segunda-feira, 25 de outubro de 2021

VACINAS CONTRA COVID-19 VERSUS HIV: A "POLÊMICA" DESNECESSÁRIA DE HOJE

Um estudo de 2008 identificou que células infectadas in vitro por um adenovírus humano (Ad5) expressavam mais receptores CCR5, as portas de entrada do HIV nas nossas células de defesa.

Nessa época, estavam testando uma vacina contra o HIV usando o Ad5 como vetor. Os testes foram suspensos pelo possível risco teórico de aumento da chance de infecção pelo HIV nas pessoas vacinadas.

Duas vacinas contra CoViD-19 em uso no mundo, a Sputnik V (russa) e a Cansino (chinesa) utilizam vetores de Ad5.

 

Alguns pontos importantes:

1- Esse foi um estudo in vitro, ou seja, em culturas de células em laboratório, e que só evidenciou que há mais receptores CCR5. Não testou de fato se o HIV consegue entrar com mais facilidade nas células humanas infectadas pelo Ad5. Nunca, em momento nenhum, esse fenômeno foi percebido em seres humanos. Mesmo o adenovírus sendo capaz de causar resfriados, essa correlação nunca foi encontrada.

 

2- Para ser infectada pelo HIV, uma pessoa (com ou sem vacina com Ad5) precisa se expor ao vírus, através de relação sexual, agulhas compartilhadas ou acidente perfurocortante, por exemplo. Não há absolutamente nenhuma possibilidade de haver transmissão do HIV através da vacina.

 

3- Infecção pelo HIV e síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) não são sinônimos! A AIDS ocorre quando o HIV sem tratamento deteriora nosso sistema imunológico por tempo suficiente (geralmente anos). Não existe a menor possibilidade de as vacinas enfraquecerem o sistema imunológico de uma pessoa com HIV a ponto de ela desenvolver AIDS. Pelo contrário: as vacinas fortalecem nosso sistema imunológico de diferentes formas.

 

4- Ainda que essa relação entre o Ad5 e o maior risco de se infectar pelo HIV fosse provada (até agora não passa de especulação), o Ad5 está presente apenas na segunda dose da Sputnik V. A primeira usa outro adenovírus , o Ad26, que não aumenta a quantidade de receptores CCR5. Aplicar uma 1° dose de Sputnik V e uma 2° de outra vacina eliminaria o problema.

 

5- Por último (e mais importante): nenhuma das duas vacinas que utilizam o Ad5 são aplicadas no Brasil!

 

MAIS UMA VEZ: VACINAS NÃO CAUSAM AIDS, POR MAIS QUE OS BEÓCIOS BRADEM O CONTRÁRIO

 

A vacinação contra a CoViD-19 no Brasil está evoluindo bem, apesar do início tardio e de todas as tentativas de sabotagem. Enquanto em outras partes do mundo há vacinas disponíveis e as pessoas fogem delas por causa das investidas de anti-vaxxers, no Brasil o limitante para o sucesso da campanha sempre foi ter a vacina disponível. Sempre fomos referência no mundo em matéria de vacinação, e poucos brasileiros dão ouvidos a anti-vaxxers (vergonhosamente, alguns deles são médicos).

Não acredite em quem espalha mentiras sobre as vacinas para tentar desacreditar nossa campanha de vacinação com base em fake news e distorções grotescas de conclusões de estudos antigos. Posicionar-se contra as vacinas, a essa altura do campeonato, significa ser estúpido ou mau-caráter. Ou, no caso mais recente, provavelmente as duas coisas.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Coronavírus mutante?

Nessa última semana vários meios de comunicação divulgaram que uma nova mutação do SARS-CoV-2 foi identificada no Reino Unido. Ao que tudo indica, essa nova variedade é de transmissão mais fácil. Em Londres, já se estima que 60% dos vírus circulando pertençam a essa cepa, supostamente 70% mais transmissível do que o SARS-CoV-2 “comum”.

Não é a primeira vez que identificamos mutações do SARS-CoV-2. Elas estão sendo acompanhadas desde o início, e nos ajudam a saber a trajetória do vírus pelo mundo. Foi estudando essas mutações que descobrimos que as cepas de SARS-CoV-2 que circularam em Nova York em abril vieram da Europa (e não diretamente da China, ao contrário das cepas que circularam mais cedo na Califórnia e no estado de Washington). Também foi estudando elas que descobrimos que o vírus entrou no Brasil mais de cem vezes entre fevereiro e março, vindo da Europa e dos EUA.

Na realidade, a mutação é uma consequência esperada da circulação de um vírus. A cada célula invadida e a cada cópia que ele faz, há uma pequena chance de que durante a replicação uma letra no seu código genético (que no caso do SARS-CoV-2 é feito de RNA) seja escrita de forma errada. Ou seja, é produto da boa e velha seleção natural.

A maior parte das mutações é inócua para o vírus, e algumas prejudicam ou mesmo impedem sua replicação. Mas muito raramente, surge uma que dá ao vírus uma vantagem competitiva em relação aos outros vírus que não a possuem. No caso do SARS-CoV-2, provavelmente ela dá origem a uma proteína spike que se encaixa com mais facilidade no receptor ECA-2 das nossas células, facilitando sua entrada.

Importante: essa mutação faz com que o vírus seja mais transmissível, mas até agora não foi identificada nenhuma associação com formas mais graves de CoViD-19 ou com a ocorrência de determinados sintomas. Além disso, pelo que temos visto nas mais de meio milhão de pessoas já vacinadas no Reino Unido, a vacina da Pfizer-Biontech protege também contra essa nova cepa.

Obs.: também não quer dizer que o vírus esteja evoluindo para se tornar menos agressivo. Essa história de que com o passar do tempo os vírus se “adaptam” ao hospedeiro e se tornam menos agressivos nem sempre é verdade. Eles tendem a se tornar mais transmissíveis, mas isso não necessariamente significa menor agressividade ou letalidade. Para mais detalhes, deem uma olhada no meu texto sobre o “apocalipse zumbi” dos coelhos da Austrália.

Também importante: vários países estão barrando pessoas vindas do Reino Unido. Muito provavelmente isso é inútil, porque essa variante já está circulando em outros países. A diferença é que o Reino Unido tem uma capacidade enorme de analisar e processar amostras do vírus e de identificar mutações. Não é sequer possível bater o martelo e dizer que essa mutação surgiu lá. E definitivamente ela não é a única: a África do Sul identificou recentemente uma variedade de SARS-CoV-2 circulando no país que também aparenta ser mais transmissível.

O que fazer para se proteger?

Pois bem: nem a variante identificada no Reino Unido nem a da África do Sul têm mais capacidade de atravessar máscaras, sobrevivem melhor ao álcool 70° ou flutuam mais longe no ar. Uso de máscaras, higiene das mãos e distanciamento social seguem como as melhores alternativas contra essa cepa!

(E contra todas as outras, diga-se de passagem)  

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Existe imunidade cruzada contra o SARS-CoV-2? Ou: ter tido contato com algum outro vírus protegeria a pessoa de alguma maneira contra a CoViD-19?


Vocês se lembram do meu post anterior sobre a importância da imunidade celular contra o SARS-CoV-2? Pois bem, pesquisadores do mundo todo começaram a fazer experimentos para estudar a resposta dos nossos linfócitos T contra o vírus. Pegaram linfócitos T de pessoas que já tinham tido CoViD-19 e de pessoas que nunca tiveram a doença para comparar como as células desses 2 grupos de pessoas se comportam na presença do SARS-CoV-2.
Como era de se esperar, os linfócitos T de quem tinha tido CoViD-19 antes reconheceram o vírus, do jeito que o estudo da semana passada previu e indicando uma imunidade celular forte. Só que quando foram avaliar os linfócitos T dos indivíduos que nunca tinham tido CoViD-19, perceberam que em algo em torno de 20 a 50% das pessoas os linfócitos T também respondiam ao vírus de forma vigorosa, como se já se lembrassem dele. Mas como, se nunca tinham se deparado com ele antes?
Uma hipótese: será que os linfócitos T dessas pessoas estavam respondendo ao SARS-CoV-2 porque ele se parecia com algum outro vírus com o qual elas já haviam entrado em contato?
Os coronavírus são uma família. 3 deles já causaram epidemias: SARS-CoV em 2002-2003, MERS-CoV em 2012 e agora SARS-CoV-2. Mas além deles, temos outros 4 que causam resfriado: OC43, 229E, NL63 e HKU1. Até 2002 esses 4 eram os únicos coronavírus conhecidos capazes de afetar humanos, e não passavam de curiosidade médica. Figuravam entre as mais de uma centena de possíveis agentes do resfriado comum, ao lado do vírus sincicial respiratório, parainfluenza, rinovírus, adenovírus, metapneumovírus e outros tantos. Eram tão insignificantes que ninguém jamais se preocupou em dar a eles um nome decente.
Devido ao seu parentesco, esses 4 vírus possuem algumas proteínas muito parecidas com as do SARS-CoV-2. E esse estudo indicou que quanto maior a semelhança entre essas proteínas, maior a chance de um linfócito T reconhecer e atacar. É como se o linfócito T que já entrou em contato com um desses 4 coronavírus olhasse para a proteína da superfície do SARS-CoV-2, pensasse “eu já vi isso antes e é um invasor” e montasse uma resposta celular mais forte e mais rápida. Aparentemente, esse tipo de reação cruzada ocorre com muito menos frequência com anticorpos (resposta humoral), porque eles são muito mais específicos.
Se o linfócito T ataca rápido ainda na primeira fase da CoViD-19 (a fase de replicação viral), vai ter menos vírus sobrando para induzir uma resposta inflamatória mais intensa na segunda fase da doença (a fase inflamatória). Isso pode explicar por que algumas pessoas têm uma doença mais leve do que outras: pode ser que algum resfriado que ela já teve antes na vida tenha sido causado por um desses 4 coronavírus. Infelizmente não temos como testar as pessoas para saber se já tiveram contato com algum deles, já que até ontem eles eram nota de rodapé de livro.
É uma hipótese plausível, mas precisa ser confirmada por outros experimentos. Se estiver correta, ela também tem implicações no desenvolvimento de vacinas, porque não parece ser difícil usar um vírus parecido com o SARS-CoV-2 para fazer nosso corpo montar uma resposta celular robusta e precoce contra ele. E é possível que pessoas que tiveram SARS e MERS também tenham alguma proteção contra formas graves de CoViD-19. Isso ajudaria a explicar por que países do leste da Ásia que foram duramente afetados pela SARS em 2002 e 2003 estão conseguindo controlar melhor a disseminação do vírus do que o resto do mundo. Obviamente esse não é o único fator. As medidas de controle como uso de máscaras e isolamento social estão sendo feitas (e obedecidas) de forma mais séria lá do que aqui.
E novamente, é uma hipótese.
De qualquer forma, é mais uma boa notícia. E mostra que aos poucos estamos começando a entender como a imunidade contra esse vírus misterioso funciona.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Quem teve CoViD-19 pode adoecer de novo?


"Tive CoViD-19 há alguns meses e não tenho mais IgM e IgG. Tenho imunidade baixa? Estou correndo risco?"

A reinfecção pelo SARS-CoV-2 é possível, mas não é comum. E até o momento não parece ter relação com a capacidade de produzir anticorpos ou não.
O nosso sistema imunológico é extremamente complexo, e não pode ser reduzido a anticorpos. Na verdade, ele tem 3 componentes principais, que interagem entre si e atuam em conjunto:
  • 1-  Imunidade humoral: composta principalmente pelos linfócitos B, que produzem anticorpos (proteínas capazes de aderir aos micro-organismos de forma específica e dificultar sua atividade). Existem anticorpos de diferentes classes: os IgM costumam surgir primeiro e circular por tempo limitado, enquanto os IgG tendem a surgir um pouco depois e permanecem por muito mais tempo. Como circulam no plasma e não conseguem entrar nas células, servem basicamente para combater patógenos extracelulares. Existem também IgE, IgA e IgD.
  • 2-  Imunidade celular: macrófagos que devoram bactérias e fungos, exércitos de neutrófilos, células dendríticas que dizem aos linfócitos B quais anticorpos produzir, linfócitos T que matam células infectadas por vírus ou que dão sinal para que outras células ataquem, tudo isso faz parte da imunidade celular. Ao contrário do componente humoral, ela consegue destruir patógenos que se abrigam no interior das células, como protozoários, fungos e vírus.
  • 3-     Sistema complemento: composto por proteínas que são capazes de, dentre outras coisas, atrair células do sistema imunológico para o local da infecção ou mesmo abrir buracos na parede dos micro-organismos. No início era considerado apenas um sistema complementar aos outros dois (daí o nome), mas hoje sabemos que é uma força importante por si só.

Há pessoas que têm uma imunidade celular mais forte e humoral mais fraca, enquanto outras têm uma imunidade humoral mais forte, outras têm os três sistemas funcionando muito bem, e outras nem tanto. Em grande parte, isso é determinado pelos nossos genes.
Quando pedimos sorologias IgM e IgG para determinada doença, estamos avaliando apenas a imunidade humoral, sem enxergar a imunidade celular ou o sistema complemento.
Quando falamos de CoViD-19, a coisa fica ainda mais complicada. Os anticorpos se comportam de forma bizarra (IgG surgindo antes de IgM, pessoas se recuperando sem produzir nenhum dos dois tipos, IgM e IgG permanecendo no sangue por poucos meses, etc), e ainda estamos tentando entender o motivo. Muitas pessoas que tiveram CoViD-19 confirmada por PCR dosaram anticorpos 2 ou 3 meses depois e o resultado veio negativo. Estão elas mais vulneráveis?
Não necessariamente! Segundo um estudo que saiu recentemente na revista Nature, a imunidade humoral parece ter pouca importância para a CoViD-19. Olhar para os anticorpos não nos permite tirar conclusões. A imunidade celular, nesse caso, parece ser muito mais importante.
A boa notícia: pessoas que tiveram infecção pelo SARS-CoV-1 em 2002 e 2003 mantêm uma resposta celular robusta contra o vírus mesmo 17 anos depois! E tudo indica que o mesmo ocorre com seu primo, o SARS-CoV-2. Mesmo pessoas que tiveram CoViD-19 mas não possuem mais anticorpos têm uma resposta celular intensa contra o vírus. Ou seja, têm uma resposta celular boa mesmo que a humoral não seja lá essas coisas.
Aparentemente, somente pessoas que por alguma razão genética não conseguem montar uma resposta imune celular adequada estariam suscetíveis a uma reinfecção pelo SARS-CoV-2. Por isso a reinfecção é algo possível, mas raro.
O problema: dosar IgM e IgG é fácil. É só analisar os níveis desses anticorpos na circulação. Avaliar a resposta celular, como diria Fernando Vanucci após a Copa do Mundo de 2006, “é muitmazdfícil, ma muitmazdfícil messsssmo!” É algo que hoje só pode ser feito em meia dúzia de laboratórios de pesquisa no Brasil, porque exige avaliar como as células de defesa respondem a um agente agressor. Não temos como fazer isso sob a forma de testes em massa, pelo menos não hoje.
Fazemos uma avaliação muito rudimentar da resposta imune celular no HIV, por exemplo, ao contar quantos linfócitos T CD4 uma pessoa tem circulando no sangue. Mas isso é só uma análise quantitativa, não diz nada sobre se esses linfócitos estão preparados para deter uma infecção ou não. Contra um vírus como o SARS-CoV-2 isso provavelmente não é suficiente.
Mesmo assim, há aplicabilidade prática dessa descoberta: já sabemos que não podemos avaliar a eficácia das vacinas que estão surgindo pela capacidade delas de induzir a formação de anticorpos contra o SARS-CoV-2, porque isso parece ter pouca ou nenhuma relevância em comparação com a imunidade celular.
Ainda temos muito a avançar, mas nesse momento há um monte de gente no mundo todo trabalhando para desvendar esses mecanismos da imunidade celular e para desenvolver métodos práticos para avaliar a imunidade celular contra o SARS-CoV-2.
Em breve teremos novas respostas. E provavelmente novas perguntas também.

domingo, 15 de março de 2020

Coronavírus: atualizações, descobertas e uma lenda envolvendo xadrez

Com o avanço da doença desde o final de fevereiro e as novas descobertas, fui obrigado a escrever um segundo texto sobre o coronavírus. O primeiro, com informações básicas mas já um pouco desatualizado, você pode conferir aqui

No dia 11 de março de 2020, a OMS finalmente declarou que a circulação e transmissão globais do SARS-CoV-2 de forma sustentada já permitem que a situação seja classificada como uma pandemia. Não que os critérios já não estivessem presentes antes, mas aparentemente a organização temia que o anúncio gerasse pânico e afetasse os mercados do mundo, por isso o adiou ao máximo. Mesmo assim (como era bastante previsível), bolsas de valores caíram e pessoas se assustaram. Uma coisa importante precisa ser dita sobre esse novo status: significa apenas que o vírus está circulando em uma região do planeta fora do continente de onde ela surgiu. O vírus não se tornou mais letal, mais fácil de ser transmitido ou imune às medidas de higiene e isolamento social usadas anteriormente para tentar contê-lo. Tudo isso continua valendo. Ainda que, como veremos mais à frente, possa não ser suficiente e os países da Europa precisem adotar medidas mais drásticas para conter a disseminação do vírus.

Quando eu escrevi o primeiro texto, a doença estava em declínio na China e os casos começavam a aumentar em número na Coreia do Sul, no Irã e na Itália. Naquela época sabíamos bem pouco sobre como o vírus se comportava e o que exatamente ele fazia. Continuamos sabendo pouco, mas descobrimos algumas coisas novas. Por exemplo, que em uma tomografia as lesões causadas pelo SARS-CoV-2 são similares às da SARS original, lá de 2002. Nos casos leves, poucos focos de inflamação estão presentes, mas nos quadros mais graves eles atingem uma região maior dos pulmões, levando a falta de ar e dificultando a oxigenação do corpo. Também foram realizadas necrópsias de pessoas que tiveram formas graves e morreram vitimadas pela doença (apesar de muito poucas, porque os patologistas têm medo de contrair a doença durante a necrópsia). Os achados de uma necrópsia mostram que os pulmões apresentam um processo inflamatório intenso, também similar ao da SARS. Os alvéolos, pequenos compartimentos que se enchem de ar quando inspiramos, acabam se enchendo de líquido devido ao processo inflamatório induzido pelo vírus, e suas paredes feitas de células chamadas pneumócitos acabam descamando porque essas células morrem. O processo inflamatório induzido pelo vírus e por essas células mortas acaba aumentando a espessura dos alvéolos, normalmente muito finos, e com isso os pulmões não mais conseguem realizar trocas gasosas de forma eficiente. O resultado é a intensa falta de ar que leva o paciente para a UTI e pode matá-lo.
Descobrimos também qual a proteína que o vírus utiliza para se ligar às células do hospedeiro. É uma proteína chamada receptor da enzima conversora de angiotensina tipo 2, que está presente nos nossos pulmões. Sabemos que os receptores da ECA tipo 1 estão ligados à hipertensão, o que pode ter alguma ligação com o fato de que doenças cardiovasculares são um fator de risco importante de complicação e mortalidade na CoViD-19. No entanto, poucas conclusões podem ser tiradas disso nesse momento. Nenhuma recomendação sobre usar ou não usar determinada medicação pode ser feita, por enquanto.
Muitas e muitas outras dúvidas persistem. Quem contraiu a doença e se recuperou pode adoecer de novo? Não sabemos. Há relatos de um caso no Japão de uma pessoa que teve sintomas, testou positivo, se recuperou, testou negativo, voltou a sentir sintomas e testou positivo novamente. No entanto, pode ter sido que uma pequena quantidade de vírus que ainda estava "dormente" em seu pulmão voltou a ser liberada. Enquanto não fizerem uma análise comparando o RNA do vírus do primeiro teste e o do segundo para dizer se são idênticos ou diferentes, a dúvida persistirá. Se foi uma reativação, ela é suficiente para contaminar outras pessoas? Também não sabemos. O teste mais usado detecta apenas se há ou não presença de vírus na amostra colhida das fossas nasais ou da faringe do paciente, não diz nada sobre a quantidade.
Outra dúvida: animais domésticos podem contrair o vírus e transmiti-lo para humanos? A notícia de um cachorro doméstico (saudável e sem sintoma nenhum) testando positivo para SARS-CoV-2 assustou o mundo todo, mas até o momento não há provas de que animais possam adoecer e/ou transmitir a doença adiante. É bom lembrar que a família dos coronavírus é extensa e alguns deles normalmente afetam cães, assim como outros normalmente causam resfriado comum em humanos. De qualquer forma, não abandone nem sacrifique seu animal de estimação.
Outra questão diz respeito aos assintomáticos: qual a importância deles? Um estudo ainda não publicado sugere que pessoas sem sintomas transmitem o vírus, mas em pequenas quantidades. O pico de transmissão, aparentemente, é nos primeiros dias de sintomas, e a liberação de vírus na saliva, nas secreções e gotículas respiratórias e nas fezes diminui ao longo do tempo. Pesquisadores chineses afirmam que a importância dos assintomáticos na transmissão é pequena, embora os alemães contestem porque os primeiros casos no país provavelmente tiveram origem em um paciente com pouco ou nenhum sintoma. 
Ainda sobre os assintomáticos: quantos são? Só conseguimos contar os casos sintomáticos, aqueles com febre e sintomas respiratórios (tosse, coriza e, nos casos mais graves, falta de ar). Nesses, sabemos que 20% precisam de internação hospitalar. Mas se descobrirmos que apenas uma em cada duas pessoas tem sintomas, ou uma em cada dez, teremos que ajustar bastante nossas estatísticas. Enquanto não tivermos esses números nas mãos, seguiremos calculando com base apenas nos sintomáticos.

O que sabemos bem é que a CoViD-19 segue se espalhando pelo mundo. Os casos no norte da Itália explodiram pouco tempo após o Carnaval, obrigando a província da Lombardia e depois toda a Itália a entrar em quarentena. Muitos dos que se infectaram na Itália acabaram levando a doença para outros países da Europa, e também para a África e a América Latina, incluindo o Brasil. Sabemos disso pela comparação do material genético das diferentes variedades de vírus circulando no mundo. Neste exato momento, outros países europeus, como a Espanha, a Alemanha e a França, veem curvas de crescimento de casos parecidas com as que a Itália testemunhou poucas semanas atrás.
A Coreia do Sul, do lado da China, conseguiu inicialmente controlar a entrada do vírus em seu território, mas viu a quantidade de casos se multiplicarem de forma absurda. Tudo indica que o foco dessa explosão de casos foi uma igreja na cidade de Daegu, cujos líderes se recusaram a cooperar com as autoridades sanitárias sul-coreanas. Até que o governo sul-coreano descobrisse e fechasse a igreja, mais de 2 mil casos ligados a ela haviam sido identificados, entre membros e seus familiares (número que pode ser ainda maior). Há inclusive um relato assustador sobre como uma única paciente pode ter levado o vírus para essa igreja e como pessoas dessa mesma igreja podem ter sido responsáveis pela disseminação da doença em um hospital após a realização de um funeral.
O Irã, que fez um péssimo trabalho de contenção dos primeiros casos, colheu as consequências pouco tempo depois. Os casos aumentaram vertiginosamente no país, que agora é o foco da epidemia no Oriente Médio e tem hoje (15/03/2020) o terceiro maior número de óbitos pela CoViD-19 no mundo, perdendo apenas para a China e a Itália. O exemplo do Irã, que transformou a questão em uma briga política, deveria servir de exemplo para quem tem feito a mesma coisa, como os EUA.
Por falar nos EUA, é bem provável que o vírus já esteja circulando por lá desde janeiro. Muito provavelmente teve início na costa oeste do país (Califórnia, Oregon e Washington). O foco mais importante no início foi o estado de Washington. Embora alguns casos em outras cidades do país tenham sido importados diretamente da China, a maior parte teve como foco Washington ou a Califórnia. Agora o número de pacientes cresce rapidamente no país todo, e não sabemos exatamente o número de casos porque nem todos têm sido testados. Estatísticas falam em quase três mil casos, mas pode haver muito mais.
Extraído do Nextstrain: análise filogenética (ou "árvore genealógica") dos casos relacionados à costa oeste dos EUA (em vermelho, em contraste com os casos chineses em roxo). Vários vírus diferentes mas parecidos entre si sugerem uma origem comum, e não diferentes entradas nos EUA a partir de um foco em outro país. Todas essas mutações indicam que o vírus está se multiplicando continuamente, e a velocidade constante com que essas mutações acontecem sugere fortemente que a primeira delas ocorreu na segunda quinzena de janeiro, já em território americano. 

A China parece ter controlado com sucesso a epidemia. Por mais autoritárias que tenham sido as medidas de quarentena, elas realmente funcionaram. A maior parte dos pacientes está se recuperando, e os hospitais construídos para abrigar e dar suporte aos doentes estão vazios. No entanto, nada impede que pessoas trazendo o vírus de outro lugar do mundo possam dar origem a novos surtos ou mesmo epidemias acometendo províncias inteiras.

Ao que tudo indica, o vírus não sofreu mutações que tenham dado a ele maior letalidade. Os números relacionados a mortalidade por faixa etária encontrados pelos italianos são similares aos dos chineses. Continua causando sintomas leves, similares aos de um resfriado, em 80% das pessoas sintomáticas. O problema são os outros 20% que provavelmente precisarão ficar internados, e os 5% que precisarão de um leito de UTI. Se o número absoluto de doentes for muito alto, os sistemas de saúde podem não dar conta. Isso é especialmente preocupante entre os idosos que, como já mencionado no outro texto, possuem um risco muito mais alto de complicações e óbito. Se há cinco pessoas com coronavírus precisando de um leito de UTI em uma cidade de porte médio, pode ser que elas consigam ser internadas. Se há quinhentas ou cinco mil, é bem mais difícil. Essas parecem ser as principais variáveis por trás dos diferentes índices de letalidade da epidemia nos diferentes países. Quantas pessoas idosas ou previamente doentes há em um país e que podem ter complicações caso adoeçam pela CoViD-19? Qual a capacidade do sistema de saúde de absorver esses casos rapidamente e tratá-los de forma adequada?
Mortalidade pela CoViD-19 em 9 de março (na ocasião a Alemanha ainda não havia registrado mortes). Os números de mortalidade variam muito, e a Itália parece sofrer mais devido à grande proporção de idosos em sua população.
A Itália é um caso emblemático: a quantidade de pacientes necessitando de internação e de UTI foi tão grande que o sistema entrou em colapso. Já não havia leitos suficientes nos hospitais para atender a todo mundo, muito menos leitos de UTI (que em qualquer lugar do planeta são um recurso absolutamente precioso e sempre em falta). Férias dos profissionais de saúde foram canceladas, horários de trabalho foram estendidos e estagiários e estudantes foram convocados para ajudar no combate à epidemia. Centros cirúrgicos e corredores se transformaram em enfermarias e UTIs improvisadas e tendas para abrigar mais leitos foram levantadas em estacionamentos e jardins. O país recebeu uma doação de ventiladores mecânicos para pacientes intubados vinda da China, mas pode ser que mesmo assim os recursos não sejam suficientes. Em alguns locais, intensivistas e emergencistas começam a aplicar princípios de medicina de catástrofe: dentre dois pacientes graves, escolher quem tem mais chance de sair vivo. 
Esse é o problema mais evidente agora, na Itália, na China ou em qualquer outro lugar: embora a proporção de casos graves seja baixa, em números absolutos os doentes podem exceder a nossa capacidade de salvá-los. Quanto mais a doença se espalha, mais doentes. Quanto mais doentes, mais casos graves. Quanto mais casos graves, mais leitos necessários para tratá-los. A partir de determinado ponto, esses leitos começam a faltar, simplesmente porque não temos o suficiente nem conseguimos obter mais a partir do zero.
No meio disso tudo, novamente, não podemos perder de vista as outras doenças que também nos ameaçam. Definitivamente não é uma questão de minimizar o problema do coronavírus, pelo contrário. Milhões de casos de gripe têm ocorrido nos EUA, por exemplo, com milhares de mortes. No Brasil, casos de dengue seguem crescendo. No Espírito Santo, de onde escrevo, os casos de chikungunya superam os de qualquer outro estado brasileiro. As pessoas não deixarão de ter dengue, chikungunya ou gripe só por causa do coronavírus. Não deixarão de infartar, de sofrer AVC, de bater com o carro ou ser atropeladas. Todas essas doenças ou situações têm potencial de sobrecarregar nosso sistema de saúde em um momento em que surge uma ameaça nova. E o contrário também é verdadeiro: não há garantia de que uma pessoa com dengue ou um politraumatizado por acidente de motocicleta terá um bom atendimento em um hospital lotado de casos de coronavírus. Por isso é tão importante conter a transmissão do vírus antes que cheguemos nos números testemunhados pelos italianos.
Consideramos que a epidemia pelo CoViD-19 em determinado país acontece em três fases, ou três etapas. A primeira delas envolve apenas casos importados. No Brasil, aconteceu quando o primeiro caso foi confirmado, do indivíduo que trouxe a doença da Itália poucos dias antes do Carnaval. A segunda fase, ou transmissão local, ocorre quando um desses casos importados transmite a doença para outras pessoas, mas sabemos quem elas são e podemos deixá-las em isolamento domiciliar ou, nos casos graves, internar obedecendo a todas as orientações de biossegurança. No Brasil, chegamos a essa fase quando foi confirmado que duas pessoas presentes na festa a que compareceu o primeiro paciente também entraram em contato com o vírus a partir dele. A terceira fase, que todas as medidas de isolamento sanitário dos casos identificados visavam evitar, é a chamada transmissão comunitária, quando não mais conseguimos rastrear e isolar todos os doentes (seja porque já são muitos e não conseguimos mais contá-los, seja porque começam a aparecer casos de pessoas que não sabemos como ou de quem adquiriram o vírus). Segundo o Ministério da Saúde, chegamos à terceira fase no dia 13 de março. 
Mas por que o número de casos parece crescer tão rápido na terceira fase da epidemia? No momento que eu escrevi o primeiro texto isso ainda não havia ficado claro, mas pelo que conseguimos aprender com a evolução da epidemia no Irã, na Itália e agora no resto da Europa, os casos de CoViD-19 tendem a aumentar de forma exponencial (como demonstrado graficamente pelo meu amigo André Pacheco em seu blog). E nosso cérebro tem muita dificuldade em lidar com isso.
Existe uma lenda sobre o suposto inventor do jogo de xadrez, um sábio chamado Sissa ibn Dahir, que vivia em algum lugar dos atuais Irã, Paquistão ou Índia. Sua invenção foi considerada tão fabulosa que o rei Shahram decidiu recompensá-lo. Sissa poderia pedir o que desejasse, Shahram prontamente lhe concederia. Sissa pediu apenas grãos de arroz (algumas fontes mencionam trigo). O pedido era simples: em um tabuleiro de xadrez, Shahram deveria colocar um grão de arroz na primeira casa, dois na segunda, quatro na terceira, oito na quarta, dezesseis na quinta e assim por diante. Shahram riu do pedido, achando-o humilde e muito aquém da genialidade de Sissa ibn Dahir. Só que a quantidade de grãos crescia de uma casa para outra de forma exponencial. Quando chegou à metade do tabuleiro, a quantidade de grãos alcançava níveis absurdos. Por volta da quadragésima casa, nem toda a produção mundial de arroz (ou trigo, como preferir) seria suficiente para preencher uma única casa. Segundo uma das versões da lenda, Shahram percebeu que havia sido feito de idiota e ordenou que Sissa ibn Dahir fosse executado.
Quando olhávamos para os primeiros casos de CoViD-19 na Itália, no Irã e na Coréia do Sul (excluo a China porque quando as notícias chegaram ao Ocidente já havia algumas centenas de casos), víamos que eles se mantinham por muito tempo na casa das dezenas ou até menos, depois chegavam às centenas e chegavam rapidamente aos milhares, com o número de mortes também crescendo com variações dependendo da eficiência do sistema de saúde local e do número de idosos na população. Éramos como o rei Shahram olhando os grãos de arroz sendo empilhados no tabuleiro, casa após casa. A partir de determinado ponto, começamos a nos surpreender com a quantidade crescente de casos novos, e só então consideramos a hipótese de fazer algo para evitar que a progressão da doença continuasse. O mesmo crescimento exponencial está acontecendo nesse exato momento na Europa e nos diferentes estados que formam os Estados Unidos da América. O Brasil ainda conta com pouco mais de uma centena de casos confirmados, apenas ensaiando uma verticalização da curva, mas é bom não cometermos o erro do rei Shahram. Não podemos subestimar o poder do crescimento exponencial.
Segundo o Gisanddata, da Johns Hopkins, temos hoje (15/03/2020) mais de 150 mil casos registrados no mundo (embora provavelmente haja bem mais, como veremos adiante). Esse é o gráfico de progressão da doença no mundo (canto inferior direito da tela):


A linha laranja indica o número de casos na China. Ela subiu rapidamente e depois se achatou, estabilizando em torno dos 80 mil casos. Indica que a transmissão na China foi controlada com as medidas de isolamento social e com a quarentena. A linha verde é a de pessoas que se recuperaram da doença. A grande maioria delas está na China, indicando que sim, se a transmissão for contida as pessoas podem se recuperar e a pandemia acabar. A linha amarela, no entanto, é a de casos fora da China. Perceba que ela de fato cresce de forma exponencial, com um aumento cada vez maior de novos casos ao longo dos dias. Perceba que acabamos de igualar a linha amarela à laranja. Ou seja, o número de casos no resto do mundo já equivale ao da China, e continuará a crescer nos próximos dias. 
Isso ocorrerá inevitavelmente, e veremos a linha amarela seguir subindo dia após dia, se não fizermos nada. Ainda não temos tratamento, ainda não temos uma vacina. Temos as recomendações de higiene que continuam valendo desde o início da epidemia - e que são mais importantes do que nunca! Proteger as mãos com um lenço descartável ao tossir e espirrar, ou usar a fossa cubital (a dobra do cotovelo). Higienizar bem as mãos sempre (com água e sabão ou álcool gel), principalmente após ir ao banheiro, tocar superfícies ou as mãos de outras pessoas e antes de comer. Higienizar também os celulares, algo que muita gente esquece, porque sua superfície pode carregar vírus (e bactérias, e outras coisas). Evitar levar as mãos aos olhos, nariz e boca, já que são mucosas nas quais o vírus pode penetrar e infectar. Evitar o contato com aglomerações e contato próximo com pessoas doentes.
Esses cuidados com a higiene também devem ser redobrados nos aeroportos, e viagens para o exterior só devem ser feitas se forem realmente necessárias. Todo indivíduo que chegar ao Brasil, mesmo sem nenhum sintoma, deve permanecer em casa por sete dias.
O uso de máscaras não é recomendado para se proteger do coronavírus - mas é importante que ela seja usada se você estiver doente (para não transmitir para os outros) e principalmente se você for um profissional de saúde, potencialmente exposto a pessoas portando o vírus. Segundo o Ministério da Saúde, pode ser a máscara cirúrgica, embora para procedimentos que envolvam aerossolização (intubação orotraqueal, escarro induzido) os profissionais de saúde envolvidos devam utilizar máscara N95.
Contudo, essas medidas podem não ser suficientes, especialmente porque nem todo mundo as segue à risca. Por isso, nessa terceira fase da epidemia devem entrar em jogo as chamadas medidas de isolamento social. Grandes eventos, incluindo culturais, religiosos, esportivos, cívicos, político-partidários ou de qualquer outra natureza devem ser desencorajados, bem como festas e celebrações com muitas pessoas. Escolas e universidades devem cancelar eventos extra-curriculares e avaliar a suspensão das aulas. Em São Paulo, FATEC, FMU, INSPER, PUC, USP e Mackenzie registraram casos. UnB e UNICAMP interromperam totalmente as atividades. A população universitária tem potencial para ser um importante vetor do coronavírus poque viaja e interage bastante com outras pessoas, e pode levar a doença para suas famílias nas cidades do interior. Outras universidades devem fechar temporariamente assim que novos casos de transmissão comunitária forem registrados em diferentes estados.
Além de evitar contato com aglomerações, pessoas que apresentarem febre e sintomas respiratórios devem permanecer em casa. Isso significa não ir nem ao trabalho, para não transmitir a doença aos outros funcionários. Se possível, empresas devem adotar estratégias como home office ou trabalho em turnos para evitar que muitas pessoas permaneçam ao menso tempo no local de trabalho. Pessoas com sintomas leves não precisam e não devem ir às unidades de saúde, nem sequer para obter atestado médico. Isso sobrecarregará ainda mais o sistema de saúde e dificultará muito o atendimento daquelas pessoas que realmente precisam. Além do fato óbvio de que as unidades de saúde serão grandes aglomerações de pessoas e portanto estar nelas é um fator de risco para contrair o vírus, se você estiver com um simples resfriado.
Para tentar diminuir a sobrecarga futura do sistema de saúde com casos graves de influenza (e com casos que podem parecer doença pelo coronavírus), a campanha de vacinação contra influenza será realizada ainda no mês de março, priorizando idosos e profissionais de saúde.
É importante reforçar: devemos nos preocupar de verdade com a pandemia causada pelo SARS-CoV-2, mas não é necessário nem desejável entrar em pânico. Em diversos países do mundo, pessoas compram quantidades absurdas de álcool-gel, papel higiênico e outros itens, como se o apocalipse estivesse para começar. É claro que é importante ter uma reserva de alguns itens não-perecíveis (já antevendo a necessidade de ir doente a um supermercado), mas daí até empilhar rolos e mais rolos de papel higiênico em casa é uma distância enorme.
E também é importante reforçar: você não vai morrer por causa do coronavírus. A mortalidade na faixa dos 10 aos 40 anos é de 0,2%, e entre os 40 e os 50 anos é de 0,4%. Mas aumenta a partir dos 50: 1,5% até os 60 anos, 3,5 a 4% dos 60 aos 70, 8% dos 70 aos 80 e quase 15% acima dos 80 anos. Ou seja, todas as medidas adotadas no mundo todo são para proteger principalmente os idosos e as pessoas que têm doenças cardiovasculares, pulmonares graves ou outras que aumentam a mortalidade em uma infecção pelo SARS-CoV-2. Não é para proteger você, é para proteger sua avó. E para evitar que o sistema de saúde entre em colapso, como ocorreu na Itália.
Se mesmo com essas medidas de isolamento social nós não conseguirmos conter o avanço da CoViD-19, pode ser que tenhamos que apelar para a quarentena - uma restrição geral de movimentação de bens e pessoas dentro e fora de um território ou país. Viagens serão suspensas, atividades não-essenciais também, eventos de massa serão cancelados e pessoas poderão sair de casa apenas para adquirir comida ou itens básicos ou para ir aos serviços de saúde. É uma medida drástica, com sérias repercussões sobre a economia local (e nacional, e mundial). Mas pode ser nosso último recurso.
E tudo indica que é um recurso que funciona. Aparentemente, a China conseguiu controlar e praticamente zerar a transmissão de novos casos ao impor uma dura porém necessária quarentena nos cidadãos da província de Hubei e de algumas outras grandes cidades, que inclui restrições de viagens ao exterior. E como o mundo dá voltas, o grande temor dos chineses agora é que pessoas de outros países levem o vírus de volta para a China. 
A Coreia do Sul, após a explosão inicial de casos ligados à igreja em Daegu, não impôs uma quarentena tão estrita quanto a chinesa, mas reforçou medidas de isolamento social, fechou escolas, empresas e igrejas (inclusive a de Daegu), e é o único país do mundo que está investindo pesado em rastreio de casos leves ou mesmo assintomáticos. Ao contrário da Europa, dos EUA e do Brasil, que por falta de testes suficientes optaram por testar apenas os casos graves ou outros em circunstâncias especiais, a Coreia do Sul está fazendo um grande esforço para testar pessoas sintomáticas de todas as idades, e isolar aquelas cujos exames dão positivo. Como resultado, a quantidade de casos sul-coreanos estacionou nos cerca de oito mil. E graças a essa política de testes quase irrestrita dos sul-coreanos, eles detectaram que aparentemente há muitos jovens com sintomas leves que podem agir como transmissores de pessoas mais velhas e que possuem maior risco de ter complicações.

Outros lugares que têm conseguido controlar o número de casos através de isolamento social, da tecnologia e de pesadas multas sobre os desobedientes, mesmo que não testem sistematicamente todos os sintomáticos, são Singapura, Taiwan, Macau e Hong Kong. Países africanos têm feito um trabalho bastante eficiente de combate à pandemia. Apesar da falta de estrutura em muitos lugares, incluindo água limpa para lavar as mãos, há profissionais com grande expertise em doenças respiratórias devido às recentes epidemias de Ebola, como ocorre na República Democrática do Congo. Outro fator protetor é a população relativamente jovem, teoricamente com menor risco de complicações. Países africanos começaram a impor restrições a viajantes europeus temendo casos importados.
Um ótimo exemplo de como as medidas de restrição social e quarentena funcionam vem da própria Itália. Codogno, a pequena cidade da Lombardia que registrou os primeiros casos da doença no país, contabilizou zero casos novos após a imposição das duras porém necessárias medidas contra a disseminação do SARS-CoV-2.
Uma reportagem sensacional do Washington Post sobre como as estratégias de isolamento social e quarentena funcionam, de forma extremamente didática, pode ser conferida aqui.

Por que adotar medidas de isolamento social e quarentena fazem sentido e dão certo? O objetivo não é necessariamente acabar com os casos da noite para o dia. Isso provavelmente é impossível. Mas é possível diminuir a velocidade com que novos casos ocorrem, e isso faz muita, muita diferença. Sendo um vírus de fácil transmissão respiratória, o SARS-CoV-2 pode chegar a afetar 70% ou mais da população de um país. Mas existe uma enorme diferença entre as pessoas adoecerem todas de uma vez e adoecerem aos poucos, ao longo de meses. O gráfico abaixo demonstra isso muito bem:  


Todo país tem um sistema de saúde com alguma capacidade para responder à epidemia. Alguns mais, outros menos. Se a quantidade de pessoas doentes precisando de hospitais e/ou leitos de UTI for muito acima dessa capacidade, o sistema não dá conta de absorver todo mundo, e a mortalidade será muito elevada. Foi basicamente o que ocorreu e ainda está ocorrendo na Itália e no Irã. Se, por outro lado, um país impõe medidas de isolamento social ou mesmo uma quarentena, a doença se espalhará mais devagar pela população, e as pessoas procurarão os serviços de saúde aos poucos, ao longo de bastante tempo. Nessa velocidade, os hospitais serão capazes de absorver a demanda. É o que está conseguindo fazer a Coreia do Sul, por exemplo. Detalhe importante: quanto mais precocemente as medidas de controle forem impostas e obedecidas, mais lentamente a doença avança.
Surpreendentemente, sabemos disso há mais de um século. Na pandemia de gripe de 1918, sobre a qual também escrevi um texto, diferentes cidades adotaram diferentes estratégias para lidar com os casos crescentes. Isso variou por diferentes países, mas mesmo cidades dos Estados Unidos tiveram respostas radicalmente diferentes. Algumas delas, como Saint Louis, cancelaram grandes eventos e outras, como a Filadélfia, deixaram a vida acontecer normalmente. E o resultado foi basicamente uma reprodução do gráfico acima. É claro que a comparação não é 100% perfeita, já que a pandemia de 1918 era muito mais grave do que a atual (10% de mortalidade contra 2%), mas o padrão é muito similar.

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Por essa razão, a Itália decidiu pela quarentena. Só que parece ter tomado esse caminho muito tarde, quando o país estava muito além da capacidade de absorver a demanda causada pela SARS-CoV-2. A Espanha decidiu pela quarentena antes que os números chegassem ao nível italiano, e outros países como França e Alemanha iniciaram medidas de isolamento social como fechamento de universidades e escolas, podendo em breve iniciar quarentena também.
A resposta dos EUA à pandemia até o momento parece bastante débil. O CDC tem sofrido cortes em seu orçamento nos últimos anos. Apesar da provável circulação do vírus na costa oeste do país desde o fim de janeiro, poucos pacientes foram testados. Surtos começaram a ocorrer em diversas cidades do estado de Washington, depois na Califórnia, e depois no restante do país. A inexistência de um sistema de saúde pública provavelmente torna tudo mais difícil, porque as pessoas precisam pagar pelos testes. Além disso, indivíduos que testam positivo relutam em ficar em isolamento domiciliar porque não há licença remunerada no país. Um caso absurdo envolveu um homem e sua filha: evacuados de Wuhan pelo governo dos EUA, foram deixados em quarentena e testados para SARS-CoV-2, e tiveram que pagar por tudo. É o estímulo perfeito para uma pessoa sintomática fugir de qualquer unidade de saúde e continuar a disseminar o vírus. Além disso, a exemplo do Irã, os EUA têm tentado politizar a questão da resposta à epidemia, e isso provavelmente trará resultados desastrosos. Neste exato momento, os EUA têm algumas dezenas de casos distribuídas em cada um de seus estados, exceto Washington que tem mais de seiscentos. São mais de três mil no total. Mas provavelmente a quantidade de pessoas com o vírus e que não foram testadas é muito maior. Cada um dos estados dos EUA parece estar em uma curva ascendente de casos. cada um dos estados com um tabuleiro de xadrez, empilhando grãos dia após dia. Por razões econômicas, dificilmente uma quarentena nos moldes chineses ou mesmo uma estratégia de isolamento social nos moldes sul-coreanos funcionará por lá. Os EUA são sérios candidatos a desbancar a Europa como principal foco da pandemia pela CoViD-19 nas próximas semanas.
Mas nenhuma resposta à pandemia parece mais absurda do que a dos britânicos. As autoridades do país parecem querer desafiar o gráfico anterior e pretendem permitir que todos os britânicos contraiam a doença de uma só vez. Ainda que o NHS seja o mais robusto sistema de saúde pública do mundo, nem isso impedirá que ele entre em colapso quando milhões de britânicos, em sua maioria idosos, precisarem usar o leitos hospitalares e as UTIs praticamente ao mesmo tempo. É só uma questão de tempo até vermos na Inglaterra a situação atual da Itália multiplicada por dez, se o rumo não for mudado logo. Ou isso é uma estratégia consciente para desmantelar o NHS às custas das vidas de milhões de britânicos, ou é uma decisão absurdamente irresponsável.
O mundo parece um grande laboratório de testes de diferentes respostas à pandemia. Algumas parecem estar dando certo, como a da China, a da Coreia do Sul, a de Singapura e a do Japão (que melhorou sua estratégia após uma explosão inicial no número de casos, tal como a Coreia do Sul). Outras parecem caminhar para o fracasso, como a dos EUA e a da Inglaterra. No meio do caminho parece estar a Europa.
O Brasil chegou inevitavelmente à fase 3 da epidemia no dia 13 de março, com algumas semanas de vantagem em relação ao resto do mundo. A nossa estratégia inicial definirá grande parte do nosso sucesso ou do nosso fracasso. O Ministério da Saúde já estabeleceu que realizará testes para detectar o SARS-CoV-2 apenas em casos graves ou em circunstâncias especiais - o que já nos coloca um pouco atrás da Coreia do Sul e lado a lado dos países europeus, embora à frente dos EUA onde esses testes estão disponíveis apenas na rede provada e são extremamente caros. Mas é bom nos lembrarmos de que uma estratégia de testagem como a sul-coreana em uma população muito maior como é a brasileira pode não ser viável, e que outros países conseguiram conter o avanço da doença sem testagens em massa, apoiando-se principalmente em medidas de isolamento social e no uso correto da tecnologia. Esse pode ser o nosso caminho. Algumas universidades e escolas já fecharam, outras devem fechar conforme novos casos de transmissão comunitária ocorrerem fora do eixo Rio-São Paulo, que por enquanto concentra a maior parte dos casos. Tem sido veiculado em alguns meios de comunicação que o SARS-CoV-2 pode ter uma transmissão mais baixa no Brasil por causa do clima. Não temos nenhuma prova de que isso realmente vai acontecer. Epidemias de outros vírus respiratórios como influenza acontecem no Brasil sazonalmente, então não podemos contar com isso para nos proteger.
É importante que adotemos medidas de isolamento social precocemente, como a suspensão temporária de competições esportivas, shows e outros eventos. Por maior que seja o impacto econômico dessas suspensões, certamente será menor do que deixarmos os casos brasileiros crescerem exponencialmente. Lembremo-nos de Sissa ibn Dahir, do rei Shahram e dos grãos no tabuleiro de xadrez. No momento, é melhor evitar viagens a São Paulo e Rio de Janeiro a não ser que seja realmente necessário. Pessoas que vieram de fora do Brasil devem ficar em casa por uma semana, mesmo sem sintomas. Devem comparecer às unidades de saúde apenas aquelas pessoas com febre e falta de ar - o restante deve permanecer em casa para que o tempo e os recursos dos profissionais de saúde sejam direcionados a quem realmente precisa. Nos hospitais e demais unidades de saúde, todos os cuidados com biossegurança devem ser utilizados, principalmente o uso de máscaras e demais equipamentos de proteção individual (óculos, gorro, luvas). O uso de máscaras N95 continua indicado nos procedimentos aerossolizantes como ventilação não invasiva, intubação orotraqueal e coleta de swab nasal e faríngeo. E se você não é um profissional de saúde, um cuidador de pessoa doente ou uma pessoa com sintomas (febre e tosse, coriza, espirros ou falta de ar), não há indicação nenhuma de uso de máscaras.

Acima de tudo, precisamos ter a certeza de que se quisermos superar essa pandemia poupando os indivíduos mais frágeis da nossa sociedade, precisamos depositar todas as nossas fichas na ciência. Pode parecer que não, mas ela já fez bastante por nós nesta epidemia, em grande parte porque já avançou bastante nas últimas décadas. Do primeiro caso ligado ao surto do mercado de Wuhan (10 de dezembro de 2019) à identificação do vírus (7 de janeiro de 2020) passou-se menos de um mês. da identificação do vírus até a elaboração de um teste diagnóstico (10 de janeiro), três dias. Para efeito de comparação, levamos dois anos (1981 a 1983) entre identificar os primeiros casos de AIDS e isolar o HIV, e mais dois anos (1985) para que fosse aprovado o primeiro teste diagnóstico ELISA. Isso porque estamos comparando com uma pandemia recente. Na pandemia de gripe de 1918, não tínhamos ventilação mecânica, não tínhamos Tamiflu e nem sequer sabíamos o que era um vírus. Passaram-se apenas cem anos. E avançamos como nunca antes na História das ciências de lá para cá. Apesar dos cortes no financiamento do CDC, apesar das hordas de terraplanistas, anti-vaxxers, negacionistas do clima e similares gritando que é desperdício de dinheiro estudar um maldito vírus de morcego, apesar das fake news que correm por aí mais rápido do que conseguimos desmentir, apesar de todos os chás, óleos, "soros", curas milagrosas que prometem acabar com a pandemia, seguiremos adiante. Só a ciência nos salvará. Precisamos voltar a acreditar nela antes que seja muito tarde.
Os ensaios clínicos de drogas para tratamento do vírus estão sendo conduzidos com todo o cuidado e escrutínio que a boa ciência exige, para que saibamos quais drogas em quais doses por quanto tempo e quantas vezes por dia devem ser utilizadas. As vacinas ainda estão longe, pelos mesmos motivos: precisamos atestar eficácia e segurança antes de começar a produção em massa. O que a ciência tem hoje a nos oferecer é informação detalhada sobre como o vírus é transmitido, o que ele faz conosco, quem são os mais vulneráveis e o que precisamos fazer se quisermos evitar um grande número de casos sobrecarregando nossos hospitais.
As medidas de isolamento social serão implementadas, mais cedo ou mais tarde. Esperamos que mais cedo, porque assim a disseminação da doença ocorrerá devagar e daremos conta de absorver em nosso sistema de saúde os idosos e vulneráveis. Nossa vida vai mudar daqui para frente, e não dá para dizer por quanto tempo. Dias, semanas, meses. Home office se tornará mais comum e corriqueiro. Talvez aulas à distância também. Encontros sociais serão mais raros. Viagens também serão. Vai demorar um pouco até irmos tranquilamente a um show ou a um estádio de futebol. Vamos ter que mudar nossa forma de cumprimentar as pessoas. Mas somos capazes de nos adaptar. Sempre fomos. Estamos nos adaptando desde que surgimos no planeta. Nosso cotidiano será afetado de diferentes formas, mas esse é um pequeno sacrifício que devemos fazer para que os idosos e as outras pessoas que dependem dos nossos hospitais e do restante do nosso sistema de saúde. Lembrando: você não vai morrer de coronavírus, mas pode ser que seus pais ou seus avós corram risco. A única maneira até o momento de minimizar esse risco é adotar de forma disciplinada as medidas de higiene recomendadas e veiculadas há meses e diminuir nossa exposição a outras pessoas. 
Pode ser que a epidemia não faça tantas vítimas quanto imaginamos. Pode ser que realmente o vírus não se espalhe com tanta facilidade em um clima tropical. Certamente dirão que nossas medidas de isolamento social ou quarentena tenham sido exageradas, e que causamos prejuízo à economia do planeta "por nada". Mas todas as evidências que temos até agora apontam para outra direção. E tenho certeza de que, se deixarmos de agir agora para evitar que essa pandemia se espalhe, o prejuízo - tanto em vidas quanto na própria economia - será muito maior.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Coronavírus: além do pânico e da histeria

Desde o fim de dezembro de 2019, notícias sobre uma nova doença surgida na região central da China têm causado preocupação em todo o planeta. O seu causador é o SARS-CoV-2, chamado por muitos veículos de comunicação simplesmente de “coronavírus”. Como em toda epidemia, especialmente quando ela é causada por um agente novo, junto com as notícias verdadeiras tem corrido todo tipo de informação desencontrada e de boato. Dúvidas geram incertezas e incertezas geram pânico. Não sabemos muito sobre esse novo vírus, mas estamos aprendendo mais a cada dia que passa, a cada boletim epidemiológico ou experimento publicado. E mesmo o pouco que sabemos pode nos ajudar muito a quebrar cadeias de transmissão, postular formas de curar a doença e evitar o pânico que as manchetes sensacionalistas costumam alimentar.

O coronavírus, visto através de um microscópio eletrônico. Na imagem colorida artificialmente, pode-se ver a coroa que dá nome ao vírus, em azul. Fonte: https://www.niaid.nih.gov/news-events/novel-coronavirus-sarscov2-images

Comecemos do começo: “coronavírus” não é um único vírus, mas sim uma família inteira. Tal como os flavivírus, que compreendem os vírus causadores da dengue, zika e da febre amarela, ou os retrovírus, que incluem o HIV e o HTLV, os coronavírus são uma família extensa com representantes causando doenças em diversos animais diferentes, incluindo aves e mamíferos. Em comum, possuem um envelope viral que ao microscópio eletrônico dá a eles o aspecto de uma coroa, daí resultando seu nome (corona, em latim). Existem coronavírus humanos, que costumam causar doenças brandas – e inclusive estão entre os mais de cem diferentes vírus causadores de resfriado comum. No entanto, as epidemias recentes causadas por coronavírus mais ameaçadores aos humanos foram causadas por membros da família que vieram de morcegos, e não de humanos.

Os morcegos estão entre os mais críticos hospedeiros de vírus patogênicos, e existem muitos motivos para isso. Alguns deles se alimentam de sangue de outros animais (e eventualmente do nosso), por isso a grande maioria das pessoas os associa à transmissão da raiva. No entanto, os morcegos, mesmo aqueles que não são hematófagos, possuem um conjunto de características que fazem deles excelentes transmissores de muitos outros patógenos, inclusive os vírus Hendra, Nipah e possivelmente Ebola e Marburg. Os vírus Hendra e Nipah, por exemplo, são transmitidos por secreções, principalmente saliva e fezes, de morcegos do sul e sudeste da Ásia e da Oceania que se alimentam de frutas. A primeira dessas características é o enorme número de espécies, mais de 900 (o que significa que, basicamente, uma a cada cinco espécies de mamífero é um morcego), e cada uma delas carrega seu próprio conjunto de micro-organismos associados, principalmente vírus. Além disso, morcegos voam. Pode parecer óbvio, mas esse fato tem grandes implicações: morcegos podem se deslocar por grandes distâncias em um único dia, inclusive tridimensionalmente, coisa que um roedor, um ruminante ou um primata é incapaz de fazer. Outra característica: muitas espécies de morcego são sociáveis, e seus membros dividem o teto das cavernas com outros milhares ou mesmo milhões, chegando a densidades populacionais muito maiores do que qualquer aglomeração humana. Tantos indivíduos confinados em um mesmo ambiente, respirando juntos, trocando secreções (e vírus) formam o cenário perfeito para a disseminação de um patógeno. Agora some isso ao fato de que morcegos voam: indivíduos migram entre uma caverna e outra, percorrendo às vezes dezenas ou centenas de quilômetros, e ocasionalmente levando e trazendo vírus novos de um lugar para outro. Como se não bastasse, algumas espécies de morcego podem viver até vinte ou trinta anos, o que significa que podem entrar em contato com (e transmitir) muitos tipos de vírus diferentes ao longo da vida. Boa parte dessa vida eles passam hibernando, e há indícios de que nesse período o seu sistema imunológico pode não ser capaz de controlar a replicação viral, fazendo que os vírus circulem no sangue durante o período de hibernação. Na realidade, sabe-se muito pouco sobre a imunologia dos morcegos (considerando este parágrafo, provavelmente é um tema mais relevante e interessante do que a imunologia dos porquinhos-da-índia ou das baleias, por exemplo). Quão parecida é a resposta imune dos morcegos contra vírus em relação à nossa? Teriam eles um limiar de atividade imunológica mais elevado, permitindo que vírus se repliquem em seu corpo sem que haja uma resposta inflamatória? Todas as espécies de morcego têm o mesmo padrão de resposta? 

Análise filogenética da família dos coronavírus, mostrando o SARS-CoV e o MERS-CoV em azul, e o coronavírus encontrado em Wuhan, em laranja. A "árvore genealógica" mostra que seus parentes mais próximos são dois coronavírus de morcegos. A imagem está nesse artigo.

Apesar de sua origem nos morcegos, os coronavírus responsáveis pelas epidemias registradas desde o início do século XXI tiveram cada um seu hospedeiro intermediário capaz de funcionar como “amplificador”, e a partir dele a doença “saltou” para os humanos. Foi assim na SARS, surgida no sul da China em 2002, quando o vírus saltou do morcego para a civeta, o mamífero asiático parecido com um gambá de cujas fezes é extraído o valioso kopi luwak. E foi assim na Arábia Saudita em 2012, quando o vírus responsável pela MERS (Middle-East Respiratory Syndrome) saltou do morcego para o dromedário, e dele para humanos. E provavelmente foi assim nos arredores da cidade chinesa de Wuhan no final de 2019, quando um novo coronavírus saltou do morcego para o pangolim, outro mamífero asiático que por sua vez parece uma mistura de tatu com tamanduá cheio de escamas e que está em extinção devido à caça ilegal. O vírus encontrado no pangolim tem um genoma 90% idêntico ao coronavírus responsável pela atual epidemia.
Obs.: na versão anterior deste texto eu havia mencionado que a similaridade do genoma do coronavírus de 2019 com o vírus encontrado no pangolim é de 99%. No entanto, parece que houve equívoco de comunicação dos autores do artigo original. A similaridade de 99% é de um dos trechos do genoma viral. O RNA completo tem similaridade de 90%. O pangolim continua a ser o candidato mais provável a hospedeiro intermediário do SARS-CoV-2, mas a questão se tornou um pouco mais nebulosa.
Mas como esse salto acontece? Ele tem tudo a ver com encaixes. Os vírus são seres extremamente simples, que alguns cientistas inclusive se recusam a classificar como vivos. Isso porque eles são incapazes de se multiplicar sozinhos: precisam invadir uma célula para “sequestrá-la” e usar seus ribossomos para sintetizar novas proteínas virais e material genético para depois juntar os pedaços em vírus novos. Em resumo: um vírus transforma a célula que ele invade em uma fábrica de novos vírus. Só que cada vírus é extremamente específico quanto ao tipo de célula que ele invade. O vírus da gripe só consegue invadir e se multiplicar nas células das vias aéreas, o rotavírus só invade e se multiplica nas células do intestino, e o HIV só invade e se multiplica nos linfócitos T, por exemplo. E além da especificidade quanto ao tipo de célula, existe também especificidade quanto ao hospedeiro. Um vírus que invade as células intestinais humanas geralmente não consegue invadir células intestinais de uma galinha, de um sapo, ou de um peixe, por exemplo. Essa especificidade acontece porque cada célula de cada espécie possui em sua superfície proteínas diferentes com diferentes formatos, e são justamente essas proteínas que os vírus usam para se ancorar, se fixar e invadir as células hospedeiras. As proteínas da superfície de uma célula da mucosa respiratória inferior humana são diferentes das proteínas da superfície de uma célula da mucosa respiratória inferior de outros animais. E essa diferença é maior conforme nos separamos mais dos outros seres vivos na “árvore genealógica” da vida: as proteínas de superfície das nossas células são mais parecidas com as dos macacos do que com as dos camundongos, que são mais parecidas do que as dos répteis, que são mais parecidas do que as das formigas, que são mais parecidas do que as das plantas.
E essas diferenças importam. Isso porque, quando os vírus fazem cópias, nem sempre elas saem perfeitas. Algumas vezes os vírus sofrem mutações, o que é mais comum naqueles vírus cujo material genético é feito de RNA como é o caso do HIV, do vírus da gripe e (adivinhe!) dos coronavírus. A maior parte desses erros de cópia torna os novos vírus incapazes de invadir e se multiplicar em outras células, mas em alguns casos essas mutações podem fazer com que os vírus consigam se encaixar em proteínas um pouquinho diferentes daquelas nas quais eles normalmente se encaixariam. Além de se encaixar e invadir células das vias aéreas de um morcego, uma cópia mutante desse vírus pode invadir também as células das vias aéreas de uma civeta. Ou um dromedário. Ou um pangolim. Uma vez nesse novo hospedeiro, o novo vírus começa a se multiplicar e pode ou não causar doença. Pode ser que nesse novo hospedeiro a quantidade de vírus circulando no corpo (e na saliva, nas fezes e nas outras secreções) seja muito maior do que aquela existente no hospedeiro original, no caso o morcego. Daí esses hospedeiros considerados intermediários – e que costumam ter mais contato com humanos do que os originais – podem acabar agindo como amplificadores do vírus. Pode ter sido esse o caso dos porcos no sul da China quando eclodiu a epidemia da chamada gripe suína: o vírus saltou de aves migratórias para porcos, e deles para os humanos. E pode ter sido o caso da SARS, da MERS e da 2019-CoViD.
Sim, esse é oficialmente o nome da doença, ao menos segundo a OMS desde meados de fevereiro. Significa “2019-Coronavirus-disease”, ou “doença do coronavírus de 2019”. A mudança faz sentido. Antes os artigos se referiam a ela como “doença pelo novo coronavírus”, um nome que pode ficar desatualizado se, digamos, amanhã identificarem um coronavírus ainda mais novo causando doença em outra região do planeta. Também se usava o termo “coronavírus de Wuhan”, mas a Organização Mundial da Saúde tem evitado termos com referências a lugares, a animais ou a grupos de pessoas. Primeiro porque essa denominação pode estar simplesmente errada e amanhã se descobrir, por exemplo, que o vírus que se imaginava ter surgido em Wuhan tenha vindo na verdade de outro lugar (ou o caso da Gripe Espanhola, que não tinha nada de espanhola e só ganhou esse nome porque a Espanha foi o primeiro país a reconhecer que sofria da epidemia, enquanto o resto da Europa suprimia as notícias para que o moral das tropas não se abalasse em plena Primeira Guerra Mundial). Em segundo lugar, uma denominação pode ser estigmatizante e afetar o turismo local por muito tempo, mesmo que já não haja mais novos focos da doença por ali ou se novos focos surgirem em outros lugares.
Obs.: enquanto a doença recebeu o nome de 2019-CoViD, o vírus foi batizado de SARS-CoV-2, que significa “coronavírus da síndrome respiratória aguda grave número 2”, já que a número 1 aconteceu em Hong Kong e nos seus arredores em 2002. 
Em algum momento de 2019, os caminhos de um humano e do SARS-CoV-2 se cruzaram. Como os noticiários propagaram recentemente, esse encontro pode ter ocorrido no mercado de frutos-do-mar de Wuhan, que além de animais aquáticos vendia também outros tipos de animais encontrados dentro e fora da China. E embora as autoridades sanitárias não tenham encontrado nenhum pangolim em seus viveiros, isso pode ser explicado pelo fato de que o animal provavelmente estava muito bem escondido, porque os chineses têm combatido duramente o tráfico desses animais. Ser pego com um pangolim na China pode resultar em dez anos de prisão. Mas isso não detém os contrabandistas, só deixa a carne e as escamas (usadas na medicina tradicional) muito mais caras. No entanto, como veremos mais à frente, o padrão de transmissão do vírus não parece indicar que o seu salto dos morcegos para os pangolins e finalmente para nós humanos ocorreu apenas no mês de dezembro de 2019. O mercado de frutos-do-mar de Wuhan pode ter sido palco de um surto, mas não necessariamente foi a origem da doença.
O anúncio de que os primeiros casos da doença em humanos estavam relacionados ao mercado de Wuhan levou a todo tipo de comentários e reportagens em tom xenofóbico sobre os hábitos alimentares supostamente bizarros dos chineses. Circularam imagens de uma suposta sopa de morcego (que no fim se acabou descobrindo que eram fake news), de um mercado vendendo cobras vivas (que fica na verdade na Indonésia) e mais uma enxurrada de notícias falsas e que alimentaram em alguns casos xenofobia e violência contra chineses e outros asiáticos em diversos lugares do mundo. É verdade que a China volta e meia aparece nos noticiários do Ocidente pelos hábitos alimentares considerados exóticos de alguns de seus cidadãos endinheirados, mas todas as culturas tendem a classificar como exóticos os hábitos alimentares de outros povos. É bom lembrar que considerar a carne de animais exóticos como uma iguaria não é de forma nenhuma uma exclusividade dos chineses. Mesmo no Brasil, a carne de capivara, paca, cotia, tatu ou jacaré é consumida em alguns círculos, e há pessoas que pagam caro para obtê-la, mesmo que (e principalmente se) por meios ilegais. Comer coração e moela de frango ou uma feijoada com orelha, focinho e rabo de porco é corriqueiro por aqui, mas pode chocar pessoas de outras regiões do mundo. Em alguns lugares do Brasil, comer tanajuras (rainhas das formigas saúva) é um hábito comum. No México, grilos fazem parte da culinária local. Na França, restaurantes caros servem lesmas, e na Sardenha come-se queijo coberto com larvas. O conceito de “exótico”, “estranho” ou “nojento” varia muito de lugar para lugar, e tende a incluir apenas aquilo que não é consumido pela população local.

O consumo de animais de caça, em qualquer lugar do mundo, pode colocar humanos em contato com vírus de outras espécies. Cada manipulação de carne ou vísceras de um animal, mesmo doméstico ou de rebanho, é uma oportunidade para um salto de um vírus a partir de uma espécie para o organismo humano. Um pequeno corte na pele pode deixar o patógeno em contato com o nosso sangue e dar origem a uma nova infecção (no meu texto sobre a origem da AIDS, citei essa como a via mais provável de contato inicial entre o vírus da imunodeficiência símia dos chimpanzés e mangabeus e os humanos, dando origem às diferentes linhagens de HIV). No caso dos animais selvagens, a chance de que carreguem consigo uma variedade maior de vírus, ou mesmo que tenham entrado em contato com vírus de outras espécies, é maior.
É pouco provável que o salto do vírus de um pangolim para um humano tenha ocorrido no mercado de Wuhan. No entanto, é possível que algum funcionário do mercado tenha entrado em contato previamente com outra pessoa infectada e tenha ido trabalhar no mercado depois de se infectar. O mercado de animais aquáticos de Wuhan está de fato ligado a um surto (uma pequena epidemia contida em uma área delimitada), e muitos dos primeiros casos registrados tiveram alguma relação com o local. Isso motivou o fechamento do estabelecimento pelas autoridades chinesas no início de janeiro, mas tudo indica que o salto para humanos não aconteceu ali. Segundo um artigo publicado no Lancet, há pelo menos um caso em que os sintomas se iniciaram em 1° de dezembro de 2019 (dez dias antes do primeiro caso surgir no mercado), e que não tem vínculo epidemiológico nenhum com o local - ou seja, não visitou nem consumiu animais vendidos lá.
É possível que tanto o paciente de 1° de dezembro quanto o paciente do mercado tenham entrado em contato com uma pessoa, talvez assintomática. Se continuarmos indo para trás, provavelmente chegaremos ao caso-índice, ou seja, a pessoa que primeiro se infectou - talvez com o contato com um pangolim, não se sabe. No organismo dessa pessoa, o vírus pode ter começado a se replicar e algumas de suas cópias podem ter sofrido mutações que se adaptaram à fisiologia das células humanas. Capazes de se encaixar em receptores das células das vias aéreas (e talvez também do trato gastrointestinal) de seres humanos, essas novas cópias virais passaram a ser transmitidas de uma pessoa para outra. Já não era preciso ter mais pangolins para passar o vírus de novo para as pessoas: o vírus agora conseguia ser transmitido entre seres humanos. Esse é um passo crucial na evolução de uma epidemia, e no caso do SARS-CoV-2 parece ter ocorrido ainda em 2019.
Os primeiros casos dentro de Wuhan podem ter ocorrido de forma silenciosa. Durante o inverno, uma profusão de vírus respiratórios (incluindo os causadores de resfriados e da gripe) costuma acometer as pessoas, o que torna difícil perceber se há algo mais grave acontecendo. Aparentemente, um médico de Wuhan havia percebido um padrão incomum nos casos de síndrome respiratória na cidade no fim de 2019, e reportou o fato para as autoridades. Foi reprimido e perseguido, acusado de alarmismo e de provocar pânico - e posteriormente morreu vítima do próprio coronavírus. Com o passar dos dias, as autoridades sanitárias chinesas perceberam que realmente havia uma nova doença circulando na região de Hubei, especialmente na sua capital Wuhan, uma cidade com 11 milhões de habitantes que fica exatamente na intersecção entre uma linha imaginária vertical traçada a partir de Hong Kong e uma horizontal a partir de Xangai.
Provavelmente o início insidioso da doença permitiu que ela se espalhasse sem chamar tanto a atenção e assim chegasse a outras cidades chinesas, embora a esmagadora maioria dos casos continuasse em Wuhan. As autoridades chinesas provavelmente tentaram esconder ou minimizar a existência dessa nova doença tal como tentaram fazer com a SARS em 2002 (algo bastante típico de regimes autoritários sejam eles de qualquer matiz político-ideológico – a ditadura militar brasileira tentou fazer a mesma coisa com a epidemia de meningite que ocorreu em São Paulo na década de 1970). Afinal de contas, notícias sobre uma nova doença contagiosa prejudicariam muito o comércio internacional, o turismo e as relações econômicas da China – como de fato o fizeram. Mas não deu certo. Quando as autoridades sanitárias chinesas se deram conta de que realmente havia uma nova doença circulando no país e que ela poderia ter efeitos iguais ou ainda maiores que a SARS de 2002, mudaram para o outro extremo: de negar e tentar suprimir as notícias, colocaram a cidade de Wuhan em quarentena. Nada entraria ou sairia da cidade. Houve quem acusasse os chineses de extremo autoritarismo, e houve quem aplaudisse a coragem e a determinação de colocar em quarentena uma cidade de 11 milhões de habitantes. Ambos os lados possuem bons argumentos.
Aos olhos dos chineses, a medida parecia justificável, porque alguns dias depois da eclosão da epidemia ocorreria o Ano Novo Chinês. E o Ano Novo Chinês é simplesmente o maior evento de migração sazonal do planeta, muito maior do que o Hajj muçulmano ou qualquer evento na Índia. Centenas de milhões de chineses viajam no período de festividades para encontrar seus familiares. Pessoas saem de Pequim para Xangai, de Xangai para Macau, de Macau para Xian, de Xian para Tianjin, de Tianjin para Pequim... Se pessoas saíssem em massa de Wuhan rumo às outras cidades da China, a epidemia seria muito mais difícil de ser contida.
Além de isolar a província de Hubei e sua capital Wuhan, os chineses tomaram outra medida drástica que pode ser interpretada como um misto de engenhosidade, audácia e preocupação: ergueram um hospital inteiro, com mil leitos, em dez dias -  usando materiais pré-fabricados e toda a infraestrutura que um gigante como a China tem à sua disposição.
No entanto, só colocar Wuhan em quarentena e construir hospitais não seria suficiente, visto que novos casos já haviam sido detectados em outras cidades chinesas. E se o vírus chegasse a outros países? Por mais gigantesca que fosse a China, ela talvez fosse incapaz de controlar a epidemia sozinha. Por isso, ao contrário do que ocorreu com a SARS em 2002, dessa vez os chineses não ocultaram informações. Todos os boletins epidemiológicos e todas as novas descobertas sobre o vírus têm sido divulgados de forma transparente para o resto do planeta. E não só a China tem adotado essa postura. Todos os trabalhos científicos sobre o SARS-CoV-2 de todos os cantos do planeta estão sendo disponibilizados gratuitamente pelas companhias de publicação científica, em um esforço para difundir e aumentar o conhecimento sobre o novo vírus. Um pequeno lembrete sobre a ciência: ela depende do livre fluxo de informações e do compartilhamento de descobertas sem barreiras ideológicas ou comerciais, porque os cientistas se apoiam uns nos ombros dos outros. 


Foi graças a esse fluxo intenso de informações que conseguimos aprender algumas coisas importantes sobre a nova doença. A primeira delas, que é uma boa notícia, é que ela nem de longe parece ser tão mortal quanto a SARS de 2002. A taxa de mortalidade gira em torno de 2%, embora provavelmente  esse número seja bem menor visto que só pesquisamos a doença nos indivíduos que possuem sintomas, reduzindo muito o denominador da fração. Para efeito de comparação, a SARS matava cerca de 10% das vítimas, e o Ebola pode passar de 50% de mortalidade, tendo chegado a 90% em alguns surtos isolados.
Se a nova SARS parece ser bem menos letal que a primeira, por outro lado ela parece se disseminar com mais facilidade. Pode inclusive ser transmitida enquanto ainda não há sintomas respiratórios, ao contrário do que ocorria com a primeira SARS e a MERS. Acredita-se que ela tenha um R0 em torno de 2 (um número que pode mudar com novos dados). O R0 é basicamente o número de pessoas, em média, que uma pessoa com uma determinada doença acaba infectando. Para efeito de comparação, o sarampo tem um R0 que pode chegar a 18, sendo a doença mais contagiosa que conhecemos, seguida de perto pela coqueluche.

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Uma compilação de dados de letalidade e transmissibilidade (R0) de diversos vírus, feita pelo @vaccinologist no início da epidemia. Naquela época, os dados ainda apontavam para uma mortalidade de 4%, o dobro da que vemos hoje. Os dados da tabela podem ser encontrados em publicações específicas sobre esses diferentes vírus, mas o Dr Melvin Sanicas @vaccinologist fez um belo trabalho em compilar tudo em uma tabela só. Uma tabela com dados semelhantes, mas focada nos coronavírus, pode ser encontrada aqui.

No entanto, esse número sozinho não representa muita coisa. Um R0 de 2 pode significar que cem pessoas transmitem a doença para outras duas pessoas chegando a duzentos casos, ou que dessas cem pessoas noventa e nove não transmitam para ninguém e uma única pessoa, por algum motivo, transmita para outras cem. Na epidemia de SARS em 2002, foram notórios os casos de pacientes atendidos em hospitais e que transmitiram a doença para dezenas de profissionais de saúde. Além disso, o R0 não diz se a transmissão é maior no período assintomático ou nos primeiros cinco dias de sintomas, se é maior entre crianças, adultos ou idosos, etc. Em suma, é um número vazio quando tirado de contexto. Isso não impediu que um epidemiologista de Harvard escrevesse no twitter que "nunca havia visto um R0 de tamanha magnitude" - o que gerou uma onda de alarde e histeria. O post foi retweetado mais de quinze mil vezes em poucos dias.
A facilidade com que o vírus é transmitido sugere que ele já circula entre humanos há mas tempo, possivelmente semanas ou meses do surto no mercado de animais aquáticos de Wuhan. Vírus que saltaram recentemente de animais para humanos têm maior dificuldade de ser transmitidos de uma pessoa para outra, porque não estão tão adaptados às proteínas de superfície das células humanas - seu "encaixe" ocorre com mais dificuldade. Nesses casos, a transmissão do vírus de animais para humanos costuma ter um papel mais importante do que na epidemia que estamos observando agora. Ou seja, não há novos casos sendo adquiridos a partir de pangolins, morcegos ou outros animais. Só houve um único salto para humanos, e ele deve ter ocorrido em uma localidade distante dos grandes centros - caso contrário, veríamos um vírus muito menos adaptado à transmissão entre humanos se espalhando. É possível que o SARS-CoV-2 já tenha circulado em pequenos grupos humanos no interior da China ou em alguma outra região da Ásia, talvez em pessoas que caçam e manipulam pangolins, e que tenha sofrido pequenas mutações pontuais quando saltava de um indivíduo para o outro, tornando-se cada vez mais adaptado ao organismo humano. Uma pessoa infectada pode ter levado esse vírus para os arredores do mercado, ou mesmo para dentro dele. Talvez não houvesse nenhum pangolim no mercado de Wuhan em dezembro de 2019. Uma pessoa infectada com o vírus que saltou para ela a partir de outra pessoa, que o adquiriu de outra pessoa no interior, que o adquiriu de outra pessoa pode ter sido suficiente para iniciar o surto, desde que a primeira pessoa da cadeia tivesse tido contato com um pangolim. Um vírus que sofria mutações e se adaptava à transmissão entre humanos pode muito bem ter sido notado apenas quando chegou a um grande centro onde teve oportunidade de ser transmitido para uma quantidade muito maior de pessoas - pra de lá irradiar pelo mundo em mutações que resultariam em diversas variedades.
A exemplo da SARS e da MERS, a 2019-CoViD é transmitida por via respiratória através de gotículas, o que significa que apenas pessoas que estão em um raio de 2 metros de uma pessoa doente ou em um mesmo ambiente fechado estão sob risco - assim como aquelas que tocarem superfícies contaminadas com secreções ou gotículas. Mas ao contrário de outras doenças virais transmitidas pelas vias aéreas como a gripe, a 2019-CoViD não provoca espirros ou coriza na maioria das pessoas. Seus principais sintomas incluem febre, tosse seca, mal-estar e falta de ar; em alguns casos, eles vêm acompanhados de diarreia e perda de apetite. O vírus parece ter uma preferência apenas pelas células da porção inferior das nossas vias aéreas - ou seja, os pulmões, poupando nariz e garganta. Algumas evidências sugerem que o vírus também tenha afinidade pelas células dos nossos intestinos e seja eliminado nas fezes, fazendo com que o uso de latrinas com jatos de descarga que lançam aerossóis no ambiente seja uma potencial via de contaminação, tanto em locais públicos quanto em domicílios em que uma pessoa tem o vírus, mesmo sem manifestar sintomas. É mais um motivo para lavar as mãos após ir ao banheiro, visto que essas partículas de aerossol podem se depositar sobre superfícies.
Ainda que seja transmitido pelo ar, o vírus não parece sobreviver muito tempo no ambiente. É óbvio que pode sim permanecer em um corrimão ou em uma maçaneta, assim como na pele das mãos de pessoas que acabaram de espirrar ou tossir, tal como outros tantos vírus. Mas não sobrevive por semanas no ambiente, a ponto de ser necessária alguma preocupação com encomendas que vieram da China. Tudo indica que, tal como outros coronavírus associados à SARS, o SARS-CoV-2 sobrevive no ambiente por até 96 horas. No nosso corpo, o período de incubação (o intervalo entre a pessoa adquirir o vírus e desenvolver os primeiros sintomas) parece ser em média 6,4 dias, variando de 2 a 11 - uma informação importante para os muitos países que têm deixado em quarentena aquelas pessoas que vieram recentemente das regiões afetadas.

O quão perigoso é o coronavírus de 2019? Uma análise de todos os casos na província de Hubei (incluindo Wuhan e arredores) até o dia 11 de fevereiro indica que, de 44 mil casos confirmados (total de 72 mil, incluindo suspeitos e diagnosticados clinicamente sem comprovação molecular ou sorológica), houve 1023 mortes, o que dá aproximadamente 2,3% de mortalidade geral. No entanto, esse número variou muito de acordo com a faixa etária e aumentando progressivamente com a idade, com apenas um óbito entre as 965 vítimas de até 19 anos e 208 óbitos entre as 1408 vítimas com mais de 80 anos (o que dá 14,8% de mortalidade nessa faixa etária específica). Em números absolutos, a maior parte dos casos (mais de 80%) ocorreu em pessoas entre 30 e 79 anos. Mais de 90% dos óbitos ocorreram na população acima dos 50 anos. Fatores de risco importante para o óbito foram doenças subjacentes, como diabetes e doenças cardiovasculares, indicando que pessoas com a saúde mais debilitada sofrem mais impacto ao contrair o vírus. Isso contrasta com outros vírus como o da gripe espanhola, que matava preferencialmente adultos jovens e saudáveis.
Quanto à severidade da doença, 80,9% dos casos foram classificados como leves, enquanto 13,8% foram considerados graves e 4,7% foram considerados críticos. Provavelmente um número enorme de pacientes sem sintomas não entrou na conta, mas tudo indica que esses podem transmitir a doença para outros. O número de pacientes graves e críticos pode parecer baixo, mas em uma cidade de 10 milhões de habitantes (considerando o improvável pior cenário, em que todos contraiam o vírus) isso significaria quase 2 milhões de pessoas necessitando de internação hospitalar ou mesmo de um leito de UTI. Nossos hospitais andam já no limite (ou além dele) e não dariam conta de absorver tanta gente, mesmo se considerarmos que esses pacientes não adoecerão todos ao mesmo tempo. Outras epidemias sazonais, como as de gripe, não costumam exigir tanto dos hospitais e do restante do sistema de saúde.
A análise dos casos ao longo do tempo sugere que a epidemia na China está sendo contida, e que as medidas de quarentena e controle estão dando resultado. Nos dias anteriores a 11 de fevereiro, tem havido uma queda importante no número de casos novos. No entanto, a proximidade com o retorno das atividades após o Ano Novo põe a China em alerta, porque a curva pode voltar a ficar ascendente com a maior circulação de pessoas.

Gráfico analisando a evolução do número de novos casos na China ao longo do tempo. Fonte: https://drive.google.com/file/d/1CbsG_zfvOmTWK8rCzr7XM2vSfSV7MpUM/view

Ao mesmo tempo, começaram a surgir novos focos da doença fora da China. Durante todo o mês de janeiro, pouquíssimos casos haviam sido registrados além das fronteiras chinesas, e a maior parte era de chineses ou de pessoas que haviam viajado a Wuhan ou tido contato com pessoas de lá. O primeiro caso no Japão, por exemplo, foi de um guia turístico que havia acompanhado um grupo de chineses vindo de Wuhan. A vigilância nos portos e aeroportos foi redobrada ao redor do planeta. Em relação aos chineses, o restante do mundo tinha uma vantagem: já sabia que havia um vírus novo circulando e poderia tomar medidas preventivas de forma mais eficiente e precoce - compare com os chineses, que quando se deram conta de que havia uma doença nova circulando ela já estava fazendo novas vítimas na casa das centenas em Wuhan e se espalhando para outras cidades.
Só que isso tem mudado nos últimos dias. Novos surtos da doença (pequenas epidemias contidas em uma região limitada) têm ocorrido em países como Japão, Tailândia e Singapura, e recentemente também na Coreia do Sul, na Itália e no Irã, com dezenas ou centenas de casos (a Coreia do Sul já contabiliza mais de mil). Passageiros de um navio de cruzeiro rumo ao Japão começaram a apresentar sintomas e, apesar de o navio ter sido colocado em quarentena com todos os passageiros confinados em seus quartos, o navio já tem registradas quase setecentas pessoas com o vírus - com três óbitos. Por sorte, os números nesse navio têm se mantido estáveis nos últimos dias, sem novos casos.
A Organização Mundial da Saúde elevou o nível de alerta em relação ao SARS-CoV-2, o que simplesmente quer dizer que a situação deve ser analisada com atenção, tal como a epidemia de zika em 2015 e a do sarampo em 2018/2019. Você pode acompanhar em tempo real o número de casos registrados de doença pelo coronavírus de 2019 aqui.
Embora a OMS não tenha ainda declarado que estamos diante de uma pandemia (definida pela transmissão sustentada da doença em diferentes continentes), tudo indica que isso ocorrerá em breve. O aumento no número de casos no norte da Itália indica que já há um foco de transmissão sustentada na Europa - ou seja, independente de pessoas vindo da China. O que mudará com a declaração da OMS dizendo que há uma pandemia de 2019-CoViD? Na prática, pouquíssima coisa. As medidas de rastreio e vigilância nos portos e aeroportos permanecerão as mesmas e serão estendidas para outros países, como já tem sido recomendado). O crescimento da lista de países com transmissão local na definição de caso suspeito obviamente torna o rastreio mais difícil, porque uma quantidade maior de aviões e navios precisa ser monitorada e rastreada. Assim que a OMS declarar que estamos testemunhando uma pandemia, os jornais lançarão manchetes apocalípticas de todos os tipos, mas é bom lembrar que também tivemos pandemias recentes de influenza H1N1 (2009) e zika (2015). Sobrevivemos a todas e continuamos aqui, firmes e fortes. A pandemia desse coronavírus não terá sido a primeira, e tampouco será a última.
Nos casos fora da China, chama a atenção a mortalidade sensivelmente mais baixa do que no país de origem da epidemia. No Japão e na Coreia do Sul, a mortalidade não chega a 1%. Um número proporcionalmente elevado de óbitos tem ocorrido no Irã (139 casos com 19 óbitos, dados de 26/02), mas provavelmente os iranianos estão deixando passar muitos casos. Singapura e Tailândia têm dezenas de casos, mas ainda não registraram óbitos. É possível que a letalidade da doença seja realmente menor que 1% e que muitos casos na China não tenham sido contabilizados porque as pessoas contraíram formas leves ou mesmo assintomáticas da doença e se recuperaram rapidamente. Contabilizar esses casos - como tem ocorrido nos outros países em relação a cidadãos que voltam das regiões afetadas dentro e fora da China - acaba aumentando o denominador da fração e portanto diminuindo a proporção de óbitos. Quantos casos assintomáticos ocorreram sem ser detectados na China, no entanto, é algo que só pode ser discutido por especulação. Também é possível que esse número baixo reflita uma mortalidade menor nos primeiros dias de sintomas, e que ela aumente com a progressão da doença. Caso isso seja verdade, veremos um aumento no número de óbitos nesses países nos próximos dias. Estudos anteriores indicam que, em média, o intervalo entre o início dos sintomas e a necessidade de admissão da pessoa na UTI por piora clínica é de 10,5 dias.

Devemos ficar preocupados com o coronavírus de 2019? Sim. É uma doença que, como tudo indica, circula entre humanos há relativamente pouco tempo e ainda é pouco conhecida. A vigilância nos portos e aeroportos sobre as pessoas vindo dos países afetados e de seus contactantes é justificada pelo potencial de transmissão da doença, principalmente em pessoas que ainda não desenvolveram sintomas.
Devemos entrar em pânico, estocar mantimentos, saquear lojas e proclamar que é o fim da Humanidade (como alguns temem e provavelmente outros desejam)? Não. Apesar do potencial de transmissão do vírus e das consequências que uma pandemia pode trazer (dificuldade para realizar viagens internacionais, proibição de eventos que envolvam grandes aglomerações), a mortalidade da doença é baixa - 2% no máximo, talvez menos de 1%. A grande preocupação é se os nossos serviços de saúde darão conta da demanda.
No dia 25 de fevereiro foi anunciado o primeiro caso da doença no Brasil, em um brasileiro de 61 anos que esteve no norte da Itália e retornou no dia 21. Procurou o Hospital Israelita Albert Einstein queixando-se de febre, coriza, tosse seca e dor de garganta. O segundo exame confirmando a positividade foi liberado pelo Instituto Adolfo Lutz na manhã do dia 26. O paciente está em bom estado geral, sem necessidade de internação, e foi orientado a permanecer em casa. Os serviços de vigilância epidemiológica agora tentam contatar as pessoas com quem ele esteve em contato ou de quem esteve próximo no voo de volta e após chegar ao Brasil. O que isso muda nas nossas orientações? Nada. Os cuidados que devemos ter a partir de agora são os mesmos que já tínhamos que manter antes, e a vigilância nos portos e aeroportos continuará a trabalhar para que outros casos sejam identificados e isolados a tempo. O grande objetivo é evitar que haja transmissão sustentada do vírus dentro do Brasil, como tem ocorrido na Itália, na Coreia do Sul e no Irã. Caso isso aconteça, é possível que atividades escolares e universitárias sejam suspensas e algumas empresas adotem modalidades de trabalho domiciliar. Pode ser que a vida sofra alguns transtornos, mas nem de longe essa epidemia tem potencial para colocar fim à espécie humana.
Além disso, quando focamos muito nossa atenção no coronavírus de 2019, esquecemos que há outras ameaças que nos rondam, algumas delas tão ou mais sérias do que o vírus que se espalha a partir da China. No ano de 2019, segundo a OPAS, a América Latina teve 2,7 milhões de casos de dengue, sendo que 2 milhões foram no Brasil. O Ministério da Saúde contabiliza um número menor, cerca de 1,5 milhão, mas que ainda assim apresenta um aumento de quase seis vezes em relação a 2018. O número de mortes também aumentou, e tudo indica que 2020 deverá ter números iguais ou até maiores que os de 2019. O mesmo vale para outros países. Até o momento (26/02/2020), os EUA possuem 57 casos confirmados de 2019-CoViD, e nenhum óbito. Mas tiveram algo entre 29 e 41 milhões de casos de gripe, com algo entre 13 e 19 milhões de visitas a unidades de saúde, 300 a 500 mil internações e 16 a 41 mil óbitos. Isso tudo considerando que existe uma vacina para gripe, embora ela tenha como objetivo proteger as pessoas apenas das variedades potencialmente mais graves.

Um dos motivos que traz preocupação para a maioria das pessoas em relação ao coronavírus de 2019 é o fato de que ainda não dispomos de vacinas nem de um tratamento eficaz contra ele. É claro que diversos laboratórios e hospitais pelo mundo estão correndo atrás disso nesse exato momento, mas muito provavelmente não teremos uma solução imediatamente. A companhia farmacêutica Gilead está realizando experimentos com uma medicação chamada Remdesvir, que teve sucesso em evitar a replicação viral em macacos com MERS (embora tenha feito o mesmo em macacos com Ebola mas isso não se traduziu em melhora clínica em humanos). Outros arriscam tratamentos com medicações  antivirais já existentes, testando se possuem efeito sobre o novo vírus. Protocolos de diferentes hospitais incluem o uso (isoladamente ou em combinação) de drogas como Ribavirina, um antiviral com ação sobre diversas variedades de vírus incluindo o da hepatite C; Oseltamivir (Tamiflu), a droga mais usada para tratamento de gripe; e Lopinavir-Ritonavir (Kaletra), um antirretroviral que até pouco tempo atrás fazia parte dos esquemas de tratamento do HIV. Todos esses vírus têm algo em comum com os coronavírus: possuem material genético feito de RNA, o que pode significar que algumas dessas medicações realmente tenham efeito sobre ele. Alguns afirmam que até mesmo drogas contra o protozoário causador da malária, como a Cloroquina, podem ter algum efeito sobre o vírus. Médicos de um hospital na Tailândia afirmam que conseguiram melhorar sensivelmente a condição clínica de uma paciente chinesa com o uso de Kaletra e Tamiflu em altas doses, mas ainda não temos estudos maiores comprovando a eficácia desse esquema. Ou seja, ainda não podemos dizer que foi encontrada uma cura.
Qualquer outro esquema propagado como "cura" para o coronavírus deve ser encarado com uma boa dose de ceticismo, visto que nem os laboratórios mais à frente nas pesquisas apresentaram uma droga ou combinação de drogas com resultados convincentes. Especialmente quando esses esquemas proclamarem que "melhoram a imunidade" com vitaminas ou algo parecido. Muito provavelmente, quem adquirir alguma dessas "fórmulas milagrosas" estará jogando dinheiro fora. A imunidade é algo complexo demais para ser reduzida a fenômenos como "aumentar" ou "diminuir". Existem de fato situações em que a imunidade de um indivíduo está realmente baixa, como nas pessoas com AIDS, naquelas que receberam quimioterapia ou transplantes ou nas que precisam usar altas doses de anti-inflamatórios como corticoides por causa de doenças auto-imunes. Para essas pessoas, temos medidas para aumentar a imunidade. Para todas as outras, alcançamos resultados muito melhores orientando boa alimentação, sono regular e adequado e atividades que reduzam o estresse do que por meio de medicamentos ou vitaminas.
Quanto ao desenvolvimento de uma vacina, o primeiro passo já foi dado. Cientistas na Austrália e no Japão conseguiram isolar o vírus e agora correm atrás de uma vacina. Entretanto, as próximas etapas não podem ser feitas de modo apressado e atropelado. Uma vez desenvolvida uma vacina, ela precisa ser testada - primeiro em pequenos grupos de voluntários, depois em grupos maiores. O objetivo é tentar responder a algumas perguntas muito importantes: é realmente eficaz? Qual a dose da vacina que é suficiente para proteger um indivíduo? Pode ser aplicada de uma única vez ou precisa de reforços após alguns meses? Tem efeitos colaterais? É segura em crianças, gestantes e pessoas com imunidade muito baixa? Protege por quanto tempo? Só depois de responder a essas perguntas a produção da vacina pode atingir escalas maiores e finalmente chegar à população. Isso exige pelo menos alguns meses de pesquisa, o que significa que só em meados do segundo semestre teremos uma vacina disponível, no mínimo.

Até lá, o que podemos fazer para nos proteger do coronavírus? As recomendações são as mesmas em relação a quaisquer outros vírus de transmissão respiratória: higiene e cuidados pessoais. Proteger as mãos com um lenço descartável ao tossir e espirrar, ou usar a fossa cubital (a dobra do cotovelo). Higienizar bem as mãos sempre (com água e sabão ou álcool gel), principalmente após ir ao banheiro, tocar superfícies ou as mãos de outras pessoas e antes de comer. Higienizar também os celulares, algo que muita gente esquece, porque sua superfície pode carregar vírus (e bactérias, e outras coisas). Evitar levar as mãos aos olhos, nariz e boca, já que são mucosas nas quais o vírus pode penetrar e infectar. Evitar o contato com aglomerações e contato próximo com pessoas doentes. Aglomerações devem ser evitadas principalmente se você estiver doente. Esses cuidados com a higiene devem ser redobrados nos aeroportos, e viajar para as regiões mais afetadas pode não ser uma boa ideia. O uso de máscaras não é recomendado para se proteger do coronavírus - mas é importante que ela seja usada se você estiver doente (para não transmitir para os outros) e principalmente se você for um profissional de saúde, potencialmente exposto a pessoas portando o vírus. Segundo o Ministério da Saúde, pode ser a máscara cirúrgica, embora para procedimentos que envolvam aerossolização (intubação orotraqueal, escarro induzido) os profissionais de saúde envolvidos devam utilizar máscara N95.
Outra medida importante é a vacinação contra outras doenças respiratórias. No Hemisfério Norte é inverno, e doenças respiratórias são mais comuns nessa época. Muitas delas, como a gripe e os resfriados, podem causar sintomas indistinguíveis daqueles relacionados ao coronavírus. Doenças respiratórias preveníveis através de vacinas, como a gripe e o sarampo, podem sobrecarregar o sistema de saúde e dificultar o atendimento a pessoas com a 2019-CoViD. Além disso, precisar ir ao pronto-socorro por causa de uma gripe ou de sarampo pode não ser uma boa ideia em plena epidemia de coronavírus, porque prontos-socorros são aglomerações e o paciente sentado do seu lado pode transmitir o vírus para você. Ou seja, quanto mais protegido contra outras doenças você estiver, menos exposto você estará.

Outra medida importante é ficar atento às notícias e evitar consumir materiais sensacionalistas ou alarmistas. A mídia tradicional não tem feito um bom trabalho na hora de noticiar a epidemia e frequentemente usa termos como "vírus mortal" para se referir ao SARS-CoV-2. Ele não é tão mortal quanto muitos outros vírus, e manchetes assim só contribuem para disseminar o medo. Mas algumas fontes têm propositalmente difundido fake news, tanto para conseguir views quanto por servir a propósitos conspiracionistas mesmo. Correram histórias de que o novo coronavírus tinha sido desenvolvido em laboratório e a prova disso era que havia em sua superfície proteínas similares às do HIV. Fato desmentido porque as tais proteínas eram similares às de diversos outros vírus inclusive o da SARS e o da MERS (ou seja, seria como dizer que nós humanos somos parentes próximos das aves porque temos sangue quente, ignorando nossa proximidade ainda maior com o restante dos mamíferos). As análises filogenéticas de seu RNA permitem que o encaixemos muito bem na família dos coronavírus e afirmemos com segurança que ele surgiu de outro coronavírus de forma natural, sem nenhuma intervenção humana. E convenhamos: um indivíduo que tem o objetivo de acabar com a espécie humana e para isso desenvolve um vírus que tem menos de 2% de mortalidade deve ser bastante incompetente.
Em tempos de redes sociais, a higiene da informação é tão importante quanto a higiene física de lavar as mãos e evitar tocar nas próprias mucosas. Informe-se através de fontes confiáveis, e mesmo assim desconfie se uma informação veiculada for bombástica demais. Cheque as fontes, confira se determinada notícia está sendo veiculada em diferentes portais de notícias, de preferência internacionais. Para dados mais específicos sobre o vírus, dê preferência para publicações e artigos de revistas como a Nature e a Science (para dados moleculares) e o JAMA, British Medical Journal, New England Journal of Medicine e Lancet pra publicações médicas. Ao escrever este texto, tentei me restringir a publicações dessas fontes e de outras confiáveis como o CDC, o Ministério da Saúde e o site da Johns Hopkins que monitora os casos em tempo real, lançando mão de notícias de portais da grande mídia apenas quando não havia outra alternativa. É importante tomar cuidado com as redes sociais para não se deixar levar pelo hype do medo e da histeria para os quais somos direcionados o tempo todo. Precisamos pensar duas vezes antes de clicar em compartilhar ou retweetar as informações que chegam até nós. Mais uma vez: precisamos nos preocupar com o coronavírus, mas da mesma forma com que nos preocupamos com a dengue, a gripe ou o sarampo. Não precisamos cancelar compras internacionais só porque vieram da China e muito menos agir de forma hostil com chineses e outros asiáticos, como já ocorreu aqui no Brasil. Há 1,3 bilhão de pessoas na China, e apenas 78 mil casos incluindo confirmados e suspeitos. Isso representa 0,006% dos chineses, e você pode dobrar esse número pensando nos assintomáticos que mesmo assim a proporção continuará ínfima. E se surgirem outros casos de transmissão em outros países? Trataremos com hostilidade também os italianos, coreanos, iranianos e japoneses? Rastreio e vigilância são coisas completamente diferentes de hostilidade e xenofobia, é bom esclarecer. Uma coisa não justifica a outra.
Por ora, o que podemos fazer é seguir as recomendações já descritas e ficar atentos às notícias das fontes confiáveis. Tudo indica que a quantidade de novos casos na China está de fato caindo, o que é animador. Por outro lado, os novos números no Irã, na Itália e na Coreia do Sul trazem preocupação. É possível que a doença se espalhe por outros países e que novos casos cheguem ao Brasil. Agora que a doença chegou em terras brasileiras, devemos estar preparados. E não só para identificar e isolar contactantes e para adotar e incorporar aquelas medidas simples de higiene e biossegurança em nossas vidas (como lavar e higienizar as mãos com frequência, usar lenços descartáveis e evitar tocar mucosas), mas também para evitar que o pânico e a histeria com um vírus que tem menos de 2% de mortalidade causem muito mais impacto sobre as nossas vidas do que ele próprio.

Em tempo: este texto foi escrito em 24 de fevereiro de 2020, muito antes do desenrolar de importantes eventos ligados à epidemia. Meu texto mais recente sobre o assunto foi escrito 3 semanas depois: http://papirosgermesefoguetes.blogspot.com/2020/03/com-o-avanco-da-doenca-desde-o-final-de.html

VACINAS CONTRA COVID-19 VERSUS HIV: A "POLÊMICA" DESNECESSÁRIA DE HOJE

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