quarta-feira, 29 de julho de 2020

Quem teve CoViD-19 pode adoecer de novo?


"Tive CoViD-19 há alguns meses e não tenho mais IgM e IgG. Tenho imunidade baixa? Estou correndo risco?"

A reinfecção pelo SARS-CoV-2 é possível, mas não é comum. E até o momento não parece ter relação com a capacidade de produzir anticorpos ou não.
O nosso sistema imunológico é extremamente complexo, e não pode ser reduzido a anticorpos. Na verdade, ele tem 3 componentes principais, que interagem entre si e atuam em conjunto:
  • 1-  Imunidade humoral: composta principalmente pelos linfócitos B, que produzem anticorpos (proteínas capazes de aderir aos micro-organismos de forma específica e dificultar sua atividade). Existem anticorpos de diferentes classes: os IgM costumam surgir primeiro e circular por tempo limitado, enquanto os IgG tendem a surgir um pouco depois e permanecem por muito mais tempo. Como circulam no plasma e não conseguem entrar nas células, servem basicamente para combater patógenos extracelulares. Existem também IgE, IgA e IgD.
  • 2-  Imunidade celular: macrófagos que devoram bactérias e fungos, exércitos de neutrófilos, células dendríticas que dizem aos linfócitos B quais anticorpos produzir, linfócitos T que matam células infectadas por vírus ou que dão sinal para que outras células ataquem, tudo isso faz parte da imunidade celular. Ao contrário do componente humoral, ela consegue destruir patógenos que se abrigam no interior das células, como protozoários, fungos e vírus.
  • 3-     Sistema complemento: composto por proteínas que são capazes de, dentre outras coisas, atrair células do sistema imunológico para o local da infecção ou mesmo abrir buracos na parede dos micro-organismos. No início era considerado apenas um sistema complementar aos outros dois (daí o nome), mas hoje sabemos que é uma força importante por si só.

Há pessoas que têm uma imunidade celular mais forte e humoral mais fraca, enquanto outras têm uma imunidade humoral mais forte, outras têm os três sistemas funcionando muito bem, e outras nem tanto. Em grande parte, isso é determinado pelos nossos genes.
Quando pedimos sorologias IgM e IgG para determinada doença, estamos avaliando apenas a imunidade humoral, sem enxergar a imunidade celular ou o sistema complemento.
Quando falamos de CoViD-19, a coisa fica ainda mais complicada. Os anticorpos se comportam de forma bizarra (IgG surgindo antes de IgM, pessoas se recuperando sem produzir nenhum dos dois tipos, IgM e IgG permanecendo no sangue por poucos meses, etc), e ainda estamos tentando entender o motivo. Muitas pessoas que tiveram CoViD-19 confirmada por PCR dosaram anticorpos 2 ou 3 meses depois e o resultado veio negativo. Estão elas mais vulneráveis?
Não necessariamente! Segundo um estudo que saiu recentemente na revista Nature, a imunidade humoral parece ter pouca importância para a CoViD-19. Olhar para os anticorpos não nos permite tirar conclusões. A imunidade celular, nesse caso, parece ser muito mais importante.
A boa notícia: pessoas que tiveram infecção pelo SARS-CoV-1 em 2002 e 2003 mantêm uma resposta celular robusta contra o vírus mesmo 17 anos depois! E tudo indica que o mesmo ocorre com seu primo, o SARS-CoV-2. Mesmo pessoas que tiveram CoViD-19 mas não possuem mais anticorpos têm uma resposta celular intensa contra o vírus. Ou seja, têm uma resposta celular boa mesmo que a humoral não seja lá essas coisas.
Aparentemente, somente pessoas que por alguma razão genética não conseguem montar uma resposta imune celular adequada estariam suscetíveis a uma reinfecção pelo SARS-CoV-2. Por isso a reinfecção é algo possível, mas raro.
O problema: dosar IgM e IgG é fácil. É só analisar os níveis desses anticorpos na circulação. Avaliar a resposta celular, como diria Fernando Vanucci após a Copa do Mundo de 2006, “é muitmazdfícil, ma muitmazdfícil messsssmo!” É algo que hoje só pode ser feito em meia dúzia de laboratórios de pesquisa no Brasil, porque exige avaliar como as células de defesa respondem a um agente agressor. Não temos como fazer isso sob a forma de testes em massa, pelo menos não hoje.
Fazemos uma avaliação muito rudimentar da resposta imune celular no HIV, por exemplo, ao contar quantos linfócitos T CD4 uma pessoa tem circulando no sangue. Mas isso é só uma análise quantitativa, não diz nada sobre se esses linfócitos estão preparados para deter uma infecção ou não. Contra um vírus como o SARS-CoV-2 isso provavelmente não é suficiente.
Mesmo assim, há aplicabilidade prática dessa descoberta: já sabemos que não podemos avaliar a eficácia das vacinas que estão surgindo pela capacidade delas de induzir a formação de anticorpos contra o SARS-CoV-2, porque isso parece ter pouca ou nenhuma relevância em comparação com a imunidade celular.
Ainda temos muito a avançar, mas nesse momento há um monte de gente no mundo todo trabalhando para desvendar esses mecanismos da imunidade celular e para desenvolver métodos práticos para avaliar a imunidade celular contra o SARS-CoV-2.
Em breve teremos novas respostas. E provavelmente novas perguntas também.

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