sábado, 8 de setembro de 2018

Sobre vida e morte

Uma senhora de setenta e poucos anos jazia sobre o seu leito no hospital, e sua vida parecia ir embora aos poucos. O câncer de colo de útero havia sido diagnosticado tarde demais para qualquer possibilidade curativa, já invadindo os tecidos em volta. E sangrando. A anemia e o tumor a consumiam e a deixavam ainda mais magra do que seria esperado para uma mulher hupda – uma etnia reconhecida pelo biótipo pequeno, magro e que um desavisado chamaria de frágil se não soubesse que os hupdas são nômades, não praticam a agricultura e vivem no meio da selva amazônica com o mínimo contato possível com a civilização ocidental. Do outro lado do quarto, seu filho a observa ir embora. Calmo e sereno, apesar de triste, e aceitando a partida de sua mãe como se soubesse que o desfecho é inevitável.
A cena, que presenciei ainda no primeiro mês de trabalho como médico no único hospital de São Gabriel da Cachoeira, no interior do Amazonas, causou-me profunda estranheza. A naturalidade e a passividade com que aquele filho aceitava a morte da mãe ia contra tudo o que eu, recém-saído da faculdade e sem noção nenhuma de terminalidade ou cuidados paliativos, havia aprendido até então. “Salvar vidas”, “lutar até o último momento”, “vencer a morte”, não é isso o que os médicos fazem? Aquele lugar e aquelas pessoas pareciam querer me ensinar outra coisa...
Poucos dias depois, deparei-me com uma cena parecida. Um senhor idoso, também internado em minha enfermaria, era acompanhado e observado por uma das filhas, que surpreendentemente também mantinha a mesma calma, a mesma naturalidade diante do pai doente, como que já aceitasse a chegada da morte. Mas havia uma diferença em relação à senhora que morrera dias antes: ele não estava com um câncer invasivo ou metastático que invariavelmente evoluiria para a morte. O que ele tinha era uma pneumonia, facilmente reversível com algumas ampolas de ceftriaxone. Em poucos dias ele estava melhor, sem o cateter de oxigênio preso ao rosto, e pronto para voltar para a comunidade de onde viera, algumas dezenas de quilômetros Rio Negro acima.
Esses dois casos, e muitos outros que se seguiram, me fizeram pensar que a forma como nós ocidentais encaramos a morte não é a única possível. Culturas diferentes encaram a morte, um fenômeno universal, de formas diferentes. Temos o direito de julgar a suposta passividade e calma com que os indígenas aceitam a partida de seus entes queridos, chamando-os de primitivos e insensíveis? A forma como eles vivem e como enxergam a morte é fruto de milhares de anos de adaptação a um ambiente que, ao contrário do que podem pensar alguns, é tudo menos idílico, paradisíaco e perfeito. A vida na selva é dura, exigente e cheia de perigos – garanto que quem chama esses povos de primitivos não sobreviveria mais do que dois ou três dias no meio da floresta, ao contrário do que eles próprios fazem. Em uma aldeia, um idoso doente não raro se enxerga como um fardo, e prefere se isolar dos filhos e do resto da comunidade, como que liberando-os para que continuem a viver suas vidas. E os próprios filhos e companheiros estão acostumados a isso, porque é o ciclo da vida, não importa se ele acabe por uma pneumonia ou por um câncer apesar dos esforços dos pajés. O que acontece quando, depois de milhares de anos vivendo e morrendo dessa forma, essas pessoas são levadas para um local recluso onde são tratadas com métodos que elas desconhecem, permanecem deitadas em camas duras e não nas redes às quais elas são acostumadas, e são vistas diariamente por pessoas que não enxergam a morte da mesma forma que elas?
Não quero em momento nenhum rejeitar ou negar os avanços que conquistamos nos últimos séculos, como tem feito um número cada vez mais alarmante de pessoas que voluntariamente aceitam expor seus filhos a doenças mortais não permitindo que eles sejam vacinados, por exemplo. A ciência ocidental é a grande responsável por chegarmos hoje vivos e saudáveis aos setenta, oitenta ou noventa anos. Vacinas, antibióticos, raio-X, exames de laboratório, técnicas cirúrgicas, conhecimento da fisiopatologia das doenças, microscópios e saneamento básico salvaram muitas vidas, e temos o dever como brasileiros de garantir que esses recursos mudem também a vida de outros brasileiros nos interiores deste imenso país. Mas talvez esses avanços todos tenham feito com que nos sentíssemos mais poderosos do que realmente somos e perdêssemos o rumo de vez em quando. Porque apesar de fantástica e avançando a cada dia, a Medicina tem seus limites. Há batalhas que não se pode vencer. 
Infelizmente, não é o que ensinavam nas faculdades há bem pouco tempo atrás. A aplicação de todos os recursos disponíveis para prolongar a vida a qualquer custo era ensinada como o certo a ser feito, não importando o conforto do paciente. Os rins pararam? Coloquemos o paciente em uma máquina de diálise que os substituirá. Os pulmões já não são suficientes? Um tubo orotraqueal e um ventilador mecânico podem garantir que eles funcionem melhor. O coração e os vasos já não conseguem fazer o sangue chegar a todo o corpo adequadamente? Drogas para aumentar a pressão e fazer o coração bombear com mais força resolverão o problema. Mas caímos no erro de esquecer a pessoa que é dona daqueles rins, daqueles pulmões e daquele coração. Ela gostaria de estar ali? Cada agulhada para colher exames causa dor, cada infusão de dieta por uma sonda nasoentérica encharca o corpo e dificulta a respiração. Todo esforço é louvável quando essas medidas são tomadas em situações onde a doença é reversível – uma infecção séria, uma desidratação severa, uma doença cardíaca ou pulmonar que pode ser controlada com as doses certas dos remédios certos. Mas às vezes nos deparamos com doenças que não são reversíveis, doenças cuja solução depende de recursos que infelizmente não estão disponíveis, ou doenças que levam a uma dor e a um sofrimento tão grandes que o melhor a fazer é controlar os sintomas e garantir que a doença siga seu curso de uma forma digna para o paciente. Um câncer com metástases por todo o corpo, uma doença pulmonar obstrutiva crônica tão grave que não pode ser compensada mesmo com todos os recursos disponíveis, uma queimadura em mais de noventa por cento do corpo levando a dores terríveis que nem as mais altas doses de morfina são capazes de controlar. Há situações em que prolongar a vida artificialmente significa prolongar sofrimento, e o melhor a fazer é controlar a dor, a falta de ar, os vômitos e deixar que o paciente tenha uma morte tranquila, sem exames desnecessários, sem agulhadas desnecessárias.
Hoje cada vez mais pessoas deixam claro de alguma forma o que chamamos de “diretrizes antecipadas”. “Não quero morrer sofrendo”, “não quero que me intubem ou que façam diálise se eu estiver terminalmente doente”. “Prolongar a vida” está dando lugar a “viver com mais dignidade os últimos momentos de vida”, e a ideia de cuidados paliativos gradualmente tem ganhado força nas faculdades de Medicina. Prolongar desnecessariamente o sofrimento é hoje um ato passível de punição pelo Código de Ética Médica, e até ganhou um nome: distanásia. Nossa população tem envelhecido, e a discussão sobre terminalidade e finitude da vida é mais do que necessária se quisermos viver melhor. Estamos aceitando nossos limites, ainda que nós, sejamos médicos ou familiares e companheiros de pacientes, às vezes pensemos que “podemos prolongar a vida um pouco mais” sem pensar no sofrimento que inevitavelmente virá junto. Há batalhas que não podem ser vencidas, e saber reconhecer isso exige que sejamos capazes de perceber a vida e a morte de outra forma. Perceber coisas e fenômenos de outra forma geralmente não é fácil, exige um grau elevado de empatia e colocar-se no lugar do outro – algo cada vez menos praticado nos dias de hoje. Talvez tenhamos muito a aprender com os indígenas do alto Rio Negro, para quem certamente nossa luta obstinada pela vida às vezes deve parecer tão estranha quanto a calma e a serenidade que eles manifestam diante da morte nos parecem. 

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