Em meados do século XIX, a Austrália passava por um novo
ciclo de colonização. O território, que inicialmente era uma colônia penal,
começava a receber mais e mais cidadãos ingleses, escoceses e irlandeses, em
parte devido à descoberta de ouro e em parte pela expansão da criação de gado
até o interior australiano. Um desses colonizadores britânicos era Thomas
Austin, um apaixonado por caça cujo hobby vinha desde a juventude na
Inglaterra. Em dezembro de 1859 ele levou para a Austrália doze casais de
coelhos europeus (Oryctolagus cuniculus)
para que servissem como caça e dessem um clima mais “europeu” à sua propriedade
australiana. Que mal poderia acontecer, não é mesmo? Outros colonos fizeram a
mesma coisa nos anos seguintes, soltando mais coelhos em suas fazendas. Os
pequenos animais já haviam sido introduzidos antes na Austrália, mas para
servir de alimento e, na maior parte das vezes, criados em cativeiro, e por
isso sua população se manteve estável. Depois de Thomas Austin, não mais. Sem
predadores naturais e se reproduzindo livremente no ritmo pelo qual os coelhos
são famosos por se reproduzir, logo sua população explodiu. Dizer que a
situação “saiu do controle” é eufemismo. Em menos de um século, eles já eram
mais de meio bilhão, tornando-se provavelmente o caso mais dramático de uma
espécie invasora em toda a História. Viraram uma verdadeira praga. Competiam
com os marsupiais nativos por alimento, destruíam a vegetação expondo o solo à
erosão, devastavam plantações e pastagens para o gado... A ameaça chegava até
mesmo à acácia, a planta-símbolo da Austrália (e o motivo pelo qual o verde e o
amarelo estão em todos os uniformes de atletas australianos, mesmo que essas
cores não estejam na bandeira do país): os coelhos comiam os brotos dos
espécimes mais jovens e não permitiam que eles se desenvolvessem.
Era preciso conter os coelhos antes que eles acabassem com a
Austrália. Tentou-se de tudo: armadilhas, veneno, cercas de contenção... Nada
funcionou, ou pelo menos não funcionou bem o suficiente para evitar que a praga
se alastrasse ainda mais. Foi então que alguns cientistas, liderados por um
microbiologista australiano chamado Frank Fenner, tiveram uma ideia digna de
filme de apocalipse zumbi: liberar um vírus altamente letal, capaz de eliminar
todos (ou quase todos) os coelhos que infestavam a Austrália. E não só a
Austrália: a Inglaterra e outros países da Europa também enfrentavam problemas
causados por explosões populacionais de coelhos. Vieram buscar no Brasil um
vírus que tinha como hospedeiro natural uma espécie de coelho nativa do cerrado
brasileiro (Sylvilagus brasiliensis),
o mixomavírus. Embora não causasse praticamente nenhum sintoma nos coelhos
sul-americanos (o que era de se esperar para um organismo que é o reservatório natural do vírus), era
devastador contra os coelhos europeus, dando origem a nódulos gelatinosos –
chamados mixomas – que se abriam em úlceras
na pele, nas mucosas e nos órgãos internos, levando à morte em até duas semanas.
Projeções baseadas em estudos de laboratório falavam em 99% de letalidade. Além
disso, o vírus era transmitido através da picada de mosquitos, o que
significava que poderia chegar a populações de coelhos sem precisar de contato
direto entre cada um deles. A introdução dos mosquitos contendo o vírus foi
debatida e considerada polêmica na época, mas ainda assim foi tentada repetidas
vezes na primeira metade do século XX. Por razões provavelmente ligadas ao
clima e à quantidade de mosquitos, a circulação do mixomavírus na Austrália só
ocorreu de fato a partir do início da década de 1950 – e se mantém até hoje.
Mais ou menos na mesma época, também foi introduzido na Europa. Foi um sucesso
estrondoso: na Austrália, a letalidade chegou a 99,8% no primeiro ano, e em
determinados locais mais de 90% dos coelhos morreram (ou seja, com raríssimas
exceções, aqueles que sobreviveram foram os que por algum motivo não tiveram
contato com o vírus). Estima-se que essa primeira
introdução com sucesso do vírus na Austrália, o número de coelhos caiu de 600 milhões para algo como 100 milhões. No entanto, nos anos seguintes a letalidade do mixomavírus foi diminuindo. A
cada ano que passava, uma proporção cada vez menor de coelhos morria em
decorrência do vírus liberado para controlá-los. Alguma forma de resistência
genética ao mixomavírus havia surgido entre os coelhos e se tornado mais comum
por um mecanismo de seleção natural, pensaram os cientistas. Ou seja, ao longo
dos anos os coelhos resistentes sobreviviam e se multiplicavam, tomando o lugar
dos suscetíveis que morriam em massa. Era o que se poderia esperar de uma
adaptação entre um hospedeiro e um micro-organismo, certo?
Análises posteriores indicaram que a causa dessa queda
inicial na taxa de letalidade do vírus realmente estava ligada à seleção
natural. Mas não dos coelhos, e sim do mixomavírus. Os pesquisadores que
acompanhavam a epidemia descobriram que o vírus inicial havia dado origem a
cinco cepas diferentes, que foram denominadas de I a V baseadas em sua
letalidade. A cepa I era a mais agressiva e tinha uma letalidade de 100%,
matando em menos de 13 dias. A cepa II tinha mortalidade entre 95 e 99%,
levando à morte entre 13 e 16 dias. A cepa III, de letalidade mais moderada,
matava entre 70 e 95% dos coelhos, e o fazia entre 17 e 28 dias após o início
da infecção. A cepa IV tinha letalidade entre 50 e 70%, e as mortes ocorriam de
29 a 50 dias depois do contato com o vírus. Por fim, a cepa V era a mais
branda, com letalidade menor de 50% e sem um período específico para as mortes
(não se engane, leitor: 50% de letalidade ainda é muita coisa, e poucas
epidemias na História da espécie humana já chegaram a esse ponto; mas para um
vírus introduzido especificamente para eliminar ou controlar uma espécie, é possível
dizer que 50% de letalidade significa uma letalidade branda). E embora a
circulação da cepa I tenha diminuído com o passar do tempo, não houve aumento
da cepa V – pelo contrário, eles circulavam cada vez menos ao longo dos anos.
Contrariando as previsões daqueles que acreditavam que o vírus diminuiria cada
vez mais de letalidade, a cepa mais prevalente, e que se tornou ainda mais
comum durante o período de estudo, foi a cepa III, seguida da IV. Por que?
Coelhos com as cepas I e II, a mais agressivas, morriam muito rápido – tão
rápido que o período em que conseguiam infectar um mosquito para que ele
transmitisse o vírus a outros coelhos era muito curto. Por outro lado, coelhos
da cepa V viviam bastante tempo, mas suas lesões eram muito pequenas e não havia
uma quantidade suficiente de vírus circulando em seu organismo para que um
mosquito se infectasse e transmitisse a outros coelhos. As cepas III e IV, que
ficavam no meio do caminho, mantinham uma quantidade alta de vírus (não tão
alta quanto no caso das cepas I e II, mas suficientemente altas) circulando por
tempo suficiente para que o mixomavírus chegasse a mais coelhos. Em resumo, a
seleção natural escolheu as cepas mais eficientes em se multiplicar, e não as
mais brandas. E isso não ocorreu apenas na Austrália: na Europa a emergência de
cepas do mixomavírus seguiu um padrão muito semelhante.
Obviamente, após dez ou vinte anos, a seleção natural também
começou a agir nos coelhos, e aqueles que tinham alguma característica genética
que conferia resistência ao vírus foram substituindo os mais suscetíveis, e a
sua população voltou a aumentar – passando de 100 milhões para algo entre 200 e
300 milhões, embora caça, veneno e cercas de contenção tenham ajudado a
controlar a população de lagomorfos também (sim, leitor, essa é uma revelação
bombástica: os coelhos não são roedores, são lagomorfos!). Enfim, a relação
entre micro-organismos e hospedeiros seguiu seu curso natural e um lado
“aprendeu” a tolerar o outro, não é mesmo? Não. A “corrida armamentista” deu uma verdadeira reviravolta e entrou em uma nova fase a partir da década de 1990.
Mutações no código genético do mixomavírus deram origem a uma cepa que era incapaz
de formar mixomas, mas que conseguia diminuir absurdamente a resposta
inflamatória dos coelhos infectados. Uma ótima forma de escapar do sistema
imunológico e continuar se proliferando no organismo do hospedeiro sem a
resposta esperada por parte das células de defesa. Só que, ao diminuir a
resposta inflamatória, o vírus prejudicava também a atividade do sistema
imunológico contra outros micro-organismos, incluindo as bactérias da pele, das
vias aéreas e da microbiota intestinal. Os coelhos começaram a morrer por causa
de uma imunodeficiência grave, com uma queda dramática no número de linfócitos
no baço e nos linfonodos, e com focos de infecção em órgãos como pulmões,
fígado, baço, rins e coração, além de necrose nos linfonodos em torno do
intestino. Sofriam um colapso rápido sob a forma de choque séptico, e apesar da
infecção não desenvolviam febre – o que é compatível com um sistema imunológico
tão fraco que é incapaz de promover uma resposta inflamatória. O mais curioso
(ou bizarro) foi que isso começou a acontecer de forma independente nos coelhos
europeus e nos australianos.
E esse provavelmente não é o fim da história. Nada impede
que alguns dos coelhos tenham alguma característica genética que dificulte ou
compense essa imunossupressão grave causada por essa nova cepa de mixomavírus,
e que sobrevivam a ela voltando a povoar o interior da Austrália e os campos da
Europa – pelo menos até a próxima etapa dessa corrida armamentista cheia de
reviravoltas. No fundo, tanto os coelhos quanto o vírus estão tentando seguir à
risca o que fazem todos os seres vivos deste planeta: sobreviver, gerar descendentes e perpetuar
sua linhagem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário