Embora a espécie humana tenha passado por diversas epidemias nos últimos milênios, nenhum micro-organismo teve o impacto que teve um em especial. Sem sombra de dúvida, o prêmio de maior flagelo da Humanidade pertence a alguns protozoários minúsculos que continuam sendo um
fardo para milhões de pessoas nas regiões tropicais e subtropicais de todo o
planeta: os plasmódios, causadores da malária. Provavelmente cruzaram nosso caminho pela
primeira vez há alguns milhões de anos, muito antes do surgimento dos
hominídeos e talvez antes mesmo do surgimento dos primatas – embora saltos
interespécie mais recentes provavelmente tenham ocorrido e continuem a ocorrer
até os dias de hoje e sejam responsáveis pelas espécies de plasmódio atuais que
afetam os seres humanos, como veremos a seguir. Diversas espécies de mamíferos,
répteis e de aves têm seus próprios plasmódios causadores de malária. Talvez
alguns dinossauros tivessem tido malária ou alguma doença semelhante causada
por um protozoário ancestral, como sugere a descoberta de um mosquito preservado em âmbar com oocistos em seu abdome – ainda que
alegações de que ela tenha sido a responsável pela sua extinção no fim do
Cretáceo pareçam um tanto exagerados. Mas a história evolutiva dos plasmódios
começa ainda antes dos dinossauros, e em um lugar surpreendente: o fundo do
mar.
Os plasmódios são protozoários classificados no filo dos Apicomplexa,
que possuem em comum uma estrutura chamada plastídeo, uma pequena organela
incolor localizada em uma extremidade do núcleo de suas células e que por isso
dá nome ao grupo. O plastídeo tem DNA próprio e sua sequência se assemelha
muito à de algumas bactérias capazes de realizar fotossíntese. Também possui
grande semelhança com os cloroplastos de algumas algas como os dinoflagelados,
que formam parte do fitoplâncton. Um parentesco
improvável, visto que um protozoário transita entre o tubo digestivo de mosquitos
e o sangue de vertebrados e o outro faz fotossíntese nas camadas do oceano
perto da superfície. O elo entre as duas criaturas parece ter sido encontrado
com a descoberta de protozoários fotossintetizantes do filo Apicomplexa vivendo como simbiontes no interior de corais. É provável que um
ancestral dos protozoários do filo Apicomplexa tenha sido um simbionte
que entrava no interior das células dos corais e, em uma relação mutuamente
benéfica, oferecia energia por meio de fotossíntese e em troca recebia proteção
por estar no citoplasma de uma célula animal, muito maior. Porém, em algum
momento essa relação se tornou unilateral, com os protozoários perdendo a
capacidade de realizar fotossíntese mas ainda assim vivendo dentro das células
animais. Possivelmente vieram daí os mecanismos utilizados pelos protozoários
do filo Apicomplexa para invadir as células de diferentes espécies de
animais, embora o tipo específico de receptor utilizado para a entrada varie de
hospedeiro para hospedeiro.
Algumas teorias indicam que os ancestrais dos plasmódios
eram parasitas intestinais, porque grande parte dos membros do filo Apicomplexa
conhecidos hoje (como o Cryptosporidium e o Toxoplasma) parasita
intestinos – sendo que o Toxoplasma alterna o intestino de um hospedeiro
felino com os tecidos de outro vertebrado, seja mamífero ou ave.
A origem intestinal do ancestral do Plasmodium poderia explicar sua capacidade
de penetrar em células do fígado, como veremos a seguir, e também sua
reprodução sexuada no intestino dos mosquitos. Em algum momento da história
evolutiva, os protozoários conseguiram se adaptar a mais de um hospedeiro
animal, e com a abundância de artrópodes se alimentando do sangue de animais
maiores, passaram a utilizá-los como meio de transporte entre um animal e outro.
No caso dos plasmódios, os insetos tornaram-se cruciais para o sucesso do
ciclo, pois é no seu intestino que ocorre a reprodução sexuada dos protozoários
– ou seja, a troca de material genético entre diferentes células. Nos
vertebrados, a reprodução é sempre assexuada, ou seja, apenas divisão celular
sem intercâmbio de material genético.
Obs.: está aí outra questão controversa. Há quem afirme que os
ancestrais dos plasmódios surgiram primeiro como parasitas dos insetos e só depois
se tornaram capazes de realizar parte do seu ciclo de desenvolvimento em
vertebrados. Um dos argumentos para essa teoria é que
os ancestrais dos plasmódios provavelmente são mais antigos do que os próprios
vertebrados.
Em linhas gerais, o que a malária faz no organismo dos
vertebrados não difere muito de uma espécie de plasmódio para outra. Assim que
o protozoário é inoculado na circulação do seu hospedeiro intermediário, ele invade
de forma transitória as células do fígado e se multiplica gerando muitas
cópias, que caem na circulação novamente. Esse estágio inicial geralmente dura
poucos dias, embora o P. vivax e o P. ovale sejam capazes de
manter alguns parasitas dormentes no fígado por meses ou mesmo anos sob a forma
de hipnozoítos, possibilitando recaídas muito tempo depois que a
infecção inicial tiver sido curada. Novamente circulando no sangue após passar
pelo fígado, os plasmódios invadem as hemácias, os glóbulos vermelhos do sangue
responsáveis por carregar oxigênio para os tecidos do corpo. Vários plasmódios
invadem as hemácias ao mesmo tempo, e passam por mais um ciclo de multiplicação
que liberará mais parasitas. Esse ciclo nas hemácias possui uma duração fixa,
que é de dois dias em algumas espécies e três dias em outras (pelo menos quando
consideramos as espécies que causam doença em humanos). Quando esse ciclo se
completa, os plasmódios que invadiram as hemácias simultaneamente rompem essas
mesmas hemácias também simultaneamente, para invadir outras hemácias em mais um
ciclo de maturação e ruptura. Quando rompidas, as hemácias liberam na
circulação seu conteúdo interno, cheio de citocinas e outras substâncias que
induzem o famoso acesso malárico, com febre alta, tremores e suor abundante. O
indivíduo permanece assintomático dali em diante até que um novo ciclo se
complete e mais hemácias sejam rompidas. Cronicamente, esse ciclo pode levar à
anemia e, em crianças, atrapalhar o crescimento e o desenvolvimento; no caso do
P. falciparum, que veremos mais à frente, as repercussões tendem a ser mais
graves. Por fim, durante esses ciclos que ocorrem nos glóbulos vermelhos,
alguns plasmódios se diferenciam em gametócitos, formas reprodutivas masculina
e feminina que, se sugadas por um mosquito, permitirão a reprodução com troca
de material genético dentro de seu intestino e gerarão formas capazes de
infectar outros vertebrados.
Se a origem dos plasmódios era envolta em mistério até pouco
tempo atrás com a descoberta de seus ancestrais marinhos, a evolução das
espécies que hoje afetam os seres humanos, em especial o Plasmodium vivax
e o Plasmodium falciparum, também era. Durante muitos anos se acreditou
que o Plasmodium vivax tinha origem em espécies de plasmódio que
afetavam primatas das florestas do Sudeste Asiático, porque as análises de DNA
indicavam que as espécies de plasmódio mais parecidas com o P. vivax
eram as que infectavam esses animais. No entanto, essa teoria era baseada em um
pequeno número de amostras de sangue coletadas de primatas asiáticos. E havia
uma evidência que não se encaixava nessa teoria. A grande maioria da população
da África possui uma mutação em um receptor existente na superfície das
hemácias chamado Duffy, que é justamente o receptor que o P. vivax
utiliza para se ligar às hemácias humanas e invadi-las. Sem esse receptor, a
hemácia não pode ser invadida. O restante da população mundial não possui essa
mutação, indicando que ela ocorreu após a migração do Homo sapiens para
fora do continente africano. É bastante razoável que ela tenha sido favorecida
pela seleção natural ao longo de muitas e muitas gerações, já que indivíduos
imunes à malária possuem uma vantagem evolutiva. No entanto, essa teoria só
faria sentido se o P. vivax tivesse vitimado os seres humanos
inicialmente na África, e não na Ásia. Havia um impasse: o genes dos humanos
contavam uma história, os genes dos plasmódios contavam outra.
A dúvida persistiu até que os cientistas desenvolvessem uma
nova técnica para analisar amostras de primatas em busca de traços de
plasmódios. Se antigamente era preciso colher sangue de primatas selvagens para
obter amostras (o que não é exatamente um procedimento fácil, porque a maior
parte deles vive isolada dos humanos e não aceita de boa vontade que se extraia
sangue de suas veias), com os avanços em biologia molecular foi possível
detectar traços de parasitas também nas fezes, um material mais fácil de ser analisado
e que não depende da presença dos primatas no local da coleta no momento da
análise, apesar de não possuir uma sensibilidade tão boa quando a análise do
sangue. Foi dessa maneira que espécies ainda mais próximas ao P. vivax doque as asiáticas e até então desconhecidas foram identificadas em símios como
chimpanzés, bonobos e gorilas que viviam no interior da África.
A análise do DNA de diferentes exemplares de P. vivax colhidos de
populações humanas indicam que essa transição do parasita de símios para
humanos provavelmente ocorreu há cerca de 400 mil anos atrás, muito antes da
diáspora promovida pelo Homo sapiens que ocorreu nos últimos 70 mil anos.
A teoria da origem asiática do P. vivax foi derrubada, e hoje se
considera que a prevalência mais alta de P. vivax fora da África se deva
a populações suscetíveis que carregaram o parasita para o Sudeste Asiático
antes que a mutação do receptor Duffy se tornasse prevalente na África.
O P. falciparum também tinha uma origem duvidosa até
poucos anos atrás, e foi preciso utilizar a mesma técnica de pesquisa de
material genético de plasmódios nas fezes de símios para elucidar sua história
evolutiva. Tudo indica que sua origem está nos gorilas, e não nos chimpanzés
como se acreditava antes. Se anteriormente a espécie mais
próxima do P. falciparum era a espécie P. reichenowi, que causa
malária em chimpanzés, a análise das fezes de símios recolhidas nas florestas
africanas evidenciou a existência de plasmódios praticamente idênticos ao P.
falciparum em gorilas. E a análise do DNA das diferentes amostras de P.
falciparum obtidas em sangue humano mostram uma variedade muito menor do que
aquela encontrada entre os parasitas de gorilas, sugerindo que a infecção de um
ser humano pelo ancestral do P. falciparum oriundo de um gorila foi um
evento que provavelmente ocorreu apenas uma vez, e a infecção de outros humanos
ocorreu a partir desse indivíduo inicial. A julgar pela proximidade genética, o
P. reichenowi também deve ter origem nos plasmódios de gorilas que
sobreviveram à inoculação no sangue de chimpanzés, a exemplo do que ocorreu em
humanos.
No entanto, uma dúvida ainda persiste: quando ocorreu essa
infecção inicial de um humano pelo P. falciparum? Tudo indica que ela é muito
mais recente do que a infecção pelo P. vivax (e pelo P. malariae
e P. ovale, espécies de menor importância mas que também possuem ciclos
envolvendo humanos). Como vimos, o P. vivax e o P. ovale possuem
formas dormentes no fígado, os hipnozoítos, que podem ser reativadas após meses
ou anos, emergir do fígado e realizar ciclos de desenvolvimento nas hemácias. O
P. malariae, embora não seja capaz de formar hipnozoítos, consegue
manter parasitemias baixas por um período mais arrastado, podendo assim se
manter transmissível a médio prazo. Isso significa que pequenos grupos nômades
com uma densidade populacional muito baixa, como os que vagavam pelas savanas
durante o Paleolítico, poderiam sustentar a transmissão do parasita por muito
tempo, e até mesmo carregá-lo para fora da África. Além disso, o P. vivax
e o P. malariae só parasitam hemácias com uma determinada idade
(hemácias jovens e mais velhas, respectivamente), o que garante que a
quantidade de hemácias parasitadas em um determinado momento seja bastante
baixa – algo em torno de 2%. Embora esse número seja suficiente para causar
sintomas, dificilmente um indivíduo adulto acabaria morrendo em decorrência de
malária se ela fosse causada por essas espécies.
Com o Plasmodium falciparum a história é outra. Não
há hipnozoítos, então a infecção dura semanas ou meses até evoluir para cura
espontânea – ou para óbito. Isso diminui muito a chance de transmissão em um
ambiente com densidade populacional baixa, como era o caso do Paleolítico. Além
disso, o P. falciparum não tem preferência de idade na hora de parasitar
as hemácias, o que faz com que sua parasitemia seja geralmente muito alta – 10,
20, 50 ou em casos dramáticos até 80% das hemácias parasitadas. A anemia
induzida pelo parasita, nesse caso, é muito mais grave. E ele lança mão de
outras estratégias adaptativas para sobreviver mais tempo no hospedeiro. Como
as hemácias parasitadas geralmente são destruídas ao passar pelo baço, o P.
falciparum consegue evitar essa destruição induzindo a aderência das
hemácias onde ele está se desenvolvendo à parede dos vasos sanguíneos. Se estão
grudadas na parede dos vasos, não circulam. Se não circulam, não são destruídas
pelo baço. O problema é que essa aderência obstrui a circulação de sangue nos
tecidos do corpo, inclusive em órgãos importantes como os pulmões, os rins e o
cérebro. Não é raro que indivíduos com malária por P. falciparum entrem
em coma devido a problemas na circulação cerebral. Por esse mecanismo de
obstrução dos vasos microscópicos pelo corpo, que está ausente nas formas de
malária induzidas por outras espécies de plasmódios, o P. falciparum
pode levar – e frequentemente leva – seu hospedeiro a óbito.
A ausência de hipnozoítos e a alta letalidade indicam que o P.
falciparum necessitaria de uma densidade populacional elevada para infectar
comunidades humanas de forma sustentada. É possível que pequenas comunidades
nômades do Paleolítico tenham sido infectadas pelo P. falciparum mas a
infecção não tenha ido à frente porque boa parte das vítimas morreu e não havia
uma quantidade suficiente de novos hospedeiros nas proximidades para manter a
infecção em humanos. Essa densidade populacional suficientemente alta só seria
alcançada em períodos mais recentes, com o surgimento da agricultura no período
que conhecemos como Neolítico. Ou seja, há no máximo dez ou doze mil anos,
embora por ter sido gradual é possível que esse processo tenha sido iniciado
alguns milênios antes. Em um processo similar ao que aconteceu no Oriente
Médio e em outras regiões do planeta,
mudanças climáticas ocorridas a curto prazo forçaram grupos de caçadores e
coletores a utilizar novas técnicas para lidar com as frutas, os grãos e os
outros alimentos adquiridos nas vizinhanças dos assentamentos e que se tornavam
mais e mais escassos, em um processo gradual que culminou na agricultura e nas
comunidades sedentárias. A população desses assentamentos cresceu
exponencialmente, porque uma área cultivada era capaz de sustentar muito mais
pessoas do que a mesma área utilizada para caça e coleta. Mesmo comunidades que
ainda não haviam desenvolvido agricultura propriamente dita utilizavam técnicas
para melhorar a produtividade de suas atividades extrativistas. Nas regiões
tropicais africanas, por exemplo, isso envolvia a limpeza do solo e a remoção
de ervas daninhas do entorno das árvores frutíferas e dos locais onde cresciam
tubérculos como o inhame.
A explosão populacional proporcionada pelas técnicas de
cultivo e as alterações no ambiente em torno dos assentamentos humanos
proporcionaram as condições ideais para que o Plasmodium falciparum
pudesse ser transmitido de pessoa para pessoa através de mosquitos, visto que
mais pessoas significavam mais alvos em potencial. Além disso, técnicas de
cultivo que envolviam a retirada do húmus e a derrubada de outras árvores em
torno das áreas de cultivo alteravam o solo e facilitavam a criação de poças
d’água após as chuvas, aumentando assim a quantidade de mosquitos. Ainda que a
quantidade de gametócitos circulando no sangue de um indivíduo com malária seja
pequena, diminuindo assim a chance de que um mosquito se infecte ao sugar seu
sangue e seja capaz de transmitir malária a outros humanos, quando a quantidade
de pessoas suscetíveis e de mosquitos no ambiente é muito grande a chance de
isso ocorrer aumenta vertiginosamente. E a chance de transmissão do P. falciparum
se tornou ainda maior com o surgimento, mais ou menos nessa época, de uma
espécie de mosquito perfeitamente adaptada ao ambiente repleto de água parada
das comunidades agrícolas ou semiagrícolas da África tropical, capaz de gerar
grandes quantidades de plasmódios em seu intestino e com uma preferência
incomum por sangue humano: o Anopheles gambiae. Os mosquitos
transmissores da malária pertencem ao gênero Anopheles, mas cada região
do planeta tem uma espécie predominante, e elas variam muito em capacidade de
transmitir malária. Algumas são menos suscetíveis à infecção ou à multiplicação
de plasmódios em seu tubo digestivo por alguma razão metabólica ou genética,
outras têm uma grande variedade de alvos – humanos, bovinos, aves – e isso
dificulta a transmissão de plasmódios entre membros de uma mesma espécie. A
maior parte das espécies de Anopheles se alimenta de sangue humano em
cerca de 10 a 20% das vezes, no máximo. O A.
gambiae faz isso em 80 a 100% das vezes. E por que isso é importante?
Porque um mosquito adulto não vive mais do que três semanas, na maioria das
vezes, e o tempo de desenvolvimento do P. falciparum no seu intestino
dura em média 2 semanas. Ou seja, um mosquito que não tem preferência por
sangue humano, como o A. darlingi da América do Sul ou o A.
culifacies da Índia, dificilmente entrará em contato com um humano com
malária nos primeiros dias e permanecerá com o protozoário por menos de uma
semana, dividindo seus repastos entre humanos e outros animais que as
comunidades humanas eventualmente criarem em torno de seus assentamentos. Entrando
em contato com poucos humanos nesse breve intervalo entre a infecção e a morte,
a chance de essa espécie de mosquito promover uma epidemia é bem menor. Por
outro lado, um mosquito como o A. gambiae entrará em contato com muito
mais pessoas em seu curto período infectivo, potencializando as chances de
adquirir o plasmódio e infectar outros seres humanos com ele.
Assim como ocorreu com o antígeno Duffy no P. vivax,
o surgimento e a disseminação do P. falciparum entre seres humanos
graças ao A. gambiae criaram uma pressão evolutiva para que genes que
oferecessem algum tipo de proteção contra essa variedade mais grave e mortal de
malária fossem selecionados e aumentassem sua prevalência na população geral. E
como o P. falciparum se disseminou entre humanos muito mais recentemente
do que o P. vivax, as adaptações também surgiram muito mais recentemente
– e de forma mais dramática.
Como as hemácias são as células que os plasmódios invadem
durante seu ciclo de desenvolvimento, não é coincidência que as principais
adaptações ocorram na forma de alterações estruturais ou metabólicas no
interior das hemácias, causadas por alterações genéticas. Vamos analisar mais a
fundo três delas: a anemia falciforme, a talassemia e a deficiência de
glicose-6-fosfato desidrogenase.
A anemia falciforme é uma doença genética que acomete a
hemoglobina, a proteína responsável por carregar o oxigênio para os tecidos do
corpo, e cujas moléculas ficam no interior das nossas hemácias. A molécula de
hemoglobina é formada por quatro partes diferentes chamadas globinas ligadas
entre si como as arestas de um quadrado – sendo duas de um tipo que chamaremos
de alfa e duas ligeiramente diferentes, que chamaremos de beta. No interior
desse quadrado, quatro estruturas moleculares menores contendo um átomo de
ferro cada chamadas heme se ligam ao oxigênio. Quando oxigenada, a molécula
de hemoglobina se “abre”, com as globinas se afastando levemente umas das
outras. Quando a molécula entrega seu oxigênio para os tecidos que necessitam,
ela se “fecha” novamente. Ao longo de um dia, com as hemácias carregando
oxigênio para os tecidos e voltando desoxigenadas para os pulmões incessantemente,
cada uma das milhares de moléculas de hemoglobina em uma hemácia alterna os
estados “aberto” e “fechado” centenas de vezes. Com sua hemoglobina
perfeitamente construída, uma hemácia consegue passar 120 dias realizando esse
transporte de oxigênio para os tecidos. O problema é quando essa hemoglobina
vem com um defeito de fábrica.
Pode ter acontecido diversas vezes ao longo da nossa
História evolutiva. Por um pequeno erro na hora de duplicar o DNA exatamente no
gene que codifica as instruções para a formação do componente beta da
hemoglobina, localizado no cromossomo 11, uma sequência guanina-adenina-guanina
é trocada por guanina-timina-guanina. Essa mutação aparentemente
insignificante faz com que o sétimo aminoácido a ser transcrito a partir do RNA
baseado nessa cópia errada do DNA seja não o glutamato, mas sim a valina. E o
que essa pequena diferença faz? Ela altera ligeiramente o formato da molécula
de hemoglobina e, em sua forma desoxigenada, uma ponta do componente beta da
molécula se liga à mesma extremidade do componente beta da molécula vizinha de
hemoglobina. Isso dá origem a uma reação em cadeia que polimeriza irreversivelmente
as moléculas de hemoglobina dentro de uma hemácia, e o que era para ser um
monte de moléculas abrindo e fechando de forma harmônica com a entrada e saída
de oxigênio vira um emaranhado disforme de proteínas grudadas umas às outras. Embora
naquelas pessoas que possuem uma cópia do gene que codifica a hemoglobina
normal e outra que codifica a hemoglobina defeituosa essa polimerização seja
rara e em pequena quantidade, nas pessoas que receberam dos pais duas cópias do
gene que forma a hemoglobina alterada esse processo deforma as hemácias de tal
forma e em tal quantidade que elas se tornam incapazes de circular por entre os
vasos mais estreitos, levando a infartos microscópicos em diversos tecidos. O
nome falciforme vem justamente do formato de foice que essas hemácias podem
assumir, bem diferente da forma usual de disco bicôncavo. Em situações e em lugares
do corpo onde há falta de oxigênio, as hemácias de indivíduos com anemia
falciforme podem sofrer deformidade em grande quantidade, causando obstrução de
pequenos vasos em vários lugares do corpo ao mesmo tempo e levando a dores
terríveis por causa da falta de oxigênio nesses tecidos – uma condição que
conhecemos como crise falciforme. Mesmo fora dos momentos de crise, uma
parte das hemácias circulantes está sempre deformada, e isso faz com que percam
elasticidade e sejam destruídas muito antes do prazo de 120 dias que uma
hemácia normal costuma durar. Além disso, uma pessoa com anemia falciforme
perde uma proteção importante contra infecções, porque até os cinco anos de
idade o seu baço deixa de funcionar por causa dos microinfartos que o destroem
aos poucos. Embora hoje seja possível conter crises de dor, diminuir a
vulnerabilidade imunológica causada pela falta do baço através de vacinas e
aumentar a expectativa de vida dos pacientes portadores de anemia falciforme,
durante grande parte da História esses recursos não estavam disponíveis, e era
difícil encontrar pessoas com a doença que sobrevivessem além dos vinte ou
trinta anos.
A talassemia também é uma doença genética que leva a
alterações estruturais na molécula de hemoglobina, e é comum entre povos de
origem mediterrânea como gregos, italianos, espanhóis, judeus, egípcios e
berberes (seu nome vem de thalassa, palavra grega para mar – o
Mediterrâneo, no caso). Diferentemente da anemia falciforme, que leva a uma
deformidade das cadeias beta da hemoglobina, a talassemia simplesmente faz com
que duas das quatro cadeias da hemoglobina – alfa ou beta – simplesmente não
sejam produzidas. Formas mais brandas conseguem produzir uma quantidade maior
de moléculas de hemoglobina normais ou com pequenos defeitos, mas nos casos
graves a principal molécula transportadora de oxigênio para os tecidos só
existe pela metade. Além da óbvia dificuldade para oxigenar os tecidos, as
hemácias também ficam mais frágeis (embora não deformadas) e são destruídas com
mais rapidez pelo baço, e o ferro presente na hemoglobina dessas células pode
se acumular em órgãos como fígado e pâncreas até alcançar níveis tóxicos. A
anemia severa repercute nos tecidos e, em resposta, a medula óssea começa a
produzir novos glóbulos vermelhos – com hemoglobina defeituosa – em um ritmo
ainda mais frenético. Como resultado, ela pode aumentar muito de tamanho a
ponto de deformar ossos longos e chatos, inclusive os ossos da calota craniana.
Sem os cuidados adequados, pessoas com talassemia major – a forma mais
grave da doença – têm uma expectativa de vida tão reduzida quanto os portadores
de anemia falciforme.
A terceira doença que afeta as hemácias, a deficiência de
glicose-6-fosfato desidrogenase, é na verdade um distúrbio metabólico, não
estrutural. Uma mutação impede que a enzima com esse nome complicado seja
produzida corretamente ou em níveis adequados. Essa enzima atua no interior dos
glóbulos vermelhos fazendo parte de uma cadeia de reações que diminuem os
níveis de radicais livres dentro da célula. Radicais livres são moléculas instáveis que contêm oxigênio e podem danificar
outras estruturas como proteínas lipídios de membranas e DNA. O próprio
metabolismo normal pode produzi-los em pequenas quantidades, e é provável que
essa produção residual seja (pelo menos em parte) responsável pelo nosso
envelhecimento. No entanto, nós eucariontes possuímos mecanismos para lidar com
esses radicais livres e reduzir seus danos ao mínimo possível. Um desses
mecanismos é a cadeia metabólica da qual faz parte a glicose-6-fosfato
desidrogenase (G6PD). Indivíduos que não possuem essa enzima ou que possuem uma
variedade defeituosa não conseguem lidar com quantidades maiores de radicais
livres, como as que são liberadas após contato com alguns alimentos ou
medicamentos. Durante a maior parte do tempo essas pessoas não apresentam
sintomas, mas o contato com uma substância deflagradora pode levar a uma
destruição maciça de hemácias. Além da anemia aguda decorrente dessa
destruição, o fragmento heme da hemoglobina é metabolizado em bilirrubina, uma
substância de cor amarela que acaba se impregnando na pele, na esclera – a
camada externa e branca dos globos oculares – e em outros tecidos do corpo.
Essas substâncias deflagradoras podem ser itens corriqueiros
de uso doméstico como a naftalina, medicações como a aspirina e as sulfas e até
mesmo (bizarramente) drogas contra malária – alguns antimaláricos como o
quinino e seus derivados matam os plasmódios por meio de radicais livres, e as
hemácias onde eles se desenvolvem são poupadas quando a G6PD funciona
normalmente. Assim como a talassemia, a prevalência de pessoas com deficiência
de G6PD é elevada em populações do Mediterrâneo incluindo os gregos, e
provavelmente o matemático e filósofo Pitágoras e/ou pessoas próximas a ele eram portadores dessa mutação. Ele estabeleceu que para fazer parte de sua
comunidade de seguidores, os Pitagóricos, era necessário abdicar de se
alimentar de feijões-de-fava para o resto da vida, assim como ele próprio o
fizera. Por todo o Mediterrâneo, havia comunidades onde o consumo de
feijões-de-fava era considerado tabu, especialmente entre sacerdotes. Embora haja algumas teorias sobre por que Pitágoras e seus seguidores teriam
abdicado de se alimentar dos grãos dessa nutritiva leguminosa comum em todo o
Mediterrâneo e por que era um tabu comê-la, sabe-se que os feijões-fava são
deflagradores de hemólise em indivíduos com deficiência de G6PD.
É bem possível que, além de Pitágoras e outras pessoas próximas, tantas outras
pessoas nas gerações anteriores naquela região tenham apresentado anemia
hemolítica após ingerir feijões-de-fava que a associação ficou no imaginário
popular, mesmo que a população da época não soubesse exatamente o motivo.
Nenhuma dessas três mutações associadas a doenças genéticas
– anemia falciforme, talassemia ou deficiência de G6PD – é benéfica em
condições normais. Não traz uma vantagem intrínseca que facilite a sobrevivência.
Pelo contrário: a anemia falciforme e a talassemia podem reduzir muito a
expectativa e a qualidade de vida de um indivíduo, e a deficiência de G6PD pode
ser uma ameaça à vida se o indivíduo em questão entrar em contato com
quantidades elevadas de uma substância deflagradora. Se ocorressem
espontaneamente na natureza, a seleção natural trataria de eliminar os
portadores dessas mutações porque eles teriam menos chances de gerar
descendentes do que aqueles que não são portadores. A única explicação para que
essas três mutações genéticas sejam tão prevalentes em determinadas populações,
mesmo com toda a repercussão que podem ter sobre a saúde dos indivíduos
portadores desses genes, é que em algum contexto elas podem ser ou ter sido
vantajosas, oferecendo a seus portadores algum benefício na competição por
recursos ou na sobrevivência a fatores ambientais. E a malária causada pelo P.
falciparum oferece esse contexto.
Primeiro, a evidência geográfica: a anemia falciforme tem
uma elevada prevalência nas regiões tropicais da África, especialmente nas
regiões correspondentes à bacia do rio Congo e aos territórios atuais de
Nigéria e Camarões, e está ausente apenas no extremo norte e no extremo sul do
continente. Nas áreas onde é mais comum, a prevalência do gene chega a mais de 15% da população geral (essa proporção inclui as pessoas
que possuem um gene normal e um falciforme, apenas com o traço falciforme, que
são maioria; os indivíduos com anemia falciforme, ou seja, com os dois genes falciforme,
são em número menor). Além do continente africano, a anemia falciforme tem
moderada prevalência em áreas da península arábica e do subcontinente indiano,
além de regiões das Américas para onde foram levadas populações africanas
escravizadas. Como vimos, a talassemia e a deficiência de G6PD têm alta
prevalência em populações do Mediterrâneo (e também em seus descendentes ao
redor do mundo). Se observarmos as regiões do planeta onde existe transmissão
de malária por P. falciparum, chegamos à conclusão de que os mapas se
sobrepõem perfeitamente. As únicas regiões onde há transmissão de malária por P.
falciparum e não há alta prevalência de anemia falciforme são justamente as
regiões onde predominam a talassemia e a deficiência de G6PD.
Agora, a evidência genética: o portador da anemia falciforme
verdadeira carrega dois genes que codificam a hemoglobina defeituosa (dois alelos),
um herdado do pai e outro da mãe. Em Genética, chamamos ele de homozigoto.
Ele tem uma expectativa de vida reduzida devido à própria doença genética. No
entanto, em um ambiente onde há elevada transmissão de malária por P.
falciparum (e por isso uma razoável possibilidade de um indivíduo jovem e
em idade reprodutiva morrer de malária), aqueles que não possuíam a mutação que
causa a anemia falciforme também tinham uma expectativa de vida reduzida. Só
que os indivíduos heterozigotos, ou seja, aqueles que possuíam uma cópia
do gene que codificava a hemoglobina normal e uma que codificava a hemoglobina
falciforme, possuíam uma ligeira vantagem. Eles até possuíam algumas hemácias
deformadas, mas eram muito poucas e dificilmente levariam a microinfartos em
seus órgãos ou a crises de dor – uma condição que chamamos de traço
falcêmico. Por outro lado, a discreta polimerização da hemoglobina dentro das suas hemácias dificultava a formação dos plasmódios que as infectavam.
Não se pode dizer que eram imunes à malária, mas a chance de morrer da doença
era consideravelmente mais baixa. Esse fenômeno, chamado seleção do
heterozigoto, ajuda a explicar por que um gene que pode levar a uma doença tão
grave quando em homozigose pode ser tão presente em uma população. Na lógica
indiferente da natureza, alguns homozigotos morrendo de anemia falciforme são
um preço pequeno a pagar para que uma parcela maior da população geral, a que é
portadora de apenas uma cópia do gene, consiga sobreviver e perpetuar a
espécie.
Algo muito parecido provavelmente ocorreu com a talassemia
no Mediterrâneo. A forma homozigota ou talassemia major, mais
grave e frequentemente fatal, teve sua prevalência na população mediterrânea
aumentada porque os indivíduos heterozigotos também tinham uma vantagem em
relação àqueles que não possuíam nenhuma cópia do gene que induzia a talassemia
em um ambiente onde a malária grave era comum. Esses indivíduos, portadores da
chamada talassemia minor, também não são imunes à malária, mas
tendem a desenvolver uma forma mais branda e que raramente é fatal. E a talassemia
minor é bem mais leve do que a sua variante mais grave, causando pouco
ou nenhum impacto na expectativa de vida e permitindo que seus portadores se
reproduzam e transmitam o alelo responsável pela talassemia para seus
descendentes.
Também a deficiência de G6PD pode se mostrar vantajosa em um
ambiente onde há muitos casos de malária. Mesmo se um indivíduo com essa
variação genética não apresentar nenhum sintoma, os níveis de radicais livres
nas suas hemácias são um pouco mais elevados do que os de um indivíduo sem essa
mutação, e embora a hemácia consiga tolerar esses níveis um pouco mais altos, o
Plasmodium falciparum é muito mais sensível. Da mesma forma que a anemia
falciforme e a talassemia, mas por um mecanismo diferente, a deficiência de
G6PD oferece alguma proteção contra a malária grave por P. falciparum.
Em vez de sofrer com uma parasitemia maciça e capaz de ameaçar a vida, o
portador da deficiência de G6PD involuntariamente faz com que suas hemácias sejam
um ambiente hostil aos plasmódios, diminuindo seu número e, em consequência, as
repercussões que a infecção tem sobre o seu corpo.
As estimativas baseadas em análise de DNA indicam que a
mutação genética que deu origem ao alelo responsável pela anemia falciforme
surgiu há 259 gerações, ou algo em torno de 7.300 anos, em algum lugar onde
hoje é o deserto do Saara – que na época ainda era uma savana. Essa data, embora possa variar
entre 3.400 e 11.100 anos dependendo de quanto tempo você considere que dura
uma geração, coincide quase perfeitamente com a origem do Plasmodium
falciparum e do Anopheles gambiae. É provável que essa mesma mutação
tenha surgido outras vezes ao longo da nossa História evolutiva, mas seus
portadores não tenham tido nenhuma vantagem competitiva e por isso ela tenha
desaparecido. No entanto, nesse período de 3 a 11 mil anos atrás, havia uma
pressão evolutiva grande para que os portadores dessa mutação se tornassem
proporcionalmente mais numerosos. Tão grande que fez com que essa mutação estivesse
presente em uma ou duas cópias no DNA de uma parcela significativa da população
de uma área extensa do planeta, e tudo isso em alguns poucos milênios.
“Pressão evolutiva” é um nome engraçado porque transmite um
ar de frieza e neutralidade a uma verdadeira tragédia, daquelas que só a
indiferença da natureza é capaz de proporcionar. Imagine-se voltando no tempo
até a África de sete mil anos atrás. Você encontra uma comunidade pequena de
agricultores nas franjas da floresta tropical africana, que tira a maior parte
do seu sustento da extração de frutas e tubérculos. Suas oito ou dez cabanas em
uma clareira na floresta são moradias permanentes, cercadas de áreas de
protoagricultura cobertas pela copa das árvores e de onde são extraídas as
frutas e o inhame. O solo, remexido, está livre de ervas daninhas e da camada
de húmus e folhas secas que normalmente recobre o chão da floresta. Uma ou
outra poça de água da chuva se acumula nos arredores. Dentro delas, larvas de
mosquito se contorcem de forma frenética. Larvas de Anopheles gambiae.
Na aldeia, mosquitos adultos se abrigam por entre as fibras vegetais que formam
as paredes e o teto das cabanas onde vivem os humanos. Ao entardecer, as fêmeas
formarão um enxame que sugará o sangue dessas pessoas para nutrir os ovos de
mosquito que ainda serão postos na superfície da água. Algumas delas se
infectarão com os gametócitos de P. falciparum circulando no sangue dos
humanos com malária. Outras, já com o protozoário em seu intestino, vão
inocula-lo na circulação periférica de membros dessa comunidade que ainda estão
livres da doença. Em uma dessas cabanas, uma mãe chora a morte do filho que
sucumbiu à malária com apenas três anos. Na cabana do lado, outra mãe ainda
está de luto pela filha, que também morreu de malária com cinco anos de idade
há poucos dias. Seu companheiro está febril e doente, também com a doença. Em
outra cabana, um jovem adulto e sob outros aspectos saudável está em coma,
sofrendo as repercussões da malária no seu cérebro, e estará morto em poucos
dias. Mas na cabana vizinha, não há ninguém morrendo de malária. Uma criança
pequena grita de dor, suas mucosas estão pálidas e suas articulações aparentam
estar inchadas. Os pais tentam em vão reverter mais uma crise dolorosa como a
que a pobre criança teve há menos de uma semana, enquanto seus irmãos observam
assustados e sem entender por que ela grita tanto. Ela tem anemia falciforme, e
provavelmente morrerá antes da puberdade. Mas seus pais e seus irmãos,
portadores apenas do traço falciforme, sobreviverão e terão outros filhos.
Protegidos das consequências da malária grave, continuarão a povoar a aldeia
enquanto os outros, vitimados pelos plasmódios, morrerão mais cedo e deixarão
menos descendentes. Agora imagine que essa cena se repete em outras pequenas
aldeias nas redondezas. E em toda a região tropical da África. E nas
comunidades de pastoreio das savanas. E que no Mediterrâneo as famílias que
possuem em seu DNA as mutações que levam à talassemia e à deficiência de G6PD
também prevaleçam após cada novo surto de malária. Isso é pressão
evolutiva. É a seleção natural agindo em sua forma mais pura e simples.
É claro que o cenário acima é um tanto exagerado. A malária,
mesmo em sua forma grave causada pelo P. falciparum, dificilmente seria
capaz de infectar e eliminar todos os habitantes de uma aldeia que não possuem
traço falciforme, ou talassemia minor, ou deficiência de G6PD. Às vezes
a diferença de mortalidade entre quem tem esses genes e quem não tem é de 10,
ou 5, ou mesmo 1%. Não parece muita coisa, mas considere que a anemia
falciforme surgiu há mais ou menos 259 gerações. Uma pequena vantagem na
sobrevivência, ao longo de alguns milênios, pode gerar resultados assombrosos.
Mesmo a mutação no antígeno Duffy, que provavelmente significou uma pressão
evolutiva muito menor (já que a malária por P. vivax é muito mais branda
do que a pelo P. falciparum), está hoje presente em assombrosos 97% da
população da África central e ocidental, porque essa mínima vantagem que ela
proporcionava se manteve presente ao longo das dezenas de milhares de anos
desde o seu surgimento.
A malária deixou sua marca para sempre no DNA e na
trajetória da espécie humana, e teve grande impacto em muitos outros momentos
da nossa História, como veremos mais à frente. Embora a Humanidade tenha
testemunhado (e sobrevivido a) diversas epidemias que ceifaram milhões de
vidas, nenhuma outra doença infecciosa nos impactou tanto – economicamente,
socialmente, geneticamente e em número de vítimas fatais – de forma sustentada
como a malária o fez ao longo dos milênios. Ainda hoje, há mais de 200 milhões de casos de malária por ano em todo o planeta, com cerca de meio milhão de
mortes. É a terceira maior causa isolada de morte entre as
doenças infecciosas hoje, perdendo apenas para a AIDS e a tuberculose. Em sua
esmagadora maioria, são crianças vitimadas por P. falciparum na África.
Fora do continente africano, especialmente na Ásia e nas Américas, o P.
vivax (e em muito menor extensão o P. ovale e o P. malariae)
acometem pouco menos de 10 milhões de pessoas todos os anos, e esse número
aparentemente vem caindo graças a estratégias de prevenção e a esforços locais,
nacionais e internacionais. Nas florestas tropicais do sudeste asiático, uma
espécie de plasmódio que acomete primatas locais chamada P. knowlesi
conseguiu se adaptar ao corpo humano e hoje é responsável por alguns milhares
de casos na região. Muito raramente, espécies de plasmódio de macacos como o P.
cynomolgi e o P. simium podem acidentalmente ser transmitidas para
humanos e provocar malária, embora sejam incapazes de produzir gametócitos
viáveis em quantidade suficiente para sustentar um ciclo entre humanos e
mosquitos.
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