segunda fase da doença (a
fase inflamatória). Isso pode explicar por que algumas pessoas têm uma doença
mais leve do que outras: pode ser que algum resfriado que ela já teve antes na vida
tenha sido causado por um desses 4 coronavírus. Infelizmente não temos como
testar as pessoas para saber se já tiveram contato com algum deles, já que até
ontem eles eram nota de rodapé de livro.
É uma hipótese plausível, mas precisa ser confirmada por
outros experimentos. Se estiver correta, ela também tem implicações no
desenvolvimento de vacinas, porque não parece ser difícil usar um vírus
parecido com o SARS-CoV-2 para fazer nosso corpo montar uma resposta celular
robusta e precoce contra ele. E é possível que pessoas que tiveram SARS e MERS
também tenham alguma proteção contra formas graves de CoViD-19. Isso ajudaria a
explicar por que países do leste da Ásia que foram duramente afetados pela SARS
em 2002 e 2003 estão conseguindo controlar melhor a disseminação do vírus do
que o resto do mundo. Obviamente esse não é o único fator. As medidas de
controle como uso de máscaras e isolamento social estão sendo feitas (e
obedecidas) de forma mais séria lá do que aqui.
E novamente, é uma hipótese.
De qualquer forma, é mais uma boa notícia. E mostra que aos
poucos estamos começando a entender como a imunidade contra esse vírus
misterioso funciona.