segunda-feira, 1 de abril de 2019

Uma fábula sobre coelhos


Em meados do século XIX, a Austrália passava por um novo ciclo de colonização. O território, que inicialmente era uma colônia penal, começava a receber mais e mais cidadãos ingleses, escoceses e irlandeses, em parte devido à descoberta de ouro e em parte pela expansão da criação de gado até o interior australiano. Um desses colonizadores britânicos era Thomas Austin, um apaixonado por caça cujo hobby vinha desde a juventude na Inglaterra. Em dezembro de 1859 ele levou para a Austrália doze casais de coelhos europeus (Oryctolagus cuniculus) para que servissem como caça e dessem um clima mais “europeu” à sua propriedade australiana. Que mal poderia acontecer, não é mesmo? Outros colonos fizeram a mesma coisa nos anos seguintes, soltando mais coelhos em suas fazendas. Os pequenos animais já haviam sido introduzidos antes na Austrália, mas para servir de alimento e, na maior parte das vezes, criados em cativeiro, e por isso sua população se manteve estável. Depois de Thomas Austin, não mais. Sem predadores naturais e se reproduzindo livremente no ritmo pelo qual os coelhos são famosos por se reproduzir, logo sua população explodiu. Dizer que a situação “saiu do controle” é eufemismo. Em menos de um século, eles já eram mais de meio bilhão, tornando-se provavelmente o caso mais dramático de uma espécie invasora em toda a História. Viraram uma verdadeira praga. Competiam com os marsupiais nativos por alimento, destruíam a vegetação expondo o solo à erosão, devastavam plantações e pastagens para o gado... A ameaça chegava até mesmo à acácia, a planta-símbolo da Austrália (e o motivo pelo qual o verde e o amarelo estão em todos os uniformes de atletas australianos, mesmo que essas cores não estejam na bandeira do país): os coelhos comiam os brotos dos espécimes mais jovens e não permitiam que eles se desenvolvessem.
Era preciso conter os coelhos antes que eles acabassem com a Austrália. Tentou-se de tudo: armadilhas, veneno, cercas de contenção... Nada funcionou, ou pelo menos não funcionou bem o suficiente para evitar que a praga se alastrasse ainda mais. Foi então que alguns cientistas, liderados por um microbiologista australiano chamado Frank Fenner, tiveram uma ideia digna de filme de apocalipse zumbi: liberar um vírus altamente letal, capaz de eliminar todos (ou quase todos) os coelhos que infestavam a Austrália. E não só a Austrália: a Inglaterra e outros países da Europa também enfrentavam problemas causados por explosões populacionais de coelhos. Vieram buscar no Brasil um vírus que tinha como hospedeiro natural uma espécie de coelho nativa do cerrado brasileiro (Sylvilagus brasiliensis), o mixomavírus. Embora não causasse praticamente nenhum sintoma nos coelhos sul-americanos (o que era de se esperar para um organismo que é o reservatório natural do vírus), era devastador contra os coelhos europeus, dando origem a nódulos gelatinosos – chamados mixomas –  que se abriam em úlceras na pele, nas mucosas e nos órgãos internos, levando à morte em até duas semanas. Projeções baseadas em estudos de laboratório falavam em 99% de letalidade. Além disso, o vírus era transmitido através da picada de mosquitos, o que significava que poderia chegar a populações de coelhos sem precisar de contato direto entre cada um deles. A introdução dos mosquitos contendo o vírus foi debatida e considerada polêmica na época, mas ainda assim foi tentada repetidas vezes na primeira metade do século XX. Por razões provavelmente ligadas ao clima e à quantidade de mosquitos, a circulação do mixomavírus na Austrália só ocorreu de fato a partir do início da década de 1950 – e se mantém até hoje. Mais ou menos na mesma época, também foi introduzido na Europa. Foi um sucesso estrondoso: na Austrália, a letalidade chegou a 99,8% no primeiro ano, e em determinados locais mais de 90% dos coelhos morreram (ou seja, com raríssimas exceções, aqueles que sobreviveram foram os que por algum motivo não tiveram contato com o vírus). Estima-se que essa primeira introdução com sucesso do vírus na Austrália, o número de coelhos caiu de 600 milhões para algo como 100 milhões. No entanto, nos anos seguintes a letalidade do mixomavírus foi diminuindo. A cada ano que passava, uma proporção cada vez menor de coelhos morria em decorrência do vírus liberado para controlá-los. Alguma forma de resistência genética ao mixomavírus havia surgido entre os coelhos e se tornado mais comum por um mecanismo de seleção natural, pensaram os cientistas. Ou seja, ao longo dos anos os coelhos resistentes sobreviviam e se multiplicavam, tomando o lugar dos suscetíveis que morriam em massa. Era o que se poderia esperar de uma adaptação entre um hospedeiro e um micro-organismo, certo?
Análises posteriores indicaram que a causa dessa queda inicial na taxa de letalidade do vírus realmente estava ligada à seleção natural. Mas não dos coelhos, e sim do mixomavírus. Os pesquisadores que acompanhavam a epidemia descobriram que o vírus inicial havia dado origem a cinco cepas diferentes, que foram denominadas de I a V baseadas em sua letalidade. A cepa I era a mais agressiva e tinha uma letalidade de 100%, matando em menos de 13 dias. A cepa II tinha mortalidade entre 95 e 99%, levando à morte entre 13 e 16 dias. A cepa III, de letalidade mais moderada, matava entre 70 e 95% dos coelhos, e o fazia entre 17 e 28 dias após o início da infecção. A cepa IV tinha letalidade entre 50 e 70%, e as mortes ocorriam de 29 a 50 dias depois do contato com o vírus. Por fim, a cepa V era a mais branda, com letalidade menor de 50% e sem um período específico para as mortes (não se engane, leitor: 50% de letalidade ainda é muita coisa, e poucas epidemias na História da espécie humana já chegaram a esse ponto; mas para um vírus introduzido especificamente para eliminar ou controlar uma espécie, é possível dizer que 50% de letalidade significa uma letalidade branda). E embora a circulação da cepa I tenha diminuído com o passar do tempo, não houve aumento da cepa V – pelo contrário, eles circulavam cada vez menos ao longo dos anos. Contrariando as previsões daqueles que acreditavam que o vírus diminuiria cada vez mais de letalidade, a cepa mais prevalente, e que se tornou ainda mais comum durante o período de estudo, foi a cepa III, seguida da IV. Por que? Coelhos com as cepas I e II, a mais agressivas, morriam muito rápido – tão rápido que o período em que conseguiam infectar um mosquito para que ele transmitisse o vírus a outros coelhos era muito curto. Por outro lado, coelhos da cepa V viviam bastante tempo, mas suas lesões eram muito pequenas e não havia uma quantidade suficiente de vírus circulando em seu organismo para que um mosquito se infectasse e transmitisse a outros coelhos. As cepas III e IV, que ficavam no meio do caminho, mantinham uma quantidade alta de vírus (não tão alta quanto no caso das cepas I e II, mas suficientemente altas) circulando por tempo suficiente para que o mixomavírus chegasse a mais coelhos. Em resumo, a seleção natural escolheu as cepas mais eficientes em se multiplicar, e não as mais brandas. E isso não ocorreu apenas na Austrália: na Europa a emergência de cepas do mixomavírus seguiu um padrão muito semelhante.
Obviamente, após dez ou vinte anos, a seleção natural também começou a agir nos coelhos, e aqueles que tinham alguma característica genética que conferia resistência ao vírus foram substituindo os mais suscetíveis, e a sua população voltou a aumentar – passando de 100 milhões para algo entre 200 e 300 milhões, embora caça, veneno e cercas de contenção tenham ajudado a controlar a população de lagomorfos também (sim, leitor, essa é uma revelação bombástica: os coelhos não são roedores, são lagomorfos!). Enfim, a relação entre micro-organismos e hospedeiros seguiu seu curso natural e um lado “aprendeu” a tolerar o outro, não é mesmo? Não. A “corrida armamentista” deu uma verdadeira reviravolta e entrou em uma nova fase a partir da década de 1990. Mutações no código genético do mixomavírus deram origem a uma cepa que era incapaz de formar mixomas, mas que conseguia diminuir absurdamente a resposta inflamatória dos coelhos infectados. Uma ótima forma de escapar do sistema imunológico e continuar se proliferando no organismo do hospedeiro sem a resposta esperada por parte das células de defesa. Só que, ao diminuir a resposta inflamatória, o vírus prejudicava também a atividade do sistema imunológico contra outros micro-organismos, incluindo as bactérias da pele, das vias aéreas e da microbiota intestinal. Os coelhos começaram a morrer por causa de uma imunodeficiência grave, com uma queda dramática no número de linfócitos no baço e nos linfonodos, e com focos de infecção em órgãos como pulmões, fígado, baço, rins e coração, além de necrose nos linfonodos em torno do intestino. Sofriam um colapso rápido sob a forma de choque séptico, e apesar da infecção não desenvolviam febre – o que é compatível com um sistema imunológico tão fraco que é incapaz de promover uma resposta inflamatória. O mais curioso (ou bizarro) foi que isso começou a acontecer de forma independente nos coelhos europeus e nos australianos.
E esse provavelmente não é o fim da história. Nada impede que alguns dos coelhos tenham alguma característica genética que dificulte ou compense essa imunossupressão grave causada por essa nova cepa de mixomavírus, e que sobrevivam a ela voltando a povoar o interior da Austrália e os campos da Europa – pelo menos até a próxima etapa dessa corrida armamentista cheia de reviravoltas. No fundo, tanto os coelhos quanto o vírus estão tentando seguir à risca o que fazem todos os seres vivos deste planeta: sobreviver, gerar descendentes e perpetuar sua linhagem.

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